segunda-feira, fevereiro 25, 2013

O SENSO COMUM COMEÇA A DAR OS SEUS FRUTOS III

(Continuação)
Conceitos a reter:

Jesus, um homem que nasceu, viveu e morreu judeu. Não criou o Cristianismo.

Cristo, o Ungido, que não sabemos o que é, transporta-nos inevitavelmente à grande questão da História das Religiões que é saber “O que é o Cristianismo?”

Evangelho significa boa-nova. Quando nascia um rei, quando as culturas davam bons frutos, quando o gado se reproduzia sem problemas, tudo isso era evangelho. Exemplo; Venho trazer-vos um evangelho, já nasceu o príncipe! Tenho um bom evangelho para vos dizer, o gado está saudável!

Verdade histórica é o conjunto de todos os acontecimentos reais: nascimento de Jesus, pregação, viagens, refeições, etc.; verdade de fé é aquilo em que se acredita: ressurreição de Jesus em corpo (para algumas igrejas), ressurreição de Jesus no sentido de desencarne, deixando o corpo no túmulo (como defende o Espiritismo e alguns cristãos fora da Doutrina, muitos deles embora pertencentes a igrejas que defendem oficialmente o contrário), milagres, a Transfiguração, as ressurreições, como a de Lázaro, por exemplo, o episódio de Paulo na estrada de Damasco, etc.

Tão difícil é uma quanto a outra. Se a primeira é das questões mais complexas da pesquisa histórica, a saber, quem foi o Jesus histórico, a segunda cai na complexa teia que é a fé. Ambas se condicionam mutuamente. No entanto, a abertura a novos conhecimentos, estudos e pesquisas, seja da história, seja da fé, tem conduzido a que esta vá ganhando novos contornos, ainda que muitas das suas crenças permaneçam.

Quanto a doutrina, este vocábulo refere-se ao alicerce em que uma religião assenta. Por exemplo, no caso do Cristianismo, o amor universal, o conceito de pessoa, o perdão incondicional dos pecados, a procura do Reino de Deus, Jesus como o Caminho, a Verdade e a Vida, etc. Já as doutrinas são interpretações, singularidades ou particularidades dentro da doutrina-mãe. As diversas igrejas cristãs, os seus movimentos, mesmo as sub-divisões dentro de uma mesma igreja, são grupos doutrinais que vêm acrescentar sentido ao que já está preconizado pelo macro-grupo.



Finalmente, a questão de saber se o Espiritismo é ou não uma religião, nem tão pouco se devia colocar, pois é incongruente e estéril. Segundo uma perspectiva linguístico-conceptual, o Espiritismo seria quando muito uma igreja, pois é uma congregação dentro da religião cristã. Porém, como o complexo aparelho conceptual está inserido dentro de um não menos complexo aparelho social, a palavra igreja, aplicada ao Espiritismo, está desfasada. O mais correcto, e é isso que acontece, é chamar-lhe doutrina. É isso que sempre foi, desde a Codificação, e assim o será.

Também há quem diga que o Espiritismo, não sendo uma religião, será o futuro das religiões. Vamos cair no mesmo. Se se entender por esse futuro a comunicação com os Espíritos, essa posição está erradíssima pois o próprio codificador afirma, perenptoriamente, que o espiritismo se nos depara em todas as épocas da humanidade (vide L´Evangile selon le Spiritism, p.15). Por outras palavras, o espiritismo sempre esteve dentro das religiões. Se se entender, pelo contrário, que isso se refere à Doutrina, é possível que alguns dos preceitos do Espiritismo sejam adoptados pelas religiões, não esquecendo que todas têm nas suas catequeses.

Quanto à evangelização do Espiritismo, ela é tão premente como a sua humanização. Os dois conceitos implicam-se. Espiritismo sem Evangelho seria o descalabro total. Era o fim da doutrina.

O negativismo espreita por todos os meios. Cabe-nos deitá-lo abaixo. A Ciência ensina-nos apenas o que é uma flor; o amor a amá-la; a fé a atribuí-la a Deus. Sem a Ciência podemos amar e ter fé, sem amor e fé podemos ter Ciência. A alma não é passível de ser encontrada por meio de pinças, nem Deus pelo telescópio. A fé pode não ser uma resposta, mas é de certeza um caminho muito interessante.

