segunda-feira, outubro 31, 2011

Na ausência de Direitos Humanos mostramos a verdadeira identidade: Bárbaro/a


“A superioridade moral e política de uma sociedade livre e democrática consiste justamente em tratar os seus inimigos como pessoas com direitos fundamentais.”

(Kai Ambos. OA, p.82)

A temeridade criada e mantida pelos media, a construção de lobos humanos devoradores de cordeiros ingénuos e desprotegidos, eis alguns dos fantasmas com que a sociedade pós-moderna é confrontada, independentemente da estrutura social e política, dos índices económicos e culturais, bem como de factores raciais e étnicos. Jamais a dicotomia bons/maus foi tão incisiva quanto hoje, jamais a criação de barreiras com fim a delimitar territórios morais foi tão colossal.

Por outro lado, sendo a Internet uma forma de acesso a todo o tipo de informação, ela é também um meio de diálogo entre culturas, geradora de contágios entre elas, uma forma de derrubar o muro entre nós e os outros. Quem pretender estar mais e melhor informado já não procura este ou aquele jornal, ainda que especializado em determinada matéria. Hoje procura-se tudo no computador. A notícia está no ar, o idioma já não é problema, o tempo e o espaço relativizaram-se. Cabe a cada um escolher, ajuízar, fazer a triagem do que lê.

Porém, numa tentativa de quebrar a aproximação entre cidadãos, as relações internacionais, mercê de políticas discriminatórias manipuladas pelos interesses económicos, inventam buracos negros com discursos impressionáveis, criando, sub-repticiamente, ídolos e dogmas. O objectivo é derrubar a “ingenuidade” de acreditar em tudo o que se vê na Internet. Ensombrando as consciências e criando, não apenas o medo, mas garantido a sua manutenção e desenvolvimento, essas políticas têm adeptos garantidos pois todos querem fazer parte dos bons.

Assim sendo, inventam-se monstros sem quaisquer direitos, no pensar do senso comum que, sem se dar conta, vive manietado e iludido pelos perspicazes manipuladores das mentes e, consequentemente, de opiniões. Gerando o pânico, facilmente se cai na tirania, mascarada de moral puritana que visa banir mais que esclarecer e, consequentemente, ela própria geradora de infurtúnios tão ou mais perigosos e drásticos quanto os que diz combater.

Bin Laden e Kadafi são dois bons exemplos. Em nome de uma espécie de “limpeza social”, que visa a expurgação do mal, e em falsos conceitos de honra e falsas representações da fé, foram imolados na praça pública por multidões enfurecidas, convertendo em heróis os autores dos disparos. O crime torna-se virtude, a irracionalidade movida pelas palavras de ordem o móbil para a concretização de actos que, se praticados individualmente, seriam considerados crime. Nas multidões tudo se altera perigosamente: a fé, o senso de justiça, do dever, a punição, etc. Estes são matéria-prima facilmente manipulável, barris de pólvora que transformam cidadãos comuns em potenciais assassinos, sob a influência de líderes poderosos. “Os crimes das multidões resultam geralmente de uma sugestão poderosa, e os indivíduos que neles tomaram parte ficam depois convencidos que obedeceram a um dever.” ( BON, Gustave Le, Psicologia das Multidões, p.100).

Se acrescentarmos o exasperado sentido religioso, o homicídio colectivo passa a exorcização do mal, impondo crenças em nome de princípios salvíficos. “Convictos da importância do seu papel, começam por organizar uma espécie de tribunal e imediatamente surgem o espírito simplista e a noção de justiça não menso simplista das multidões.” (idem, p.101).

Não estão em causa religiões, estas são usadas como meios para atingir fins, um camuflado cuja acção é idêntica em qualquer parte. Está em causa o Direito, a Lei, a Justiça, a Ordem. E é do direito de cada um, é da Lei, é justo e faz parte da organização de qualquer nação democrática que um ser humano seja julgado em sede própria. “Os terroristas, incluindo Osama Bin Laden, são seres humanos. Assim sendo, são titulares de direitos humanos, entre os quais se incluem o direito à vida, a tratamento humano e a um processo penal justo.” ,afirma Kai Ambos (in: Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 81/82). Na ausência destes requisitos fundamentais dos direitos dos cidadãos, caímos na Inquisição, na perseguição aos Judeus, nas limpezas étnicas...

