domingo, setembro 24, 2017

O FUTURO DA FÉ OU A FÉ DO FUTURO


 

Se estivéssemos sobre uma ponte a olhar para baixo, uma ponte sobre uma auto-estrada, por exemplo, observaríamos automóveis a rolar nos dois sentidos num movimento sem fim. Perguntar-nos-íamos, certamente, qual o seu destino.

A nossa vida trilha um rumo de alguma forma idêntico. Percorremos um caminho sem fim, nem todos no mesmo sentido, numa panóplia de objectivos, tantos quantos os transeuntes. Por vezes, enganamo-nos e temos de mudar de caminho, às vezes até voltar atrás e recomeçar de novo.

Se pensarmos que, entre o infinito de combinações moleculares possíveis,  eis-nos na vida para a maior certeza que temos, para muitos a única, experimentarmos a morte, isto dá-nos que pensar. Ora, como a razão, sózinha, parece impotente para descortinar tais mercês, entramos no campo da fé. Esta, porém, não nos oferece melhores perspectivas na medida em que traça horizontes inter-estelares, projecta-nos no espaço, criando escalas de níveis comportamentais, supostamente mais ou menos assertivos, face ao Desconhecido. Assim, voltámos ao ponto de partida, melhor, nem de lá saímos. Por outras palavras, vivemos uma realidade sem fim, em torno das mesmas preocupações existenciais, as dos homens das cavernas, a saber, a luta pela sobrevivência, em dois sentidos, principalmente: não se deixar devorar pelas feras e espantar-se com a grandiosidade da abóboda celeste.

Entretanto o humano vai girando entre ódios e amores; vai agindo na natureza, que foi posta à sua mercê, diz-se, sabendo de antemão que não age para com ela da melhor forma; vai construíndo uma segunda forma de vida, mecânica, baseada em tecnologia cada vez mais complexa, inteligências arificiais sofisticadas, a tal ponto que lhe dão ordens tão “perfeitas” que sem elas seria o descalabro, basta imaginar o que seria uma cidade sem semáforos. Enfim, a nossa organização mental,  a par da social e política, está directamente, e cada vez mais, dependente da máquina.

Mas não só. A afectividade também. A realização pessoal, a estabilidade emocional e conjugal, as relações sentimentais. Tome-se como exemplo um casal estéril. É infeliz porque não consegue ter filhos, que agora se diz biológicos, tal como os nabos e as demais hortaliças e frutas e animais... Dantes dizia-se que é Deus que assim o entendeu e, como tal, há que aceitar o desígnio de Deus. Ora a ciência e a tecnologia, conjuntamente, sobrepõem-se a essa vontade, e hoje só não tem filhos quem quer. A solução é bastante diversificada: aluga uma barriga a alguém que precisa de ganhar uns trocos jeitosos; toma drogas para fazer aumentar a produção de óvulos ou de espermatozóides; a mulher recebe óvulos de outra mulher, o marido exporta espermatozóides que são depositados no útero de outra mulher, enfim, a inseminação artificial, etc.; ou então adoptam, o mais trabalhoso, juridicamente, porque não depende do laboratório nem precisa de ambiente aséptico, mas de passar à lupa a vida económica e os hábitos do casal, o que não se verifica para os anteriores, para os quais basta ter uma conta bancária bem recheada.

Assim sendo, vamos ter uma humanidade dividida em dois: os filhos da vontade de  Deus, os naturais, e os filhos da técnica, os dos tubos de ensaio. Os primeiros com todas as nuanças que a Natureza lhes confere; os segundos perfeitamente escolhidos segundo a engenharia genética, onde é procurada a superlativa inteligencia e o corpo forte e perfeito, prontinhos para ganhar a tudo o que lhes aparecer pela frente, quer os da própria “espécie”, quer os “naturais”.

Imagine-se, numa escola, o preenchimento de uma ficha no computador: Nome:….,; filiação: laboratório 21, avenida 7349, Parque Tecnológico do Robot 35. Encarregado de Educação: um casal simpático; Morada: rua dos Pregos Cabeça-de-Tremoço, n.º21, 4,ºesq., Bairro dos Campeões, 20143-111 Aço Inoxidável.

Porém, continuamos sem saber o que é o Cristianismo, não superámos os textos do Antigo Israel, estamos exactamente ao mesmo nível dos homens e mulheres da Bíblia Hebraica, continuamos sem saber quem somos, … e, a continuar assim, o ser humano está cada vez mais longe de o saber. A máquina está a abafa-lo e a conduzir à desvaloração dessa pesquisa. Por outro lado, ter que comer tornou-se o mais importante, num mundo onde a pobreza e a fome estão a tomar proporções assustadoras. Este pormenor há muito que devia de ter sido superado, pois a sobrevivência há muito que devia estar fora das nossas preocupações. Por outras palavras, a máquina criou a ilusão de que estamos diferentes dos homens das cavernas, mais compreensivos, mais unidos, mais civilizados. Puro engano.

