domingo, fevereiro 20, 2011

Ética e Educação (ethos e paideia)





(continuação)
Diz JAEGER W. (1979, p.311) que no tempo de Sófocles surgiu um movimento espiritual de capital importância, a educação, ainda que num sentido limitado, paideia. Ao longo do séc.IV, com o helenismo e o império, o sentido de paideia tornou-se mais abrangente, no entanto foi com os sofistas que foi elevada ao estatuto de mais importante arete (virtude) humana.
A transmissão dessa arete era diferente consoante a classe social. Este facto implicava uma metodologia, áreas de saberes e fundamentação distintas. Um cidadão da polis, um nobre ou um camponês de Hesíodo (cfr.ibidem) tinham objectivos e interesses próprios, protagonizavam também ideais distintos. Um nobre, para quem a educação vinha de laços de consanguinidade, era muito diferente de um aristocrata da nova cidade, uma polis, o qual possuía um ideal de homem e de cidadão. Mas isso por si só não bastava ao aristocrata. Tornava-se imperioso possuir um sistema educativo que o formasse e dessa forma pudesse concretizar o seu ideal. Por outro lado, não bastava à aristocracia cumprir leis, ela tinha que estar preparada para ser a portadora/transmissora de progresso, o que significava estar preparada para fazer novas leis.
Assim no séc.IV surge algo de novo que é: tomada de consciência da diferença entre aprender o ofício do pai, transmitido por este desde tenra idade, com uma educação para a polis; a paideia torna-se meio de concretização de ideais políticos; de uma forma mais abrangente, ela tem como objectivo superar a situação de classe privilegiada dos nobres, cujo objectivo era o belo e o bem (kalós/kagathos), substituindo-se a velha arete ligada à pureza de sangue, por uma nova ligada ao ideal da polis. Os grandes mestres que tiveram nas mãos a responsabilidade da formação da aristocracia foram os sofistas.
Ao deslocar os seus ideais da nobreza para a aristocracia, esta educação está longe da democratização com que alguns a apresentam. A nova paideia passa agora para a formação da nova classe emergente da polis urbana, sendo que, ao terem nas mãos o objectivo de alcançar a arete política, os sofistas ensinavam oratória a quem lhes pagasse, num ensino em forma de lição.
Mestres na arte de interpretar, eram profundos conhecedores de Homero, cuja poesia interpretavam com mestria, esmeros no proferir das palavras, nas técnicas de persuasão, conviviam com físicos e filósofos que lhes forneciam os conhecimentos da natureza, sendo que com os segundos tinham longas discussões sobre temas como a Virtude (arete), o Bem, o Belo, a Verdade, a Coragem, etc., dos quais os diálogos de Platão são o exemplo mais concreto. Quanto à oratória, esta disciplina tornou-se tão importante que “A idade clássica chama orador ao político meramente retórico.” (ibid., p.315)
No que se refere a lição, esta palavra toma aqui a força de um conceito preciso. Pela primeira vez a educação surge munida de técnicas próprias, com um conjunto de objectivos claramente expressos, transmitindo conhecimentos para serem aplicados em concreto. Isto significa ainda que a nova arete tem, no séc. V, que estar preparada para formar o homem de estado capaz de expressar as suas ideias, convencer o auditório e fazer leis, como acima referimos.
É este o fundamento da noção de educação de que somos herdeiros. Independentemente dos conhecimentos que possuimos, há em cada um de nós uma necessidade de fazer valer as suas ideias. Todos somos portadores de uma vontade intrínseca de retórica. Mas também carecemos do Kalós e kagathos, que ficaram há muito para trás. Ainda estamos a tempo de os retomar. Juntar os aspectos divino e prático da educação penso que resume a verdadeira arete do sentido mais lato de paideia. Impensável sem honestidade intelectual, culminará seguramente numa boa instrução. Nada melhor, nada mais belo.
Estamos habituados a dizer que com os novos desafios, novas necessidades, e consequentemente novas linguagens, a educação defronta-se com problemáticas para as quais se torna imperiosa a preparação do indivíduo, não só enquanto pessoa singular, mas também enquanto membro de uma comunidade em permanente transformação. Mas a educação é sempre nova porque novos são os indivíduos todos os dias. Aquilo com que nos defrontamos, a saber, as nossas dificuldades estruturais, o nosso desfasamento em relação a tudo o que nos rodeia, nada disso é novo. E ainda bem que o não é. Nunca poderia sê-lo. Viver é adaptar-se. O nosso problema somos nós mesmos neste crescimento para o bem e para o belo.
Assim, a definição de ideais torna o homem responsável por projectos que só farão sentido quando partilhados com o outro, na medida em que só assim poderá inteirar-se da sua viabilidade ou não. Querer construir, desenvolver e melhorar o meio é sinónimo de empenho e de uma necessidade intrínseca de querer ser sempre o mais útil possível à sociedade.
As religiões e respectivas igrejas devem, de forma espiritual e intelectualmente honesta, proporem ao cidadão crente e não crente caminhos, saídas de sucesso, implicando-os nas suas próprias vivências, dando-lhes a conhecer as suas perspectivas, não só religiosas mas também sociais.
Porém, assistimos ao desmoronamento das igrejas, não só pela sua incapacidade de resposta ao homem pos-moderno, mas também pela ânsia da conquista de poder, benesses e apoios sociais e económicos, tornadas em tudo movimentos políticos perigosos, pois que se afastam do seu verdadeiro caminho que é o de simplesmente desenvolverem a fé e encaminharem as almas para Deus.
O Espiritismo não foge à regra. Como todas as igrejas, também ele é parceiro/construtor da paideia. Está a fazê-lo? A nossa polis dá-nos a possibilidade de mostrarmos o que valemos. E o que vale o Espiritismo na nossa cidade? Que tipo de cidadão está empenhado em ajudar a construir? Não precisa de ser diferente em tudo, mas o que é que está a acrescentar? O que é a arete para o Espiritismo? Como a propõe à polis?
As outras igrejas, numa luta incessante pelo acompanhar da mudança, na qual até vêem uma virtude, dão origem a novos modelos organizativos ao dinamizarem uma infinidade de actividades, mobilizarem pessoas, continuarem, enfim, por outros caminhos. O Espiritismo, ao contrário, vê na mudança uma manifestação da negatividade, sendo que, a continuar preso ao positivismo do séc.XIX, perdido em definições mais que ultrapassadas, esquiva-se ao balanço que o pos-modernismo impôs aos movimentos religiosos, que é o de uma educação e uma ética indissociáveis entre si e únicos caminhos para uma fé inabalável que está sempre inacabada.
Margarida Azevedo