Em nome da boa moral, no pensar de alguns, criadora de imunidade e portanto justificadora de todos os actos classificados como expurgatórios, desculpam-se e justificam-se decisões bárbaras, tão deshumanas, ou mais, quanto as cometidas pelos suspeitos. Ora, “um Estado de Direito trata também os seus adversários com humanidade. Prende os terroristas e leva-os a julgamento. (…) Matá-las sem processo judicial equivale a uma execução fora da lei, (...)” (KAI AMBOS, p.82, o.c.). No caso de Kadafi, segundo alguns analistas políticos, entre eles Marcelo Rebelo de Sousa, a execução popular deveu-se ao facto de este “saber demais”; quanto a Bin Laden “(...) segundo muitas opiniões, ele era apenas um líder espiritual da Al Qaeda, sem influência sobre operações militares concretas.” ( idem, p.83).

As multidões, o meio mais arriscado e perigoso de tomar decisões, porque super-excitadas, advogam em nome da honra, da pátria ou da instauração de uma nova organização política que, na irreflecção que as caracteriza, irá repor a ordem e a justiça perdidas. Esta retórica tem levado, ao longo da História, à capitulação de governos, à queda de regimes, à exoneração de dirigentes, como também à condenação de muita gente e a actos de vandalismo. Aconteceu nos tribunais populares das antigas colónias portuguesas, em que as pessoas eram fuziladas imediatamente a seguir ao julgamento popular, sem serem ouvidas, aconteceu em Portugal quando multidões irromperam pelas herdades, tomando as terras aos legítimos proprietários, que se trancaram em casa temendo o linchamento que lhes parecia iminente, porém, nalguns casos, não escapando da ira os animais domésticos.

Um cidadão consciente, um país democrático ou um líder político ou religioso só o é verdadeiramente quando respeita a integridade do outro e o encara como ser humano com direitos e deveres. Não se podem legitimar execuções sob o pretexto de banir um perigo. Num estado de direito, os suspeitos têm que ser ouvidos e serem justamente julgados. Igualmente, não são legítimas as defesas baseadas em códigos de valores. A vida de um ser humano está acima de qualquer valor, não é discutível nem negociável, tal como o tribunal não é o lugar onde se julga a vida de alguém, mas os actos concretos.

A fé mal dirigida é das coisas mais perigosas que há. Aquele que a possuí torna-se cego e irracional, de tal forma que se julga a voz directa de Deus, agindo e pensando em Seu nome. Esse quadro alucinado da fé transforma o crente mais pacífico no terrorista mais bélico, sob o obscurantismo de falsos sentidos de verdade.

Esquecendo-se de que Jesus foi uma vítima das multidões, de interesses políticos bem como das disputas e intrigas entre líderes religiosos, os cristãos continuam a agir como estes. Estão longe de uma religiosidade que se pretende pacífica, baseada no perdão infinito.

Os cristãos não podem arrogar-se como os únicos detentores da verdade, nem pretender que Jesus seja igualmente aceite por todos os homens/mulheres. Fora de nós há um mundo imenso para conhecer, do qual a fé não pode ser um elemento impeditivo. Só assim foi possível que Jesus tivesse ficado maravilhado com a fé do centurião romano (Mt 8: 5-13; Lc 7: 1- 10), acrescentando “ que muitos virão do oriente e do ocidente, e assentar-se-ão à mesa com Abraão, e Isaac, e Jacob, no reino dos céus;” (Mt 8: 11). Esta visão universalista da fé não é uma conversão, mas a congregação da irmandade de todos/as os/as filhos/filhas de Deus.
Margarida Azevedo

Bibliografia
AMBOS, Kai, “Os Terroristas também têm Direitos”. OA, Boletim da Ordem dos Advogados. n.º 81/82, Agosto/Setembro, 2011, Lisboa, pp. 82-83.
LE BON, Gustave, Psicologia das multidões, Publicações Europa-América, Mem Martins, s/d, cap.I, II e IV, pp.21-39 e 47-50.
Bíblia Sagrada, trad. João Ferreira de Almeida, Sociedades Bíblicas Unidas, Lisboa,1968.

quarta-feira, outubro 26, 2011

CONFERÊNCIA NA FIGUEIRA DA FOZ

Realiza-se no próximo dia 5 de Novembro (Sábado) pelas 15 horas na Assembleia Figueirense, uma conferência proferida por Emanuel Sáskya, subordinada ao tema: Encarnar, Desencarnar, Reencarnar - O Ciclo da Vida. O evento é organizado pela Associação Espiritualista Fraternidade e Luz, que é coordenada pelo irmão Rui Brochado.
A entrada é livre e gratuita e são todos benvindos.

segunda-feira, outubro 24, 2011

NA ERA DA GANÂNCIA


As referências identitárias tais como a nacionalidade, o idioma, a cultura, a família constituem o fundamento da integridade social e política de todo o ser humano, sem excepção. Elas são o palco sobre o qual representamos todas as nossas acções, são a nossa referência, a estrutura causal responsável por uma parte significativa do que somos.