O Evangelho tornou-se um conjunto de textos impraticáveis, dar a outra face é idiotia, orar actividade de velhos e, se estudado, o Novo Testamento é livro de argumentação de fés cada vez mais fragmentadas, perdidas nas ideologias intransigentes dos líderes religiosos.

A máquina está a tirar os reflexos, a capacidade de pensar, está a debilitar os músculos criando inaptidão para tarefas tão simples como subir e descer escadas. O ser humano tornou-se uma espécie dependente de botões, geradora de virtualidades, coleccionadora de solidões. Aquilo que poderia ser uma libertação está a tornar-se numa praga na medida em que, se não souber impor-se, o humano não irá suportar a solidão, tornar-se-á perigoso para si mesmo uma vez que a vida foi relativizada enquanto valor supremo.

Pergunta-se: qual a sustentabilidade do humano face às mudanças tão radicais da nossa modernidade? Em que se fundamenta este desejo de perfeição tão estranho e simultaneamente o desejo de regressar ao mundo natural, espontâneo e selvagem? Repare-se que já não basta a questão para onde iremos, projectando-nos no para lá, numa vida relativamente feliz ou atormentada e sequencial à vida carnal, mas, muito incisivamente, para onde caminhamos cá deste lado.

O mundo natural está longe de ser uma procura ecológica, apenas. É, e muito mais, a tentativa de um regresso à vida intra-uterina, da psicanálise. É um mecanismo de fuga face ao pânico generalizado da suspeita de estar fora de controlo, face à máquina. Com isso, a internet tornou-se o lugar onde se expõem publicamente os desejos mais íntimos, nomeadamente o de partilhar a vida com o desconhecido, o oferecer-se para ser amigo de alguém, querer ser amado ainda que virtualmente. Quem o faz pretende que a sua vida seja importante para alguém no lado de lá do écran. É o mundo da disponibilidade sem fim.

Stephen Hawking informa que a destruição da humanidade far-se-à de três formas: através da inteligência artificial, porque a evolução humana é mais lenta que a tecnológica, e é provável que as máquinas atinjam o domínio completo da humanidade; pelos extra-terrestres, milhões de vezes mais avançados do que nós, e dominar-nos-ão facilmente; pela agressividade dos homens, uma vez que podem acabar com a própria humanidade através de uma guerra nuclear.

Por isso, não é tão descabido assim que a humanidade esteja a sobrevalorar o lado milagroso de Deus, caindo numa fé cega. Deus criou o mundo, diz a fé, mas a razão alerta que somos os seres mais destruidores, logo os mais perigosos da Criação.

Interrogarmos qual o nosso comportamento para com a natureza, para com o semelhante e para com Deus passa, efectivamente, por uma vivência da fé enquanto força libertadora, não propriamente do mundo, porque não sabemos o que significa viver fora dele, mas  especificamente no campo do amor.

Ainda há quem diga, em jeito de cliché, que no tempo tal a humanidade não tinha maturidade para comprender certas coisas e que são chegados os tempos de serem feitas muitas revelações porque foi atingida essa maturidade. Mas qual maturidade? Haja alguém que a defina. A nossa distância das cavernas é a de um fio de cabelo. Continuamos sem percebeer as coisas mais elementares, e não é por alguns não aceitarem a reencarnação que são mais atrasados, primários ou primitivos. Como muitas outras coisas, a reencarnação está na moda. O ocidente, ao importá-la, não a compreendeu. Não se pode atribuir ao um passado esquecido, por graça divina, tudo o que no presente nos acontece. A vida de hoje é também ela construtora das suas respostas, embrenhadas na funcionalidade que o tempo impõe. Mas quem o não diz a respeito do para lá? Kardec advertiu sabiamente, que os Espíritos não são mais que as almas dos que por cá andaram.

Resta saber em que medida os reencarnacionistas são mais avançados do que os seus opositores, se possuem respostas para as nossas questões exitenciais. Dizer que somos oriundos das estrelas, do universo sem fim, que voltamos para o mundo dos Espíritos é não dizer nada na medida em que isso não é uma explicação, tal como dizer que dói a cabeça não explica nada da cabeça nem do corpo. Ninguém explica  porque é que existe vida, algo em vez de nada, porque coramos quando nos sentimos pouco avontade. Mais, ainda que haja uma explicaçao plausível, resta sempre a  questão de saber porque é que é assim.