Há que perceber que a Doutrina é um itinerário para Deus, como qualquer outra congregação no mundo, mas à sua maneira, segundo os seus próprios processos. Porém, isso não significa que se isole das restantes. Tal como elas, precisa do confronto com os seus parceiros de fé para que ela mesma possa evoluir. Se as pessoas não evoluem sozinhas, as doutrinas também não. Não há doutrinas sem contágios, influências.

Quanto à casa espírita, isto é, o local onde se realizam os trabalhos espíritas, poderíamos chamar-lhe igreja, local de congregação. Porém, pelos motivos a que aludimos anteriormente, o mais correcto é chamar-lhe Casa Espírita ou Centro Espírita, que é o que acontece. Também o fazem as Testemunhas de Jeová, que chamam ao seu espaço de trabalhos Salão do Reino das Testemunhas de Jeová, cuja designação tem a finalidade de marcar a fronteira entre a sua forma de estar no Cristianismo por oposição à das igrejas.

Refira-se ainda que os conceitos religiosismo e evangelismo, formados pelo sufixo ismo, referem-se a sistema. Exemplo: espiritualismo, materialismo, etc. Religiosismo significa “carácter do ensino evangélico; conformidade com os ensinamentos dos Evangelhos; pregação e/ou proclamação do Evangelho como único caminho para a salvação; doutrina religiosa das igrejas que se baseiam nos princípios dos Evangelhos; qualquer sistema moral e/ou religioso baseado nesses mesmos princípios.” (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa). Evangelismo é um conceito erróneo, pois etimologicamente existem sistemas em torno do Evangelho, mas ele próprio não é um sistema.

A pobreza doutrinária, e consequentemente espiritual, para que o Cristianismo está a precipitar-se, e o Espiritismo em particular, apresentam os cristãos como um bando de homens e mulheres à beira do precipício, perdidos na não menos pobre vivência religiosa, sem objectivos de fé que encarnem uma perspectiva de paz e amor universalistas. Está-se a criar um cristianismo sem Cristo, congregações sem evangelho, fé empobrecida e espartilhada nas lides de um saber que, esquecem-se, é sempre perecível e está a vitimizar os homens/mulheres porque mal utilizado. Entregues a um cientismo que pretendem à viva força deificar/endeusar, estão afogados no seu mesmo colete-de-forças, desunidos, envaidecidos e à beira do colapso da fascinação.

O movimento cristão transporta o peso da sua história ensanguentada, deixou-se cegar na entrega às forças trevosas que em todos os movimentos minam as mentes na tentativa de derrubar o seu profeta maior, construindo um edifício sem alicerces.

Não sabendo desfrutar da riqueza do seu pluralismo interpretativo, da cada vez mais emergente especificidade conceptual, muitos cristãos estão perdidos na ilusão do seu falso saber. É lamentável que a voz salvífica de Jesus ainda não seja a bandeira dos cristãos. De facto, o Cristianismo ainda está para vir com todo o seu esplendor, com toda a sua glória. Quem sabe se o nascimento do Cristianismo não será segunda vinda de Jesus!?

Ora, se os cristãos rejeitam Jesus Cristo, quem Dele irá dar testemunho? Quem O levará aos grupos não cristãos e ao mundo? Se se abdicar do Evangelho, o que é proposto em troca? Estamos perante uma problemática complexa, a saber, serão os cristãos quem melhor compreende Jesus, ou, pelo contrário, a sua inteligibilidade é mais objectivamente pertença dos outros grupos religiosos? Dito de outro modo, serão esses grupos quem melhor O compreende? Será que a fé em Jesus é uma barreira à compreensão dos seus ensinamentos? As outras vivências da fé conseguem maior objectividade? Não terá sido isso o que aconteceu em Mt 8:5-13; Lc 7:1-10; Jo 4:43-54? Para se ser cristão tem que se estar fora do Cristianismo? Teríamos que saber de antemão o que significa estar fora e estar dentro.