Não raro, porém, entramos em conflito com essa estrutura esquecendo que é dentro da mesma que nos revoltamos, tal como o jovem que diz que o pai está ultrapassado, mas a viver na casa do pai, ou como Job que fala com Deus contra Deus. São os sinais do crescimento, indícios de um ímpeto de liberdade e emancipação absolutamente necessários; a luta contra a injustiça e as discriminações de toda a ordem.

Se assim não fosse, o progresso estaria comprometido, condenado para a eternidade a ser letra morta, perdido entre farrapos a que chamamos ancestralidade. Superar as bases, conferir-lhes novos significados e engrandecê-las de forma a arrastar, positivamente, o mais velho pode não ser fácil, mas é um desafio que se impõe a cada nova geração.

Viver na tradição é viver numa geração a que não se pertence, é hipotecar o futuro, virar as costas à responsabilidade de engrandecer a sociedade mediante o nosso empenho enquanto cidadãos. Contudo, isto não significa anular tudo o que ficou para trás.

Se colocarmos as questões: O que é que a humanidade cresce com a minha presença? Em que medida contribuo para o seu enriquecimento? De que forma exerço os meus deveres cívicos e que legado deixo para as gerações futuras, verificamos que a nota atribuída é fraco.

O empobrecimento dos valores, reduzidos a um número mínimo, a falsa ideia de um mundo onde tudo está feito, pronto, acabado, com fim a anular o indispensável espírito crítico e a criatividade, culminam numa timidez e apatia que fazem perigar o próprio sentido de humanidade.

O mundo não está pronto, está por fazer; caminha numa eterna novidade de que cada um de nós é portador. Há que dizer bem alto às novas gerações que não nasceram num mundo já feito, mas que lhes cabe continuar na sua construção.

Os nossos jovens estão a ser “educados” para trabalhar e adquirir competências. O maior valor dos nossos tempos consiste em tirar um curso qualquer e exercê-lo, ou melhor, ganhar o mais possível. Quem não partilhar deste ideal é perigoso; quanto aos que partilhem, mas noutros moldes e, portanto, não conseguem lá chegar, são os fracos, os excluídos a quem a miséria espera.

O trabalho deixou de ser um caminho para a realização pessoal, o contributo para a sociedade na engrenagem complexa que a caracteriza. A progressão no trabalho deixou de ser o aperfeiçoamento de técnicas e de saberes na base de uma sólida formação ética e deontológica. O curriculum já não significa percurso, corrente ininterrupta da nascente até à foz, limando arestas à sua passagem, desenvolvendo o prazer da mestria de um ofício que deixaria marcas para a posteridade. A formação contínua já não é a consciência desse percurso e da sua real necessidade. O trabalhador talentoso já não vê o seu nome no quadro de honra da fábrica ou da empresa. Os talentos deixaram de fazer falta. Estão obsoletos, e o quadro de honra passou a tentáculo político.

Hoje, a formação contínua do trabalhador é uma falsa formação. Ela é sobretudo um reforço da ideologia vigente, cujas novas tecnologias são o instrumento. Além disso, a formação não garante a permanência do trabalhador no seu posto de trabalho. Facilmente este é substituído por outro em função da idade, da sua maior permeabilidade ao novo sistema laboral, por ser homem ou mulher, ter ou não uma família, ser pai ou mãe. São estes alguns dos factores que influem na permanência e na manutenção do posto de trabalho. Pode morar a duas horas da empresa, pode chegar desgastado ao trabalho com três horas de sono mal dormidas. Nada disso é importante. Aliás, é-o noutro contexto. O cansaço não deixa pensar, não cede tempo para a família, nem tão pouco permite que esta se constitua.

Se ajuntarmos a isto conceitos de conforto sinónimos de luxo, temos o aliciamento num circo que mais cedo ou mais tarde pegará fogo. Ele transformar-se-á em ganância, a que mais docemente chamam protagonismo, onde viver significa exibir. E vale tudo: exibem o carro, a casa, a escola dos filhos, as marcas de tudo e mais alguma coisa. É para isso que vale a pena trabalhar. É o novo conceito de gente, de pessoa e de cidadão, porque tudo o mais não conta. È o novo conceito de trabalhador competente e realizado. É aquele que, quanto ao ter, não diz “Basta!” Porque não consegue, porque não o deixam, porque é demasiado ganancioso.

