sábado, março 31, 2018

A CRUCIFICAÇÃO DE JESUS A GRANDE TRAGÉDIA DO OCIDENTE


            Fora das grandes temáticas existenciais da tragédia grega, lembremos Antígona, de Sófocles, em que os deveres de família e os da cidade entram em conflito; quando a tragédia é a tomada de decisão que vai contra uma ordem pré-estabelecida imanente à cidade, baseada numa opção em que a protagonista decide morrer em nome do cumprimento do dever para com a lei interior, a família, temos o trágico como ruptura entre o particular e o geral.

            Mas a tragédia não é apenas o terreno do conflito ético e político do humano em que os deuses tomam partido e o mito se impõe com toda a sua força como forma explicativa dos nossos problemas existenciais. A tragédia também é pertença do religioso monoteísta. A crucificação de Jesus conduziu a uma dimensão trágica da fé enquanto manifesação existencial de entidades em conflito. Com Jesus não temos propriamente o conflito entre geral e particular, mas o particular manifestante de uma tanscendência em oposição a alguns aspectos do geral.

Os tragiógrafos gregos, muitos séculos antes de Cristo, mergulhados no mais fundo sentido do mito, jamais conseguiriam pensar uma realidade como esta. Jesus não é uma abstracção que se impõe, reflexiva, a algumas práticas judaicas de então, mas um homem que, muito embora fiel à sua fé judaica remete a mesma para uma interioridade que, pelo muito amar, é voz directa de Deus. Imanente e transcendente encontram-se na cruz como máximização da fé. Jesus não foi o profeta da política nem da economia, mas deu os trunfos para, mediante o Amor e nada mais, conduzir o homem/mulher à mudança do rumo da História.

            A dimensão trágica entra também perante a realidade de um judeu (lembremos, antigo discípulo de João Baptista),condenado à morte como zelota (radical insurrecto e extremista, mas que ele nunca o foi); temido como possível rei dos judeus; blasfemo porque, talvez, messias (o que ele não queria ser, Mc 1:44); crítico da estagnação numa tradição que, muito embora identificadora de um povo, tem que naturalmente submeter-se ao progresso, que não significa anulação mas complementaridade; seguidor/defensor da Lei/profetas, nomeadamente Jeremias e Isaías; pregador provinciano desejoso de se isolar (Mc 1: 40-45), e, no fundo, insignificante.

            Os Cristãos têm-se esforçado por legitimar o mal-entendido desta condenação e, simultaneamente conferir-lhe uma continuidade teológica: Jesus é o Messias proclamado pelos profetas do antigo Israel. Ora nem as profecias eram para tão longo espaço de tempo, nem o messias seria, pela sua própria natureza messiânica, dependente de uma profecia. O sonho colectivo de um povo, geralmente, não é coincidente com os factos históricos nem com as dinâmicas da fé. O que caracteriza o humano é a sua imprevisibilidade, e Deus não obedece aos homens/mulheres. Uma das tragédias humanas é precisamente a da ilusão de que diz o que Deus é, superlativizada aquando da colagem a um profeta.

            Quanto ao texto bíblico, este representa a esperança de um povo que pretende viver autonomamente, esperançoso de que venha um Enviado trazer um modelo de governação que sintetize história/fé, política/religião. Isto faz todo o sentido. A fé é tão terrena como a esperança ou desejo de libertação. Uma fé não libertadora, isto é, não praticável na realidade existencial, é uma quimera. A fé tem que ser uma resposta.

            Os Cristãos  foram construindo um messias que, a pouco e pouco, se distanciou do mundo terreno, projectando o objectivo da sua existência no para lá, um Reino de Deus longe do mundo. Os Judeus, contrariamente, pretendiam um messias totalmente voz de Deus mas no mundo, o que significa que sem mundo Deus está-nos vedado, e sem a fé em Deus não temos fundamento existencial para o mundo.

            E a questão impõe-se: Jesus é messias ou não? O messias já veio ou está para vir? Pregador do Reino de Deus através do Amor, estamos em presença de uma reafirmação de que a política e a fé são compatíveis: o governante é um messias na medida em que muito ame o seu povo. À semelhança da noção de falsos profetas de que falou o jovem Jeremias, os quais não são apenas os videntes ao serviço de forças malignas (Jr 14:13-16), como pensam alguns, infelizmente, mas os que profetizam em seu nome pessoal (idem), mas de políticos que pregam no Templo e na sinagoga uma coisa e que, no acto de governar, não cumprem com os parâmetros que lêem na Lei. A falsa profecia é todo um conjunto de interesses particularistas, tornando redutível a prática da Lei a um pequeno espaço, o lugar de culto e de estudo. Repare-se que todos os profetas desempenharam um papel importante no momento histórico em que viveram, aliás, a dimensão historico-política é indissociável dos seus discursos proféticos. Veja-se o exemplo das grandes temáticas de então: leis injustas, Is 10:1-2; grande propriedade, Is 5:8-10; baixos salários, Jr 22:13-15; pesados impostos, Am 2; 8; 5:11, juntamente com as grandes reflexões religiosas: falsos profetas, Jr 14:13-16; a idolatria, Jr 44, ou ainda aspectos estruturantes da sociedade: luxo, Is 3:18-24; escravatura, Jr 34:8-11.