O abandono do Evangelho seria a maior perda do movimento religioso mundial, a maior catástrofe espiritual do planeta. Não se confundam os ilustres representantes do senso comum (diferente de gente humilde que incita à oração e pouco mais), com os estudiosos atentos e dedicados que, na sua suficiência, tentam esclarecer mediante investigações sérias. O que se está a verificar dentro do movimento espírita, e isso já não é de hoje, é a crescente resistência em aceitar os estudos científicos de exegetas, teólogos e hermeneutas, porque desconformes com os textos que são recebidos psicograficamente. Entregues aos preconceitos e ao medo das trevas, os espíritas isolam-se, fecham-se às leituras dos grandes investigadores mundialmente reconhecidos porque, dizem, o que o mundo aceita não é o que os Espíritos defendem. O mundo está mau, tudo está virado no avesso, as trevas espalharam-se por toda a terra, vamos deitar abaixo os estudiosos.

Quanto a nós, duvidamos desses textos supostamente vindos do além, que isolam as pessoas na sua ignorância, o que só por si desencoraja a curiosidade do leitor sério, desenvolvem ideias exclusivistas, criam a desunião e a desconfiança, principalmente aquando de discursos cujos temas e assuntos lhes são alheios.

Pensamos que não é possível uma doutrina como o Espiritismo não ter nos Centros pessoas licenciadas em História a leccionar História da França, principalmente a partir da Revolução Francesa (e, porque não, da Revolução Industrial?). Estamos em crer que muitos iriam mudar radicalmente as suas perspectivas quanto à Codificação. Por outro lado, é fácil perceber através da biografia de Kardec que este não dominava uma multiplicidade de assuntos relacionados com a religiosidade de então, pois essa não era de todo a sua área. A missão de Kardec reside no âmbito das comunicações com os Espíritos, principalmente, provar a sua existência e a sua natureza.

No entanto, é mais fácil aos espíritas aceitar as obras kardecistas sem a necessária análise crítica, o que nem o próprio codificador aconselhou, do que submetê-las a um estudo sério. Ou então rejeitá-las radicalmente. E tudo isso tem ilustres adeptos e defensores.

A grande ameaça que ensombra o Espiritismo é o fantasma dos Espíritos negativos a que se entregou, em vez de se lhes impor com a força da verdade e do amor cristãos. Não somos nós que temos que ser doutrinados pelos Espíritos, são estes que têm que ser doutrinados por nós (quanto à palavra doutrinação falaremos um dia).

O Cristianismo não é o conjunto das pregações das suas igrejas e movimentos, apenas, é principalmente a luta exemplar pela instauração da paz na terra.
Margarida Azevedo

Bibliografia
HOUAISS, A. e VILLAR, M., Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Círculo de Leitores, Mem Martins, 2003, Tomo III, p. 1655.

KARDEC, A., L´Evangile selon le spiritisme, Les Les Editions Philman, Marly-le-Roi, 2001, Introduction, 1. Le but de cet ouvrage, p.15.

O SENSO COMUM COMEÇA A DAR OS SEUS FRUTOS II

(Continuação)
Porém, não se confundam as hermenêuticas com uma desvaloração dos profetas de todos os tempos, que continuam actuais. Elas são leituras que acrescentam preciosos sentidos ao texto, representativas de vivências que se objectivam nessas opiniões. Não se perca a noção de que:
Religião e igreja são coisas diferentes;
As religiões são uma coisa, os profetas outra;

Não criar uma religião não é sinónimo de não ter religião;

Jesus e Cristo são coisas distintas;

Evangelho é uma palavra com uma multiplicidade de sentidos;

Verdade histórica não é verdade de fé;

Uma doutrina não significa doutrinas.
Religião (do lat. religare). A grosso modo, define um grupo de crentes unidos pelos mesmos princípios, ritos e liturgias; movimento identificativo de um macro conjunto de seres unidos em torno de uma mesma crença.

Igreja (do gr. ecclesia). Consiste numa congregação dentro da religião: igrejas, seitas (sem qualquer sentido pejorativo), movimentos, doutrinas, grupos familiares, etc., com uma estrutura particularizada.

Exemplo de religiões: Judaísmo, Cristianismo, Islamismo (monoteístas, também chamadas religiões do Livro); Hinduísmo (“politeísta”, também chamada religião da Natureza), Budismo (religião “sem Deus”, também chamada corrente filosófica); etc. Exemplo de igrejas (dentro do Cristianismo): Ortodoxa; Católica; Pentecostal; etc.