Um dos perigos da humanidade é dormir sobre doutrinas, encará-las como a explicação para todas as coisas, supor que têm respostas para tudo. As nossas doutrinas são tão passageiras como nós: nascem, vivem e morrem connosco. Vivemos de passagem uma vida efémera num mundo emprestado, com as nossas doutrinas aconchegantes, por vezes perigosas, quando levadas demasiado a sério.

Caracteriza-nos o mistério, e não é aquilo em que acreditamos que nos torna melhores ou mais sábios. Em Kardec, temos fé humana e divina. Ela é sempre fé, e as leis do univrso são as leis do universo. O nosso acreditar nelas ou não é indiferente ao universo. Ao Criador, é suposto ser mais importante a relação que temos uns com os outros.

No futuro, como será a oração? Será qualquer coisa do género (?): “ Senhor, que este robot goste de mim. Dá-me saúde e trabalho para que eu o possa manter sem  que nada lhe falte. Amen?...”, ou será antes a continuidade do que tem sido para muitos: “Senhor, que a cada dia que passa eu me torne melhor. Que o mundo tenha paz e que eu seja parta importante dessa construção. Que eu siga o exemplo dos profetas e que Jesus, o Cristo, seja o meu guia de todas as horas?”

A aceitação do Deus dos milagres é a de um deus da fantasia, do ilusionismo das grandes ilusões tipo “Mulher Serrada”; o abandono do Deus dos milagres afasta das Dulcineias, das Lenoras, de todos os poetas e dos pedidos do tipo: “Senhor, faz com que eu seja hoje melhor do que ontem e amanhã melhor do que hoje. Sem a Tua força nunca conseguirei sê-lo.” Que fazer? A Carta aos Gálatas ensina que, libertados por Deus para a fé, temos a fé de livremente crer.

Se a humanidade não sobreviver, como refere o cientista, também a sua fé não irá sobreviver se, entretanto, não olhar para o outro como um amigo, um parceiro de existência. E isto não é uma questão doutrinária particularista. É uma questão universal.

O futuro da fé, a consequente sobrevivência do humano, reside no amor incondicional pela vida, antes de mais, acreditando que ainda vamos a tempo de salvar os almas que nos habitam, quer do ódio destruidor e bélico, quer de um futuro de lágrimas, seja onde for neste vasto universo. O humano sem a fé é impensável; o humano onde uma máquina pense por ele e lhe dê ordens deixa de ser humano; o humano sem o amor pela Vida não é um crente em Deus.

Pergunta-se: O que de nós queremos que sobreviva?

 

Margarida Azevedo

Bibliografia consultada:

CLARKE, A.C., A Vida no Século XXI, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 1990.

GUITTON, G., Deus e a Ciência, Editorial Notícias, Lisboa, 1991.

KARDEC, A., L´Evangile selon le Spiritisme, Les Editions Philman, Marly-le-Roi, 2001.

SCHROEDER, G. L., Deus e a Ciência, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 1999.

STANNARD,R., Ciência e Religião, Cientistas, teólogos e filósofos debatem descobertas científicas e crença religiosa, Edições 70, Lisboa, 1996.

WARD, K., Deus, Fé e o Novo Milénio, A crença cristã na idade da ciência, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 2000.

__________, Deus, o Acaso e a Necessidade, A resposta ao “GENE EGOÍSTA”e ao “RELOJOEIRO CEGO” de RICHARD DAWKINGS, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 1998.

Novo Testamento, Carta aos Gálatas, trad. de ALMEIDA, J.F.

Sites:

https://www.youtube.com/watch?v=cn2BMXpDm5E

https://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/24/ciencia/1443106788_324837.html

domingo, setembro 03, 2017

O PÃO DE ISABEL


 

            Descendo a escadaria do palácio, envergando os seus trajes nobres, carregava o pão no regaço rumo às vielas, travessas e becos perdidos na imúndice da pobreza extrema.

            Libertadora da fome silenciada, a rainha caminhava distribuindo, santa e bela, o alimento divino e puro. Os pobres tornam-se, assim, elemento fundamental de uma oração alicerçada na experiência dura de quem não tem voz; oração qual rota da seda, até ao ritual da produção e confecção do pão rumo a um fim aliviante, feito de alma.