            Ora a tragédia em torno da crucificação de Jesus situou-se mais no campo político do que propriamente religioso. Depressa a perseguição a grupos religiosos aos quais impunham a culpa da crucificação conduziu a conflitos evitáveis. Tornou-se uma questão cultural e psico-social, esvaziando o verdadeiro sentido messiânico e profético. Neste quadro, Jesus é o profeta libertador para lá do político e do religioso particulares na medida em que ensina um novo modelo de conduta: a universalidade da Lei só faz dentido mediante o Amor, ou seja, governar é um acto de amor supremo;  de um ponto de vista religioso, o bem amar agrada a Deus e garante o Banquete no Seu Reino. O Messias é um conciliador. Fora disto prolonga-se a tragédia de Jesus na Cruz e não a paz libertadora da Ressurreição; culpam-se uns, inocentam-se outros, sem perceber que os homens/mulheres são protagonistas quer na dimensão trágica como na libertadora; todos são prisioneiros em terra estrangeira e todos procuram a Terra Prometida. Em Jesus é o Reino de Deus.

            Mas onde é esse reino? Num mundo distante onde, ao ingressarmos seremos automaticamente bons e generosos? Um mundo que se nos revela somente após a morte? Um mundo paradisíaco de árvores de fruto coloridos e perfumados, de leite e de mel? O reino de Deus é aqui e agora, neste mundo, neste momento. O que se é aqui é-se em qualquer parte. O povo de Deus é o povo da paz espalhado pelo mundo.

            Fazer de Jesus um messias ou não não torna ninguém melhor ou pior. A fé pode tornar-se o grande mal se escravizada às convicções quando tidas como as únicas. A fé sem liberdade não é fé, mas uma confusão perigosa de ideias ao serviço do demoníaco. O infiel é alguém que crê apenas de forma diferente.

            Curiosamente, o Messias é reconhecido sem rodeios e sem dúvidas, em toda a plenitude, não por Judeus nem por Cristãos, mas pelos Espíritos imundos (Mc 3:11). Há aqui uma dimensão existencial que remete, inevitavelmente, para o enigma. Desta forma, a grande questão prevalece: Quem é Jesus? Podemos afirmar que os Espíritos imundos são as trevas e que só estas sabem quem é Jesus? A identidade de Jesus só é perceptível pelo imundo? O que é o imundo? Quem somos nós? Que Jesus representamos nas nossas cabeças/corações? Que noção temos da sua identidade? Que retrato fazemos dele?

            Cristãos, que imagem têm dado de Jesus ao longo da História? Que papel desempenhou a crucificação para as congregações cristãs? A História é a sequência de actos que acontecem no tempo e no espaço e, se não se aprender a enterrar o passado para dar lugar a um presente de paz, continuar-se-á a crucificar Jesus no Calvário da ignorância e a fazeer da nossa existência uma tragédia.

            Onde é que estavam os apóstolos quando Jesus foi crucificado? Onde estamos nós, judeo-cristãos dois mil anos depois? Em que lugar nos colocamos na História? As respostas são diferentes segundo os evangelhos. Jesus viveu a tragédia da solidão, o esvaziamento do humano nos momentos difíceis, a fragilidade das suas convicções quando elas eram mais necessárias. Porque desceu ele aos infernos das nossas precaridades, da nossa ignorância? Que fragilidade na força e que força na fragilidade nos quis transmitir?

            A Páscoa de Jesus é a Páscoa de Judeus e Cristãos. A passagem, a grande Passagem à consciência do trágico da Fé e da História que só pelo Amor é possível de ultrapassar. Não podemos continuar a permitir que o imundo se sobreponha ao mundo. Este judeu conferiu à Lei a maior força que se lhe pode dar: o Amor.

            Celebre esta Páscoa como a passagem à liberdade da alma, a proclamação de uma nova noção de beleza, a de comer em qualquer mesa sem preconceitos. Desejo-lhe uma Santa Páscoa.

Margarida Azevedo

 

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Sites consultados

obomministro.blogspot.com

pt.wikipedia.org/wiki/Jeremias

revistas.ufpr.br/vernaculo/article/viewFile


Bibliografia consultada

NEVES, Pe. Carreira das, As Grandes Figuras da Bíblia, Profetas, pp. 156-339, Editorial Presença, Lisboa, 2010.

SOFOCLES, Antígona, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012.

 

Bíblia Consultada

Antigo Testamento, vol.III, Os Livros Proféticos, trad. de Frederico Lourenço, Quetzal, Lisboa, 2017.

Novo Testamento, vol.I, Os quatro Esvangelhos, trad. de Frederico Lourenço,, Quetzal, Lisboa, 2016.