Exemplo de movimentos ou grupos (dentro do Cristianismo): Rosacrucianismo; Espiritismo; Testemunhas de Jeová; etc.

O Judaísmo tem inúmeros grupos, talvez um dos mais importantes, ou pelo menos mais conhecido seja o Hassidismo, tal como o Islamismo nos surge com dois grupos relativamente numerosos e importantes, o Sufismo e o Babismo ou Fé Bahá´i, fundado a partir dos ensinamentos reformistas do profeta Bahá´u´Lláh (este movimento grandioso, porém, já passou ao estatuto de religião).

O Hinduísmo, a religião mais antiga do mundo, apresenta-se com uma infinidade de divindades cujo fim é atingir Deus, a Divindade Suprema.

Salientamos ainda que hoje a designação de mono e politeísta está a ser posta em causa pelos estudiosos, mantendo-se a de religiões do Livro e da Natureza; o Budismo como religião sem Deus está a ser repensado. Lembramos que este é portador de um percurso histórico relativamente idêntico ao do Cristianismo. Buddha também não criou religião nenhuma, era hindu, no entanto a partir dele emerge um movimento dentro do Hinduísmo que, mercê da reforma por ele preconizada é hoje o Budismo, com todas as suas subdivisões.

Destes exemplos podemos inferir que os profetas vieram trazer ao mundo uma perspectiva pedagógica ou uma metodologia para atingir Deus, na tentativa de traçar horizontes de esperança. Não abandonaram as suas religiões, pois é impensável um profeta sem religião (a rejeição de Deus ou Materialismo ateu é recente. Mesmo os chamados materialistas da Antiguidade grega, Leucipo e Demócrito, eram crentes).

Isto significa que devemos às nossas interpretações a criação desses movimentos de fé, cujas teses muito embora pareçam estranhas para alguns, foram/são movimentos importantes quando surgiram/surgem e aos quais devemos, por isso, a herança espiritual dos nossos dias.

De um modo geral, os profetas viveram tão pré-ocupados com as suas missões que não perderam tempo em criar novos movimentos, nem parece que tivessem tal facto como missão. O seu principal objectivo foi reformar e reformular velhas questões, traçar hipóteses de conduta e de interpretação usando a sua inspiração e sapiência com a autoridade que só Deus lhes poderia conferir.

Quanto a Jesus, a situação é mais complexa. Não temos o pretensiosismo de em duas linhas fazer uma abordagem a este profeta, apenas dizemos que, colando-se-lhe o Cristo, o Messias redentor, ele representa o homem no seu aspecto mais elevado. Não só é um caminho, como é o Caminho, a Verdade e a Vida. Nenhum profeta o havia dito até ele.

Jesus é uma realidade histórica, um homem carnal como qualquer outro. Teve uma vida pública de pregação muito curta, fez milagres (discutível, para alguns) idênticos aos do Paganismo da sua época, porém “Desde o princípio do mundo nunca se ouviu que alguém abrisse os olhos a um cego de nascença.”,Jo 9:32; sentava-se a todas as mesas, o que escandalizou os seus contemporâneos e correligionários, tinha mulheres apostolas. Sofreu e padeceu por nós, conferindo ao sofrimento um lugar peculiar. Veio trazer um universo de esperança a todos os deserdados, falou a pobres e a ricos. Não excluiu ninguém.

Jesus não criou a religião cristã, mas isso não significa que não tenha tido a sua. Ele foi um judeu exemplar, que frequentava o Templo, que lia e comentava as Escrituras. José e Maria, os seus pais, assim como os apóstolos e alguns dos primeiros cristãos eram judeus. A circuncisão foi feita, numa perspectiva judia, até muito tarde.

Quanto ao Cristo, que não sabemos o que é, devemos-lhe a expressão mais elevada do amor a Deus que, indiscutivelmente, passa pelo outro como o próximo, independentemente do credo religioso. Isto significa que o Cristianismo das origens era um movimento eminentemente plural, que ensinou que amar o próximo faz parte das directrizes espirituais do ser humano. O amor só o é verdadeiramente quando livre de todos e quaisquer interesses, até mesmo dos imperativos religiosos. Por outras palavras, amar deixa de ser um factor religioso, passando ao estatuto de elemento constitutivo da natureza do próprio homem. Desta forma fica reservada à religião a pluralidade de caminhos para Deus, todos igualmente válidos, todos movidos pelo mesmo amor.