E o processo irá até ao primeiro ataque cardíaco, na melhor das hipóteses, ou até ao AVC (Acidente Vascular Cerebral). Nalguns casos, raros, terá uma boa assistência médica de que se gaba, porém, os melhores tempos de vida enquanto homem/mulher, os tempos para progredir, ter e viver com uma família, o tempo para a fé estão irremediavelmente perdidos. Não há assistência que lhe valha.

Deus surge como refúgio, e não como Ser Supremo. A pessoa diz que se modificou com o problema, que a vida tomou outro significado, mas esquece-se de que para trás ficou tudo o que de melhor Deus lhe deu e que, a seu tempo, não soube aproveitar. A fé torna-se uma tábua de salvação, fragmentada, o último investimento frágil. Se vier outro problema, é muito natural que surja a revolta contra tudo: Deus, fé, mundo.

O ganancioso não sabe, mas tudo isso fez parte de um episódio doloroso a que chamamos, em Espiritismo, suicídio. Esta noção de suicídio mais não é que o processo social e político em curso que caracteriza a nossa sociedade pos-moderna, o qual não dá mostras de abrandar. As pessoas são aliciadas, manipuladas de tal forma que perdem a noção do que é para si, do que realmente está ao seu alcance, culminando em doença precoce e na morte prematura. Morrem mal amadas, abandonadas e vazias.

A felicidade é uma viagem muito grande, um horizonte sem fim à vista e, portanto, não pode estar aprisionada ao luxo, à vaidade tola, à anulação de si próprio e do outro. A felicidade só é possível mediante o prazer de estar com o outro, no reconhecimento de dignidades, apetências, caminhos…

É importante não confundir progresso com anulação das bases; ninguém chega a catedrático sem passar pelos bancos da Escola Primária. Progredir não é anular, mas acrescentar, desenvolver, expandir.

Os valores de hoje não têm forçosamente que anular os de ontem. Poderá e deverá haver novos valores, mas isso não significa total supressão dos antigos. Os velhos podem ser acrescidos de mais sentido, mais e maior abrangência significativa. No entanto, o problema não reside na dicotomia velho versus novo, mas na capacidade de resposta que os novos valores têm para nós, como os dos nossos avós tiveram para eles. Eles tinham os valores como um fundamento ao qual iam beber na procura de soluções. Tinham muito claro o que é de César e o que é de Deus, isto é, homem é homem e sagrado é sagrado. Hoje, tudo se confunde. Crendo-se deus, perde-se o homem. Não se pode confundir a fonte com o que dela jorra. E esse é que é o problema.

Margarida Azevedo

segunda-feira, outubro 10, 2011

A MUNDIVIVÊNCIA DOS NOSSOS AFECTOS

(Continuação)

Passando à análise do que se passa no terreno, vejamos o que nos diz, numa conversa informal, uma professora de História, com dez anos de serviço, a leccionar na zona pedagógica de Lisboa, linhas de Sintra e Cascais, tendo leccionado dois anos no estabelecimento prisional de Caxias.

P - Sei que tens uma vasta experiência com alunos-problema: delinquentes, filhos de pais drogados...

R - Sim, sim. Já sei o que vais perguntar. As causas da delinquência começam com a família. É o que toda a gente diz. E não é mentira.

Mas que família? As famílias estão separadas e, por isso, não as considero família. Mais de 50% dos meus alunos são filhos de pais divorciados e, destes, uma grande fatia são drogados.

Cresce o número dos que vivem com os avós e com as mães. Por outras palavras, há um número crescente que vive sem qualquer contacto com o pai, ou que só o vê aos fins-de-semana.

Por seu lado, esses pais de part-time são demasiado permissivos, dão-lhes tudo... pensam que superam as carências agindo dessa forma.

Quanto às mães, as que vivem sozinhas, umas têm namorados, o que não é bem visto pelos filhos, outras estão sós, sem qualquer satisfação afectiva. A maioria tem problemas financeiros e sentem-se sem qualquer apoio de um homem.

P - Que apoio achas que essas famílias deviam ter?

R -  Em primeiro lugar, a aceitação do estatuto de divorciadas por parte da sociedade e por parte dos próprios familiares. Não está em causa, no meu ponto de vista, o ajudar ou não financeiramente, ou por meio de instituições que pregam a boa moral e os bons costumes. Quanto a mim, a ajuda maior vem de um emprego cuja remuneração dê para viverem com dignidade.