            Com isso, Isabel se purificava também, crescia na sua espiritualidade já elevada, na vivência de um evangelho todo prática, todo esperança, todo oração. Não ia pregar, ia exemplificar, dar testemunho de uma fé que, sem obras, é cega. Não era caridade, mas amor profundo, porque abordar Deus não é palavrear nem rebaixar quem recebe. Naquele pão estava Deus no silêncio das palavras.

A nossa tradição judaico-cristã gira em torno da simbólica do pão, estendendo-se às  funções: alimento do corpo e do espírito; provação e fé; desespero e providência.

Elemento agrário, trabalhado e confeccionado pelas mãos humanas, do chão se eleva ao divino; da terra às mós dos moinhos de água. Era confeccionado com água e sal, com ou sem fermento; o pão é a fusão da Natureza, do homem e de Deus.

O povo hebraico, quando levado para o deserto, conduzido por Moisés, foi alimentado por um maná enviado por Deus, o Pão da Vida. “Eis que vos farei chover pão do céu; sairá o povo e colherá a porção de cada dia, a fim de que eu o ponha à prova para ver se anda ou não na minha lei.” (Ex 16: 4).

Esta afirmação do pão de cada dia reveste-se de uma carga teológica profunda, transportando-nos para a fé de que quem está com Deus nada lhe faltará, terá sempre o necesssário para cada dia. Por outras palavras, o pão não se acomula, não se guarda como um tesouro, ou como o dinheiro no banco para a aquisição de bens. O pão de cada dia é uma presença incondicional e constante, que sacia em qualquer momento aquele que crê firmemente.

Em Mateus 4:1-4, a figura do diabo tenta Jesus, depois do jejum, ordenando-lhe que converta as pedras em pão. Ora, nem só de pão vive o homem, isto é, o pão que é a palavra de Deus não é uma transformação de pedras, resultado de uma tentação.

Durante  quarenta dias de jejum, Jesus alimentou-se da Palavra de Deus. O jejum, tão esquecido pelas igrejas cristãs, devia ser retomado como peça fundamental da fé. Ele recolhe o Espírito sobre si mesmo; promove a reflexão, purifica. Vivemos num mundo onde somos levados a ter uma consciência sobre os que morrem de fome, paradoxalmente querem que esqueçamos os que morrem na opulência, que são mais que os outros, basta debruçarmo-nos sobre as doenças do mundo industrializado.

No Pai Nosso Jesus ensina-nos a pedir o pão de cada dia. Na Última Ceia Jesus parte o pão e reparte-o pelos presentes. Não se trata de um repasto farto. É uma Ceia simbólica. Quantos de nós, sabendo que iríamos ser entregues às autoridades, torturados e mortos, procederíamos de forma idêntica? Aquele Pão é uma despedida que não é definitiva,  ela transcende o corpo físico e asssume-se como vivência toda espiritual. Antecipa o regresso de Jesus em ressurreição, símbolo de vida eterna. O Pão da última Ceia é também o regresso de Jesus às suas raízes campestres: nascceu e foi visitado por pastores e reis magos; vai ser morto e recorda os agricultores, a terra, o renascer.

Amar a Deus na simbólica do deserto e da morte na cruz é difícil. Amar é sempre difícil. Há um dentro e um fora  de nós; entram em conflito sentimentos que se interpenetram. No amor não há fugas. O pão mastiga-se, engole-se, sacia. Mata o que nos mataria, a fome. O Pão da Última Ceia cultua a Fome de encontro definitivo com o Divino, o Amor eterno.

Vivemos o drama da procura do Amor, desde o deserto à cruz; vivemos a emergência da fé nos momentos cruciais, aqueles mais íngremes, mais encrespados. Somos actores de uma dramaturgia não institucionalizada porque o Amor é ligação directa à Cruz, aos excluídos, ao perdão e aceitação da obra dramática que é a vida. Ninguem melhor que uma rainha para representar o papel dessa carga simbólica. Ninguém melhor que Isabel representou esse drama.

A rainha Santa Isabel repartia o pão pelos que viviam no deserto de nada possuírem, na cruz de não serem ninguém. Porém, ao receberem aquele pão, os pobres fazem história e a rainha imortaliza-se como tão cantava Camões: “Aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”.

De Moisés a Jesus, dos pobres a Isabel, rainha Santa, todos são filhos de um mesmo Pai, alimentados da mesma substância porque, em Cristo: “Já não há senhor nem escravo….”

Aquele pão trazia consigo a solidão de uma magestade que, incompreendida, tinha nos pobres os seus maiores aliados.

O pão é uma metáfora. Na nossa fé, tão poética, o pão é Deus, é Vida, é Amor, além de alimento, consolo e memória.

 

Margarida Azevedo