Porém, os Mandamentos de Jesus dizem que se deve amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Isto significa que Cristo confere ao amor uma dualidade inseparável: religiosamente amamos a Deus; socialmente amamos o próximo. Um não pode acontecer sem a presença incondicional do outro.

Este amor atinge o seu auge com a inauguração do conceito de pessoa, atribuído ao Cristianismo, na sua leitura vivencial deste vasto processo doutrinal que foi a pregação de Jesus.

Mercê da confusão instaurada, Jesus, o crucificado de há dois mil anos, continua a sê-lo nos tempos que correm: igualmente na praça pública, igualmente por razões de ordem social e política face à opinião desastrosa de dois ou três que se apresentam, tal como diz o e-mail, quais “estrelas que ministram palestras”, que não as há só no Espiritismo.

Mas isso não pode conduzir a uma rejeição do próprio Jesus, e menos ainda do Cristo, de que é a mais elevada expressão. A rejeição, a existir, deve ser a da falsidade dos homens, e com ela a da sua ignorância em matéria de fé.

O que é o evangelho de Jesus? A boa-nova do Reino de Deus, a força impulsiva de que o amor triunfará e que é no amor que encontramos Deus, dentro e fora de nós. Numa época de desejo de vingança perante a potência invasora, de uma religiosidade apegada ao tradicionalismo fanático, surge um judeu que vem reformular a tradição, pô-la em causa, face a uma classe sacerdotal todo-poderosa.

Um espírita não pode continuar a afirmar coisas como: Jesus não teve religião; os evangelhos foram escritos por apóstolos; os evangelhos estão desfasados e são dispensáveis, exclua-se Jesus Cristo dos Centros espíritas. Perguntamos: o que é que fica? Mediunismo? Ensina-se o amor, mas que amor? Com que referência? A moral, mas que moral? A moral é tão falível quanto o próprio homem e muda com o tempo e as eras. A ética, pelo contrário, é a mesma desde que o mundo é mundo. Ser bom é de todos os tempos; como sê-lo depende de factores sociais, psicológicos, religiosos. O modus operandi é condenável ou aceitável segundo as regras do tempo; o móbil permanece.

(continua)

Margarida Azevedo

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Bibliografia

KIELCE, Anton, O Sufismo, Publicações europa-América, Mem-Martins, 1984.

NISENBAUM, Haïm, Qu´est-ce que le hassidisme?. Éditions du Seuil, Paris, 1997.

VÁRIOS, Religiões, História, Textos, Tradições, Paulinas, Prior Velho, 2006.

quarta-feira, fevereiro 20, 2013

O SENSO COMUM COMEÇA A DAR OS SEUS FRUTOS I

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Espiritismo e Evagelismo

Temos visto, de forma cada vez mais freqüente, no meio Espírita, apelos e defesas para que se “evangelize” o Espiritismo, bem como se encontram ferrenhos defensores do Espiritismo como “religião”. Vêem-se mesmo colocações do tipo “...necessitamos é de evangelho....”.

Em minha opinião, o religiosismo e o "evangelismo" acabará por destruir o Espiritismo, pois se está abandonado a "...filosofia com base científica e conseqüências éticas e morais..." preconizada no Livro dos Espíritos, para um “evangelismo” exacerbado, transformando muitas Casas Espíritas em "igrejas", onde o ouvir palestras e tomar passes passam a ter “status” de rito religioso.

Nessas Casas, não se aprofunda e se discute mais a Filosofia Espírita de Vida, e não se discute como transforma-la em aprendizado, em habilidade, em aptidão.

Passamos a ter "estrelas" que ministram palestras, mais preocupados com a própria imagem, com o falar empolado, com técnicas avançadas de oratória, mas incapazes de serem animadores e promotores das mudanças pessoais e sociais.

Kardec nunca deu um aspecto religioso ao Espiritismo. Mostrem-me isso nas obras básicas! Isso não existe.

Não podemos abrir mão da Doutrina Espírita em nome de uma "religião espírita", acreditando que isso se "...corrige mais tarde...". Um edifício mal construído acabará desabando. Um alicerce mal feito não suporta uma obra de grande porte.