Um outro aspecto, é a falta de uma política decente para a família. A trabalhar-se ao ritmo a que se trabalha, gastando horas em transportes, não é o caminho mais directo para o apoio à família. Para onde vão os alunos que saem da escola à uma da tarde? E não penses que são apenas os do secundário, há crianças de 9 anos que, na parte da tarde, andam completamente à deriva. Essa história dos tempos livres nas escolas é muito bonito para se falar em programas de televisão, mas na prática... é o que se sabe.

Tenho alunos que vivem fora de casa desde os 3 meses, que vêm a família à noite.

P - Estás de acordo com os que afirmam que aquele período pós-parto é fundamental para a mãe e para a criança?

R - Claro. Já pensaste que a maioria das mulheres que são mães são frustradas pois não têm o prazer de ver crescer os filhos, Que os lançam nos infantários de madrugada e os vão buscar à noite, tratados sabe Deus como?

A licença de parto, que deveria ser de um ano, é o que se vê.

P - O que pensas das tão vulgarizadas “novas famílias”, isto é, das famílias compostas por pessoas que vêm de divórcios, que refizeram a vida?

R - É vulgar, debaixo do mesmo tecto, encontrarmos situações, face aos filhos, desta natureza: os meus, os teus e os nossos. Isto significa que crianças sem nada em comum umas com as outras vivem na mesma casa, muitas vezes com origens culturais completamente diferentes. São os filhos dele, sãos os filhos dela, e são os que ambos geraram. Compreendes?

Mas quando estes casamentos dão para o torto... aí é que são elas.

Uma aluna, de 10 anos, perguntava-me, muito aflita: Como é que se chama a mulher que vive com o meu padrasto? Ao princípio não percebi.

Isto é assim: a criança vivia com a mãe e o padrasto. O pai estava sabe Deus onde. Um dia, a mãe fugiu com outro homem e deixou-a com o padrasto. Este refez a vida com outra mulher. Resultado, a criança via-se com uma família que não era a dela. A mulher do padrasto não é mãe, não é madrasta. O que é então? Fiquei realmente embaraçada.

Esta criança era extremamente agressiva e autoritária.

P - E os avós?

R - Por vezes dormia em casa deles, mas diziam que tinham mais netos e, por isso, não queriam fazer discriminações, como se esse fosse o verdadeiro problema. Quem me parece que era discriminada era a mãe da criança...segundo o que pude avaliar do que a miúda me contava, tinha comportamentos que mostravam descontrolo.

P - Sobre alunos indisciplinados, há mais alguma coisa que queiras acrescentar?

R - Não muito mais. Apenas que a maioria deles vem de famílias separadas, ou de famílias muito instáveis. Isto é quase toda a gente; numa turma de 27 alunos, há 20 nestas condições.

Que opções? Ou a mãe consegue viver, e de certa forma aceita, no regime patriarcal, ou é mãe sobrevivente que tenta, com dignidade, dar uma vida limpa ao filho, independentemente da classe social a que pertence... nem que seja uma prostituta.

Sabes que a sociedade cobra muito caro a independência da mulher. Se tiver filhos, está mais exposta.

No caso das professoras, como a profissão é digna, são mais aceites. Parte-se do princípio de que é bem casada, ou pelo menos bem comportada. Embora não se vista como as professoras de antigamente, é essa a imagem que deve dar. Não te esqueças de que o ensino é das profissões em que se está mais exposto.

P - Além da questão familiar, que outras causas estão na base da indisciplina dos alunos?

R - Bem, eu ponho à cabeça a televisão, a banda desenhada e os filmes de um modo geral.

A televisão apela ao sexo pelo sexo, quer através dos filmes e das telenovelas, quer na publicidade. Consumir determinado produto é bom para ser musculado, sensual e, já se vê, atraente. Na televisão tudo se mistura.

O herói da banda desenhada é sempre um justiceiro que pratica ou impõe a justiça de uma forma não convencional, melhor dizendo, chocante para a maioria das sensibilidades. Há sempre um apelo à força e, só muito raramente, à inteligência. E tu sabes que a tendência dos alunos é copiarem os modelos. E quando os modelos não são bons, já se vê...

Os bons programas televisivos, raros, dão a horas mortas. É pena. A vertente educativa da televisão perdeu-se.

P - Bem, confesso que antes de falares da televisão pensei que ias abordar a questão da sociedade. Hoje, parece, não há ninguém que não acuse a sociedade de impor um clima de “salve-se quem puder”. O que pensas disso?

