sábado, abril 02, 2016

PASCOA SEM TRAIÇÃO


O que significa viver a Páscoa em 2016? Páscoa que é, antes de mais, não uma passagem, mas a passagem do cativeiro para a liberdade; essa passagem que significado tem para nós, encerrados entre o medo e a desinformação, o temor do outro, a desvaloração da vida e a insignificância de nós mesmos perante a ameaça de desintegração da nossa identidade, das nossas heranças culturais?
            Temos a sensação de que a qualquer momento tudo se vai desmoronar, um abismo vai cair sobre as nossas cabeças, um castigo qualquer implacável por actos rebeldes cometidos ao longo da História. Culpamo-nos como se fôssemos os únicos, como se a humanidade se reduzisse, quer no bom quer no mau, à nossa vivência de cristãos, o alfa e o ómega da história planetária. Que erro tão grande. Se não houvessse reencarnação talvez, talvez, pudesse ser assim. Mas há. Somos filhos da globalização espiritual, arrastamos pretéritos divergentes, até mesmo opostos. O sentido que vamos construindo da vida é o do sem sentido dos ataques a nós mesmos, ou a intransigência contra os que, tal como nós, espelham pretéritos dos quais ainda não se libertaram.
            Os cristãos pensam que carregam a cruz do sofrimento sozinhos, têm-se como sempre cristãos, até muitos dos que se dizem reencarnacionistas. Ora ser cristão não assenta na perpetuidade de uma doutrina, num interesse sacrificial com objectivos pouco desterminados; não é a construção do super-homem, e, por isso, os cristãos não podem sentir-se os heróis do sofrimento, da condenação de quem vem a este mundo só para sofrer.  No tempo da ganância até a  cruz querem  só para si.
            A universalidade da mensagem cristã não é aprisionável numa ideologia, sempre minimizadora; a universalidade significa que todos nós, enquanto humanos e muito humanos, vivemos idênticas experiências; a nossa História transborda de ódio, inveja, guerra e paz, esperança, virtude e vício, mas também amor e salvação; todos os homens e todas as mulheres são confrontados/as com a mesma humanidade, tão relativizadora e, talvez por isso, tão rica, mostrando a si mesmos/as que as fronteiras são apenas as do nosso pequeno mundo abafado numa ideologia aprisionante.
            Não é fácil pregar o amor, quando se encara tal sentimento como um inquilino no coração humano, tão culturalmente díspare, logo naturalmente conturbado. Puro engano. Ele tem uma raíz transcendente que se chama Deus, e, como somos todos seus filhos…É onde somos todos/as muito parecidos/as. Amar o verde, o amarelo ou o lilás mais não é que a mostra do colorido que é amar, porque o amor é sempre amor em qualquer parte do mundo. E são tão díspares os nossos mundos interiores. Os cristãos pensam que os outros ainda não chegaram ao amor, não atingiram a especialidade do sentimento maior. Há quem pense que o amor é cristão, pior, há quem pense que Jesus o disse.
            Urge aqui perguntar: Que identidade transmitimos de Jesus, o Cristo, aquele cujo reino não era deste mundo? Se ele veio dar testemunho da fonte do amor, muito amou, viveu mais apaixonado que qualquer de nós; e tanto, tanto amou que o seu amor não era, efectivamente, deste mundo. Mediante as nossas vivências sempre tão redutoras porque tão encaixadas entre o céu e a terra, desenhamos um jesus tão pequenino e uma páscoa tão redutora. Reflictamos: Em que medida o cristão é diferente do não cristão, ou o que é que ele acrescenta à humanidade que esta não tenha já? Talvez não seja a diferença substancial da fé, mas a sua Páscoa, o seu modelo de libertação, a sua relativização da vida terrena, o impacto jubiloso do túmulo vazio.
            Por outro lado, construiu-se uma Páscoa à sombra do fantasma da traição de Judas. Nunca nos evangelhos Judas aparece como traidor, e Jesus não aponta ninguém, apenas diz que é um de vocês (Mt: 26: 20-29). Inventou-se um traidor para tudo fazer mais sentido, um beijo fatal, o oposto do amor, com as mesmas usuras de sempre, o apego ao vil metal, o arrependimento logo a seguir. Construiu-se uma personagem para moldar a História, talvez com o intuito de levantar a questão da fidelidade versus infidelidade, ou então a do conflito entre racionalidade e fé, meros conceitos; submissão, invasão, identidades em conflito. Não sabemos, parece-nos pouco provável. Todos meteram com Ele a mão no prato, por isso perguntaram aflitos: “Serei eu?” Depois vieram os outros, pela calada da noite, buscar Jesus que o beijo identificou. Felizmente que a exegese não deixa passar as incongruências: todos os que o vieram buscar conheciam-no, tinham-no ouvido  no Templo (Mt 26: 55; Mc 14: 48-49; Lc 22: 52- 53), aquele beijo não identificou ninguém, e o problema em João nem sequer surge (Jo18: 1-19).
A Páscoa é a festa da vida e do triunfo; o sêlo vinculativo do Deus da Aliança. Esse Deus que não quer o Seu povo prisioneiro da fatalidade da História. Viver não é uma fatalidade nem um castigo, nem vergonha nem pagamento  algum; viver é glória, dádiva, oferta grandiosa, sem medida, sem palavras. A Páscoa é a festa do perdão, e nisso é verdadeiramente cristã, pois não é provável que alguém, no alto do sofrimento, grite pelo  perdão de todos aqueles que lho causaram.
Precisamos de palavras novas, renovadas, novos sentidos, novos horizontes. Um discurso novo que nos chegue à alma e nos arrebate. Essa Páscoa ainda está por fazer.
A Páscoa é uma mensagem célere de um homem insignificante que passa da morte à vida, e que, ao expirar, aconteceu: “ E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo; e tremeu a terra, e fenderam-se as pedras. E abriram-se os sepulcros, e muitos corpos de santos, que dormiam, foram ressuscitados; E, saindo dos sepulcros, depois da resssurreição dele, entraram na cidade santa e apareceram a muitos.” (Mt 27: 51-53). -de forma diferente em  Marcos 15: 38 e Lucas 23: 45, em João este episódio não surge -. É também a de uma morte identificadora que fez um pagão dizer: “E o centurião, e os que com ele guardavam Jesus, vendo o terremoto, e as coisas que haviam sucedido, tiveram grande temor, e disseram: Verdadeiramente este era Filho de Deus.“ (Mt 27: 54), “E o centurião, vendo o que tinha acontecido, deu glória a Deus, dizendo: Na verdade, este homem era justo.”(Lc 23: 47), ou ou ainda “E o centurião que estava defronte dele, vendo que, assim clamando, expirava, disse: Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus.”(Mc 15: 39). Em João, a problemática da identificação asssociada à morte não surge, tal como não há assombros, sustos ou êxtases. Fora cumprida a Escritura, simplesmente.
No entanto, belas foram as palavras do centurião romano, nos sinópticos! E nada, na História, voltou a ser como dantes…
Margarida Azevedo

Citações bíblicas: trad. J.F. de Almeida, Lisboa, 1968.