Bibliografia
JAEGER, Werner, Paideia, Editorial Aster, Lisboa, 1979, “Os sofistas”.
Foto: Ji Li

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

PALESTRA " O Espiritismo em Portugal"


Caros Amigos

Informo que vou dar uma palestra subordinada ao tema "O Espiritismo em Portugal", no próximo dia 26 de Fevereiro (Sábado) pelas 21 horas na Assembleia Figueirense - Figueira da Foz.

O evento é organizado pela Associação Espirita Fraternidade e Luz e o convite foi do Rui Brochado, aquem muito agradeço. A entrada é livre e gratuíta.

São todos benvindos! Muita Paz!

Margarida Azevedo

domingo, fevereiro 13, 2011

Evangelho Incompreendido, 02 Cruxificação, 2ª parte


O filme em questão tem a ver com o livro cuja capa reproduzimos.

Aconselho vivamente a leitura da referida obra, não só por ser o resultado de investigação científica séria, mas e consequentemente pela informação preciosa que contém.

O conteudo desta obra está em conformidade com as teorias reencarnacionistas.

Confrontando-nos com os nossos limites, verificamos que os processos de manifestação da nossa fé continuam os mesmos, perdendo-se as suas origens na noite dos tempos.

Os espíritas com sentido crítico, e preocupados com a sua fé, precisam de ler esta obra.

* Link para o filme, na secção de videos.

Muita Paz !

Margarida Azevedo

sexta-feira, fevereiro 11, 2011

Ética e Educação (ethos e paideia)