R - Oh, claro!, A sociedade é muito pesada. Não passamos de um bando de sobreviventes. Conseguir acompanhar o ritmo que ela impõe não é nada fácil. A maioria dos professores da minha escola vive sem pachorra para aturar a pressão que cai sobre eles.

Um professor é o bode expiatório de tudo. Se o menino tem más notas, a culpa é do professor; se o menino não estudou, diz que o professor explicou mal a matéria; se o menino não tem interesse, é o professor que não o sabe fazer despertar.

E ainda que algumas destas questões possam ser verdade, o que não é bem assim, o professor nunca é desculpado. O professor não pode errar, não pode estar mal disposto, não pode ter problemas. Esquecem-se de que o professor também tem família, também pode ser divorciado, também pode ter filhos problema.

A sociedade não aceita isso. Ela não está preparada para aceitar que os seus educadores sejam gente que também sofre. Ela apenas sabe exercer uma pressão enorme sobre toda a gente. E os professores, que têm um papel fundamental, sentem-no mais que qualquer um.

P - Já que abordaste a questão dos professores, o que achas que deveria mudar entre eles?

R - Há tanta coisa que devia mudar. Em primeiro lugar deixar de haver discriminação entre a classe docente. Há diferenças entre as licenciaturas, por exemplo EVT (Educação Visual e Tecnológica), os que têm habilitações para dar uma matéria e dão outra, como os de Contabilidade que dão Matemática. Mas isso não é o maior problema. O verdadeiro problema é empurrarem os alunos que ninguém quer, que são cada vez mais, para os professores mais indesejados, ou para os mais novos. Isto leva os alunos sentirem-se a mais na própria escola.

Por outro lado, há um grande número de professores que estão longe das raízes: marido, mulher, filhos; estão longe e ganham o mesmo. Não há motivação.

Depois o Ministério vem pedir que se façam milagres para fins estatísticos... passam os alunos que não sabem ler nem escrever.

O professor é mais um psicólogo, mãe, assistente social. O Professor é tudo. Há uma desvalorização do nosso trabalho de professor. É a lei do safanço, do desenrascanço. A sede de saber está fora de moda. O saber já não dá dinheiro.

Vivemos um período de loucura, podes crer. Os miúdos não têm valores a que se agarrem. Não sei o que fazer, é o que me dizem muitas vezes.
(Continua)
Margarida Azevedo

sábado, outubro 01, 2011

ANTES E DEPOIS (qualquer semelhança é mera coincidência)


Sem descambar em saudosismos ridículos, pois com tal não me identifico, achei no entanto que devia partilhar algumas das minhas cogitações sobre o que era o Espiritismo há mais de trinta anos e o que é hoje. A diferença é de tal modo abissal que tenho a sensação que se trata mesmo de outra doutrina.

Para quem nasceu espírita, e estudou dentro de parâmetros cujas directrizes estavam orientadas para a modificação interior do ser humano, tudo lhe parece dramaticamente ausente de fundamentos, não só pela apatia dos ouvintes nas sessões, como pela técnica elaboração do discurso por parte de quem pretende transmitir alguma coisa.

Os trabalhadores da velha guarda, tantas vezes em condições bastante hostis, divulgavam o Evangelho em salinhas humildes, dando as sessões a um público sedento de esclarecimento e sob o olhar atento da polícia. Já quase todos morreram. Se tivessem desencarnado, ainda seriam lembrados, provavelmente. Mas não. Morreram mesmo. Ignorados, desprezados, vencidos. Desactualizados e antiquados, na míope observação de alguns, pois não se escondiam na carapaça da Doutrina, como hoje, onde cada um diz o que lhe vem à cabeça sob o nome de Espiritismo.

Para eles, todos eram bem-vindos: gente de todas as raças, etnias, culturas; ricos e pobres, gente de todas as idades. Às vezes lá aparecia um ou outro que nem português falava, mas que percebia os trabalhos, lá isso percebia.

Naqueles tempos também não era costume a prática inquisitorial da expulsão. Davam preferência à oração através da qual era solicitada a protecção de Deus, de Jesus e dos bons Espíritos. Pediam-lhes a limpeza do ambiente através de mentes higienizadas, lembro-me de ouvir tantas vezes. Era a Fraternidade celebrada em cada sessão, num esclarecimento simples, numa prece cheia de amor. Foi assim há séculos. Ninguém os recorda, ninguém ora por eles. É lamentável.