Kardec estabeleceu um tripé didático para a Doutrina Espírita: Filosofia, Ciência e Ética/Moral (e não religião).

A Ética e a Moral adotadas são a do Cristo, brilhantemente descrita no Evangelho Segundo o Espiritismo. Mas é ética e moral, aplicada em uma filosofia de vida, embasada em conhecimento científico.

O aspecto religioso do espiritismo, tal como concebido por Kardec, é íntimo, pessoal e individual. Não precisamos transformar as Casas Espíritas em "igrejas espíritas", pois isso nada acrescenta, só atrapalha.

Em "evangelismo", temos que reconhecer que existem algumas religiões muito eficientes nisso. Se vamos seguir por esse caminho, vamos aprender com elas.

Mas essa não será a minha opção. Não abrirei mão da pureza doutrinária estruturada por Kardec.

Assusta-me uma colocação como essa: "...precisamos é de evangelho...". Isso é quase um discurso do neo-evangelismo, das "modernas igrejas evangélicas".

Não é isso que precisamos. Precisamos de amor em ação, de caridade em ação, de ética em ação, de pensamento construtivo em ação, de efetivamente nos tornarmos criadores de uma nova realidade.

Precisamos é de Filosofia Espírita, de Moral Espírita, de Ética Espírita, e isso já está contido no Livro dos Espíritos, a principal obra do Espiritismo (e poderia até ser a única).

Precisamos transformar as Casas Espíritas em oficinas de aprendizado, em "fábricas" de habilidades e aptidões éticas e morais, em não em púlpitos de discursos e pregações, esteticamente lindas, belas, mas inócuas por não estimularem a evolução individual.

Cristo como modelo. Claro que sim. Somos todos admiradores desse ser. Mas procuremos conhecer o Cristo Histórico, O Cristo Humano, o Cristo Revolucionário, o Cristo que não tinha uma religião, que não fundou uma religião, que não se entregou as religiões, que VIVEU sua pregação, que tentava transformar ensinamento em aprendizado. Que seja ele o nosso modelo de construção de vida e de sociedade. O Cristo Vivo, não o Cristo das Igrejas e Religiões. O Cristo em nosso coração e nas nossas ações, e não no evangelismo pobre e limitador.

Esta é uma opinião pessoal, mas mais que isto, é uma crença pessoal, uma diretriz de minha conduta dentro da Doutrina Espírita. Compreendo e respeito quem pensa diferente. Reconheço-lhes esse direito. Mas lutarei tenazmente pelo Espiritismo Filosófico, Científico, Ético e Moral. E para evitar que nos transformemos em Igreja

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O artigo que se segue é um comentário ao texto que antecede e que nos foi enviado pelo dirigente de um grupo espírita que, amavelmente, solicita o nosso parecer. É claro que o que se segue tem o valor disso mesmo, mera opinião. Porém, tentaremos ser o mais esclarecedores possível. Quanto ao título, pensamos que o conteúdo que se segue o justifica com relativa clareza.

I

É facto que o Cristianismo está a viver uma das suas piores crises. Confrontado com um impulso técnico e científico imparável e ao qual sempre se opôs com veemência, que inaugura novas e mais profundas reflexões, vê-se a braços com um factor sociológico à escala planetária, a globalização, perante o qual se sente impotente para continuar a impor as suas perspectivas.

Do nosso ponto de vista, com alguma relutância o Cristianismo está a aprender a adaptar-se e, consequentemente, a aceitar os novos rumos da História. Se até agora foi um conquistador de almas, não está em causa os processos, velozmente passou a conquistado. As outras religiões, mercê da novidade dos seus discursos, para os cristãos, vão junto destes buscar os novos crentes, atraindo-os pela doçura de promessas no além, pela ausência de castigos terríveis, garantindo que ninguém arde no fogo eterno, tornando a salvação ao alcance do mais ignoto como do mais elevado. Quanto aos povos conquistados, por sua vez, estão a emergir no seu natural e legítimo grito de liberdade, fazendo ressurgir antigas formas de fé.