Ao nosso olhar, porque nunca ou muito raramente objectivo e preciso, escapam múltiplas coisas para as quais só o outro nos consegue fazer despertar. Porque transmissor de outros conhecimentos, outros interesses, um outro historial, enfim. Desta forma se justifica o quanto é nocivo o isolamento, não apenas em termos de espaço físico, mas também psicológico.
A crítica, indispensável ao aprimoramento das ideias, baseia-se nessa troca de impressões para a qual é imperioso ter como ponto de partida determinados pressupostos: honestidade intelectual; respeito pelo outro; abertura a uma autocrítica sem ressentimentos; aceitação do seu próprio fracasso, encarando-o como ponto de charneira para o aprimoramento de metodologias e colocação de novas questões.
Esta paideia, baseada na vivência quotidiana da nossa capacidade de partilhar, pressupõe uma ética em permanente debate e à qual o movimento espírita não pode alhear-se. Porém, só poderá fazê-lo quando conseguir estabelecer a correlação entre a prática e aquilo que são os seus pressupostos teóricos. Enquanto isto não for feito, o Espiritismo continuará a ser excluído do debate inter-religioso, não só pela falta de conhecimento das matérias em questão, como também pelo facto de a emergência das mesmas lhe passar ao lado. Se acrescentarmos, ainda, a rejeição do outro, porque não espírita, logo portador de outra doutrina (ele está noutro caminho, sempre inferior, no dizer dos falsos espíritas), e consequentemente tido como ignorante quanto ao verdadeiro sentido da vida espiritual, temos implantado nos Centros um ambiente de autêntica xenofobia religiosa, mal disfarçada, pois que o outro, aquele que contribui para que vejamos com mais clareza, relembro, é olhado de cima para baixo, tanto ao nível das ideias bem como daquilo que para ele é importante. Tudo isso é, para o espírita de grandes convicções e de resposta pronta para tudo, assunto de menor importância, pois que o outro um dia virá ao verdadeiro caminho, que é o seu. Dito de outro modo, dia virá, poderá ser daqui a milhões de anos, mas virá, em que o outro falará também com os Espíritos, ouvirá pancadas secas nos móveis da casa, receberá psicografias, terá vidências, intuições, premonições, pintará quadros relativos ao além, escreverá histórias sobre os mortos…
Ora, se alguém pensa que o Espiritismo é isto, lamento. As comunicações fazem parte de todas as mulheres e de todos os homens enquanto tais, e não porque portadores desta ou daquela doutrina; não há modelos ou moldes pré-feitos, nem uma doutrina que, face a estes conteúdos, se sobreponha às outras. A diferença reside em cada um de per si, no aproveitamento que faz da sua experiência ou vivência mediúnica, no projecto educativo que se propôs.
É por isso que nos Centros espíritas fala cada um para o seu lado, diz o que lhe apetece, impõe as suas ideias como verdades incontestáveis, submetendo o ponto de vista da Doutrina à sua opinião pessoal, míope e maledicente: O caso mais premente verifica-se no campo da ética e da moral, (ainda que noutros aspectos também, infelizmente), que confundem de forma abissal, onde impõem regras de conduta fazendo tábua rasa dos pormenores individuais de cada pessoa. Assim, saltando por cima do psiquismo e da vivência material de cada um, dos traços do carácter, como se soubessem tudo e impondo uma solução que dizem ser, ou pelo menos simulam, definitiva, criam dependentes de tal forma que é vulgar a dependência, por exemplo, de passes magnéticos, não ensinando o outro a ser livre.