O Centro onde comecei situava-se discretamente num 2.º andar, num prédio muito velho, numa avenida periférica de Lisboa. A dirigi-lo tínhamos um grupo de pessoas unidas pelo muito amor à Doutrina, encabeçado por um director versado no que a mesma tem de mais sublime, a saber, amor versus instrução.

Hoje, um Centro deve situar-se em zona alta da cidade, preferencialmente. Se tal não acontecer, deve ao menos estar em zona de fáceis acessos, ou onde seja facilmente detectável ao mais desatento transeunte. Quanto à Direcção, geralmente constituída por uma lista vencedora após renhida campanha eleitoral, silenciosa ou barulhenta, ou num zumbido do diz que diz, é encabeçada por alguém versado em retórica, o que em linguagem comum significa “ter muita palheta” ou “ter muito parlapier”. Saber Espiritismo é o que menos importa. O importante é ser astuto e saber levar a água ao moinho, isto é, convencer o auditório.

Dantes, o Centro era constituído por algumas salas contíguas, um corredor muito comprido que dava acesso fácil a todas elas, uma casa de banho relativamente grande e ao fundo uma cozinha, igualmente grande, onde era confeccionada a sopa dos pobres. A casa estava modestamente mobilada. A livraria e a biblioteca estavam lado-a-lado, e quer numa quer noutra os livros estavam dispostos ora com rigor, ora sem ele. A sala de sessões públicas resumia-se a umas quantas cadeiras enfileiradas como num anfiteatro, uma mesa com O Livro dos Espíritos e O Evangelho Segundo o Espiritismo, e um aparelhómetro muito antigo (ainda a cassetes) para dar uma musiquinha ao pessoal, a fim de criar o ambiente apropriado para a prece. Atrás da mesa, viradas para o público, estava o exacto número de cadeiras para os oradores. Tudo do mais humilde. Nas paredes um retrato de Kardec, um ou outro poster ou quadro alusivo à Natureza, ou de algum médium exemplar.

Hoje, os Centros são espaços reluzentes de tudo o que há de mais moderno e sofisticado. Ele é aparelhagem de luz e som caríssimas, ele é cadeiras estufadas de modernos designs, ele é computadores, data shows, retroprojectores, ecrãs, tudo o que de melhor há em áudio e vídeo. A mesa de trabalhos é uma sofisticada obra de arquitectura, minuciosamente preparada para o efeito, e, nas paredes, as prateleiras para essa maquinaria toda, além de outras parafrenálias que não se sabe para que servem. Quando alguma coisa falha, lá se vai o trabalho por água abaixo. O auditório começa a ficar nervoso, gera-se um zumbido frenético enquanto algum expert, há sempre, tenta colmatar a falha. Quando há quadros nas paredes, estes têm um aspecto muito místico, consistindo em imagens de médiuns envoltas em jogos de luz complexos ou em fundos cénicos pouco definidos. São os milagreiros dos Centros, os tão adorados médiuns e respectivos Espíritos comunicantes.

Dantes, as pessoas vinham ao Centro para “tratar”os seus problemas espirituais, serem esclarecidas, ouvirem atentamente as leituras e os seus comentários. É claro que o

Evangelho era a obra principal e os comentários eram livres. Isto significa que o comentador, sendo versado na Doutrina, interpretava os textos recorrendo, muitas vezes, a outras obras, algumas fora do Espiritismo, se isso viesse a propósito. Desta forma, cada grupo tinha a sua forma de trabalhar, o que conferia ao Centro um colorido e uma vivacidade que muito o enriquecia.

Hoje, mediante um lugar de direcção que se pretende manter custe o que custar, e ignorando as linhas condutoras da Doutrina e os grandes problemas da Humanidade, bem como tudo o que de mais nos rodeia, o comentador tem de ser um indivíduo da inteira confiança da Direcção. O que ele diz é voz de quem dirige. Assim, ouvir o Joaquim ou a Maria, é indiferente. Falam todos pela mesma boca; um pensa por todos.

Dantes, o discurso apelava essencialmente à modificação interior da pessoa, à sua capacidade de perdoar, a uma vida de altruísmo. Pretendia-se educar para a vida, ensinar para a paciência, desenvolver aptidões para que todos pudessem vir, um dia, a fazer parte dos trabalhadores da Casa.

Hoje, desenvolve-se a dependência. É preciso que a casa se encha, mas é fundamental que cada um saiba qual é o seu lugar: uns falam, outros ouvem; uns mandam, outros obedecem; uns dirigem, outros são dirigidos. Mas… mas, quando algum tem ordem para saltar o muro, é imperioso saber que a obediência é uma grande virtude, pois caso contrário os Espíritos inferiores tomam conta dele.