Este facto retoma a questão fundamental da inter-acção entre fé e cultura. O Cristianismo pode e deve espalhar-se pelo mundo, mas respeitando sempre identidade cultural dos povos. É preciso aferir os seus elementos constituintes para que a evangelização seja encarada como a entrada pacífica de uma outra doutrina num universo de sentido religioso já formado, com a sua escala de valores própria, os seus interditos, as suas epifanias, os seus ritos.

Ora, podemos dizer que o móbil da auto-reflexão do Cristianismo não é a sua mesma doutrina, não são as suas hermenêuticas nem a exegeses tão trabalhadas, nem tão pouco a sua evangelização, mas as outras confissões que, rejeitando-o nos seus processos de divulgação, têm vindo a introduzir-se no seio dos cristãos. Estes, saturados do medo do Inferno e de processos catárticos impraticáveis, porque socialmente isoladores, impõem noções de fé e vivência religiosa transversais e mediatizadas por um impulso de liberdade que lhes é completamente novo.

Porém, olvidando, por seu lado, que essas mesmas religiões estão em profundas convulsões e que, para elas, o Cristianismo é uma influência a reter, mercê de um evangelho perene e pluralista quanto às suas teses e diversidade literária, os cristãos aceitam-nas como um substituto de uma vivência que de intolerante passou a obsoleta.

Assim, os cristãos de hoje não perderam apenas o medo do Inferno. Os castigos de Deus também abrandaram. Nos novos tempos são os crentes que chamam à atenção o próprio Deus, impondo-Lhe novas formas de encarar os pobres seres falíveis, criação Sua, acrescente-se. Já não são os crentes que acreditam em Deus, apenas, é a Deus que é exigido que acredite nos homens/mulheres. A luz que estes tanto almejam já não é solicitada a Deus pela via do milagre. A luz significa trabalho, dedicação, persistência, victória, mas também cooperação da parte de Deus. Subentende-se que se os homens/mulheres precisam de Deus, Este precisa dos homens/mulheres. É por seu intermédio que enviou profetas para dar conhecimento de Si próprio e de um mundo, que é o Seu, todo beatitude, paz, amor e fraternidade.

O Deus da sociedade global é um Deus partilhado, ajustado à dimensão dos homens/mulheres e respectivas necessidades. Fala-se de Deus quando e porque é útil. O mistério que envolve a existência de Deus já não tem que ver com uma dimensão oculta, à qual só uma espécie de casta ou sobredotados da fé tinha acesso. O mistério deslocou-se para o próprio ser humano. Porque é que eu existo? Para quê? Qual a minha substância? O que sou e quem sou? Sou alguém ou sou o quê? O crente, mais racional, já não quer uma resposta mediatizada pela fé. Mais entregue às suas forças (intelectuais, éticas, morais, etc.), desocupa/liberta Deus do processo evolutivo, remetendo tal responsabilidade para os seus ombros. Esta nova concepção de crente, não mais que um trabalhador ou um profissional do espírito, impõe a si mesmo uma resposta que passa inevitavelmente pela sua força intelectual.

Mas aqui surge um problema: as nossas barreiras linguísticas mostram-nos a nossa impermeabilidade a outras vivências do Espírito, quiçá ao próprio Reino de Deus que, talvez por isso, esteja tão simplesmente dentro de nós. É que nós carregamos os nossos próprios mistérios, o nosso desconhecido bem como uma racionalidade limitada e limitadora. Mas tal não é pacífico. Pelo contrário, deixa-nos perdidos na perplexidade do desconforto vivencial do nosso acontecer diário, do Reino de Deus que, mesmo dentro de nós, não está mais perto pois que nenhum de nós se sente conforme com tal mercê. Talvez por isso ainda sejamos demasiado exigentes para com Deus: queremos a perfeição, mas só a Ele é devida. A linguagem da fé nunca foi tão incisiva, nem a de Deus tão doce.

Ele já não pode exigir longas preces. O mundo global apressou-se e precipitou-se nas lides do economicismo. Viver com Deus é viver bem, na paz do conforto. Contudo, nos extremos da pobreza e da riqueza a fé é idêntica. Ambas fazem perigar o discurso apelativo à oração e à prece nos seus fundamentos beatíficos. Não solicitam a paz e o amor, nem tão pouco a luz, mas a estabilidade social que tanto almejam e que tão cara lhes é.

(Continua)
Margarida Azeevedo