Desta forma, prevalece o senso comum entre a maioria dos trabalhadores dos Centros. Uns são supersticiosos, outros dão-se ares de fortes, outros, de “humildade”falsa e cínica, dão um aspecto de segurança que não têm e, portanto, doutrinariamente infrutífera. Acreditam em tudo, nomeadamente no sucesso de operações feitas por autênticos curandeiros, em psicografias sem conteúdo sério e cientificamente imprecisas e portanto erróneas, mas bem disfarçadas, outras nem tanto, algumas só porque vêm de psicógrafos de renome (não sei o que isso significa), culminando numa autêntica deificação ou endeusamento do médium. Para cúmulo, há os que fingem incorporar Entidades de luz, proferem discursos sem nexo, ofendem-se quando alguém os põe em causa. Para cúmulo, há os que afirmam que os discursos são da inteira responsabilidade de quem os faz, o que significa que, se alguém disser as maiores barbaridades numa mesa de trabalho, ninguém se sente com coragem de chamar à atenção o orador ignorante, porque ninguém quer assumir responsabilidades e ficar mal visto. Isto significa que, neste chorrilho de falta de educação, o mais importante para esses não é a Doutrina, mas a opinião que os outros têm a seu respeito, preferindo que passem ideias falsas para os que estão a assistir. Pior ainda, isso faz prova de que o mais importante é quem fala e não quem ouve, quando é o contrário que se deve verificar. Esta postura faz-me lembrar a de um rapaz, há dois mil anos, chamado Pôncio Pilatos, que também lavou as mãos, pois não quis ter a responsabilidade de tomar a posição mais correcta. E assim crucificou a Verdade e o Amor no olival da ignorância.
A falta de conhecimentos e a relação passiva para com a ausência de espírito crítico culmina na falta de ética. Esta, ausente dos Centros, que se perdem em moralidades vãs, enquanto não for posta no devido lugar e estudada como qualquer outra ciência humana, continuará a levar o Espiritismo ao silêncio por meios de discursos completamente fora da realidade.
Temos que perceber que ignorantes somos todos nós. Mas a ignorância nos Centros não se limita ao desconhecimento de conteúdos, (isso resolve-se muito facilmente, é por a falar quem saiba o que diz, é contratar quem saiba alguma coisa). Nos Centros é pior. Fala quem não sabe porque interessa que não saiba. Quanto mais limitado o discurso, mais garantida está a permanência de determinados indivíduos dentro da Casa Espírita, conduzindo-a a um lugar escuso dentro da própria Cristandade. Desconhecem, na sua maioria, que dentro de cada igreja ou associação cristã deve fazer parte, como principal objectivo geral, a transmissão missionária do exemplo de Cristo. É essa paideia, saber mais ética, que está a faltar. A Casa espírita existe para educar, por outras palavras, transmitir saberes e formação, caso contrário não faz o mínimo sentido, nem tem qualquer razão de existir.
O Espiritismo, enquanto movimento cristão, tem um compromisso com Jesus Cristo, na divulgação ética do amor e tolerância, a qual deve ser exposta com toda a clareza perante as outras organizações congéneres. Por outras palavras, há que dizer, ou ensinar, porque não?, em que medida o Espiritismo enriquece o Cristianismo.
Pergunto: Alguém, nos Centros, ou até dentro do próprio movimento espírita em geral, se colocou esta questão?
(continua)