Dantes, ensinava-se que imitar Jesus significa criar uma aura protectora, lembrando que ninguém vai ao Pai a não ser por Seu intermédio. A santificação ou a luz do Espírito era o objectivo principal de toda e qualquer palestra. Desta forma, apelava-se ao poder da prece, da meditação e do bem-fazer. A depressão encontrava no esclarecimento parte da sua resolução, assim como a angústia e a descrença em Deus. Orar e fazer o bem era o melhor remédio contra as más influências, quer dos seres desencarnados, quer dos encarnados. Estas eram as bases da fé, o fundamento da Casa.

Hoje, este discurso perdeu todo o sentido. A quem está deprimido aconselham que vá para um ginásio, pois a depressão é bem capaz de se dever mais a um problema de sedentarismo que de espiritualidade, ou então mais a um entorpecimento das articulações do que a um certo egoísmo ou falta de fé. Quem sabe, talvez a fé também seja um problema de celulite ou de artroses nos joelhos. Mas isto não fica por aqui. Aconselham idas ao cinema ou simplesmente a andar por aí, dar um girinho. É que desta forma talvez se encontre alguém, talvez os bons Espíritos tragam a companhia que está a faltar para aconchegar a alma. Por outras palavras, andar à pesca de alguém pode ser uma fantástica prática espiritual.

Dantes, o Centro convidava oradores de outras doutrinas, de outros Centros, quer de Portugal, quer do estrangeiro. Todos eram de igual modo recebidos. Todos eram atenciosamente ouvidos e as questões colocadas eram todas elas de boa fé.

Hoje, os oradores de outras doutrinas nem tão pouco são convidados. Esses não entram nos Centros. Quanto aos de outras Casas Espíritas, só são convidados os que fazem parte dos conhecimentos pessoais dos seus dirigentes e, portanto, pessoas nas quais depositam absoluta confiança. Ninguém quer correr o risco de ser confrontado com outras abordagens doutrinárias, o que poderia fazer perigar o bom funcionamento do Centro. Os convidados de hoje são psiquiatras, psicólogos, médicos dos mais variados colégios de especialidade, juízes, advogados, biólogos, como se estivesse ao seu alcance responder, entre outras questões, porque é que existe cosmos e não caos, por exemplo, explicar os fundamentos da nossa existência, ou ainda os fenómenos mediúnicos, a sua génese e as suas causas remotas.

Sem pôr em causa as competências científicas dessas pessoas, há que perceber que convidá-las não tem como objectivo esclarecer quanto a questões doutrinárias, mas tão só usar sub-repticiamente os seus conhecimentos com o objectivo de sedimentar afirmações que nada têm a ver com as verdades da fé. Para esses, a fé já não faz sentido, é tudo uma questão de ADN. A Doutrina de Jesus passou a explicar-se pelos genes e não pela Ética, Moral, Religião, Teologia, Exegese. Tudo isto está excluído dos discursos espíritas. Quanto à Bíblia, mais de 90% é para deitar fora.

Assim, estes novos ares que se respiram dentro dos Centros estão a defender a existência de uma casta baseada na superioridade biológica, ainda que muitos não se dêem conta disso, por meio do que poderemos chamar discursos subliminares. Esta fascinação colectiva de consequências desastrosas a todos os níveis, já se estende ao próprio Jesus. Não falta por aí quem diga que deixou descendência, tal como não falta quem pesquise quem são os seus legítimos herdeiros, não já aqueles que querem fazer a vontade do Pai ou subir até Ele por Seu intermédio, mas aqueles que, através de uma genética superior, são os verdadeiros escolhidos.

Ora, o Espiritismo, bem como as demais Doutrinas sérias, está para além de biologismos. Ensinam essas doutrinas, das quais o Espiritismo é uma delas, que a fé é parte integrante de todo o ser humano, independentemente da sua constituição biológica.

Quem ler as Bem-aventuranças depara, de facto, com o apelo a um ser superior, aquele que muito quer servir, muito quer amar. E isso está ao alcance de todos os homens, sem excepção. Servir e amar, sempre, é esta a acção superior e esclarecida da fé. E isto não é matéria jurídica, nem biológica…É resultado das muitas vivências que se perdem na noite dos tempos. É imemorial.

Por isso a maioria dos discursos de hoje não apelam a coisa alguma. São tão áridos como as negatividades que os produzem.

Muita paz
Margarida Azevedo