Margarida Azevedo

______________________________________________
*Foto de Ji Li

segunda-feira, fevereiro 07, 2011

ARTIGOS ESPÍRITAS - JORGE HESSEN: ESTRANHOS MOVIMENTOS ESPÍRITAS

ARTIGOS ESPÍRITAS - JORGE HESSEN: ESTRANHOS MOVIMENTOS ESPÍRITAS

Caro Jorge
Gostei muito do seu artigo. Defendo exactamente as mesmas opiniões. Apenas discordo, duma afirmação de menor importância, mas que devo referir. Não é verdade, quando você afirma que Cristo Jesus não teve religião. Jesus, nasceu, viveu e partiu para o plano espiritual, Judeu. Esta é a verdade histórica por muito que nos custe. O Cristianismo surge como movimento dentro do judaísmo depois da partida do Mestre e só se autonomiza muitos anos depois e apartir do apostulado de Paulo de Tarso. Apenas pretendia esclarecer esta questão.
Que Jesus o abencoe por tudo o que tem dado a esta maravilhoda Doutrina.
Sempre Amiga
Margarida Azevedo

domingo, fevereiro 06, 2011

HERDÁMOS OS CONFLITOS!




Somos herdeiros de um cristianismo resultante de uma multiplicidade de interesses políticos, sociais e teológicos. Esses interesses criaram conflitos, fricções entre os vários grupos que se formaram, alguns no tempo de Jesus, tais como grupos judeo-cristãos e cristãos gentios, outros após a crucificação, não mais que a continuação dos anteriores como também das novas igrejas formadas a partir do trabalho de expansão levado a efeito pelos Apóstolos e seus discípulos.
Estes conflitos têm em Pedro, habitante de Cafarnaum, e Paulo, cidadão romano, os seus principais protagonistas, sobretudo no que se refere à problemática do cumprimento da Lei e da Circuncisão, temas seminais na formação do Cristianismo. Porque de culturas e tradições diferentes, o seu trabalho de evangelização complementava-se. Paulo, cidadão romano, de origem grega, judaica e frigia, possuía uma cultura grega de cariz platónico, pregou em meios de altos saberes da sociedade helenista; Pedro, ao contrário, fazia parte de meios não intelectuais, tendo apenas contacto com comerciantes e administradores gentios. Era, no entanto, um homem profundamente conhecedor da sua religião, o judaísmo, na sua vertente mais tradicional, facto ao qual podemos acrescentar a experiência que o convívio com Jesus lhe conferiu Assim, Pedro continuava judeu entre os pagãos, enquanto Paulo fazia-se pagão entre os pagãos (ver SCHMIDT, J. São Pedro, pp. 251-264). Isto é, se para o primeiro a salvação vem pelo cumprimento da Lei, para o segundo ela é produto da Fé; o primeiro evangelizava os circuncisos, o segundo os incircuncisos.
Mas estes conflitos não ficavam por aí. Eles tinham origem no seio do próprio judaísmo. Os judeus da diáspora, profundamente helenizados, manifestavam nuanças culturais mercê da influência do pensamento filosófico grego. Estas disparidades culturais passaram para os primeiros cristãos, que podemos dividir do seguinte modo:
Apóstolos;
Discípulos;
Simpatizantes.
Se os apóstolos eram judeus, os restantes eram:
Baptistas, gnósticos, gentios, gentios da diáspora…
Entre os grupos cristãos judeus temos:
Ebionitas
Elkesaítas
Nazoreanos
Ceríntios
Simaquianos
” (KLIJN, A. F. e REININK, G. J., Provas Patrísticas sobre as Seitas Cristãs Judias, citado por BÜTZ, p.151)
Embora haja alguma diversidade entre as crenças destes grupos, James Dunn identificou três características comuns que garantem a possibilidade de colocar cada comunidade sob a categoria de ” judaico –cristã”:
1. Fiel obediência à lei de Moisés;
2. Exaltação de Tiago e menosprezo de Paulo;
3. Uma cristologia de “adopção” – acreditavam todos que Jesus era o filho natural de José e Maria e fora adoptado por Deus como seu Filho depois do baptismo por João.”
(ibidem).
A maioria dos investigadores está de acordo de que estes grupos tinham profundas influências do Gnosticismo, o qual estava solidamente enraizado por todo o império romano (BÜTZ,ibidem)

Alguns, os da diáspora, não falavam hebraico nem aramaico, mas grego. Eram os judeus helenizados dos quais fizeram parte os primeiros cristãos, os chamados cristãos judeus helenistas para os quais Jesus era uma encarnação. Esta doutrina de que Jesus era a encarnação de Deus irá tornar-se o pólo mais importante do cristianismo de raiz gentia. Sobre esta problemática podemos questionarmo-nos, e porque se trata de um pensamento gentio e não judaico, se Jesus era de facto tido como a encarnação de Deus ou se de um deus? Tudo vai depender da cultura do tradutor, da maior ou menor importância que der aos aspectos linguísticos ou teológicos. Para o Espiritismo é mais do que isso. A questão reveste-se de elementos doutrinários sendo que, para a Doutrina, Deus não é redutível a um espaço, seja ele pequeno ou infinitamente grande.
Há que saber, o que significava para o Gnosticismo helénico Deus e deus. No entanto, repetimo-lo, é desta tese, a da encarnação, que o Cristianismo é herdeiro, mas que as Judeus mais radicais não podiam/podem aceitar. Só por curiosidade, este é também o ponto de maior discórdia entre Cristãos e Islâmicos. Tanto para estes como para os Judeus, Deus não é representável figurativamente, não cabe na dimensão humana, deixando para Jesus o papel de profeta. O Espiritismo tem uma posição semelhante, como facilmente se depreende do que dissemos acima.
Assim sendo, a nossa herança cristã primitiva é cheia de conflitos, discórdias e discussões, não só em torno da pessoa Jesus, qual a sua verdadeira natureza, se carnal, se só espiritual, que tipo de reinado era o seu, chegando-se mesmo a questionar se de facto sofreu, fisicamente, ou não na cruz, mas também, dentro de um ambiente judaico e não judaico, a de saber quem seria mais cristão.
Como é de esperar, surgiram várias cristologias, das quais as mais conhecidas serão as que chegaram até nós, escritas por grandes teólogos cujos nomes são bem nossos conhecidos: Mateus, Marcos, Lucas (também autor, ao que parece, de Actos dos Apóstolos), João e Paulo, o grande pensador e divulgador junto dos gentios.
As discussões, por vezes bastante acesas, são representativas de culturas, sensibilidades e fé, vivências e influências diferentes. Por outras palavras, aprendemos com estes conflitos antigos que a presença física de Jesus, o contacto directo com a pregação, curas, prece. etc., não confere melhor entendimento sobre ele do que não o tendo conhecido. A questão situa-se essencialmente na capacidade de pensar sobre Jesus, compreendê-lo, do que propriamente conhecê-lo fisicamente.
Em suma, o Espiritismo precisa urgentemente de se debruçar sobre a História do Cristianismo, a fim de quebrar o isolamento em que se encontra face aos outros grupos cristãos, sob pena de perder o comboio logo à partida, ou seja, na estação sociológica da cidade em que vivemos. É de todo o interesse que faça seminários sobre estas matérias e outras afins, perdido que anda em falsos cursos e falsos saberes, falsos conceitos e conteúdos, a fim de melhor se preparar para os desafios que a espiritualidade deste mundo nos exige, porque a do outro depende em tudo do modo como vivemos cá deste lado.
Mais ainda que em nome da Doutrina, eu diria por respeito ao ser humano.

Margarida Azevedo
______________________________________
Bibliografia
BÜTZ, Jeffrey J., Tiago irmão de Jesus e os Ensinamentos Perdidos do Cristianismo, Lisboa, Editorial Presença, 2006, cap.7.
SCMIDT, Joël, São Pedro, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2007, cap. 17 e 19.
TROCMÉ, Étienne, São Paulo, Mem Martins, Publicações Europa-América, 2004, cap. III, V e VIII.