domingo, dezembro 31, 2023

2024 A FORÇA QUE SE RENOVA

 



 

            Entre a morte e o luto, as lágrimas que se arrastam na saudade do que vai ficando para trás, do que se ama e se é obrigado a largar, do arrasto de vidas que vão ficando adiadas, dos escombros do que há bem pouco haviam sido um lar, do corte acutilante com tudo o que se chama esperança, os que mandam criaram o inferno neste planeta, onde a Beleza e a Luz do Criador não faltam.

            A verdade tornou-se problemática. É melhor calá-la. O preço da verdade já não é apenas o da própria vida, mas também a daqueles que nos rodeiam. Vai tudo a eito. Constrói-se o despotismo como uma virtude, a luta insaciante e avara por ser superior; constrói-se a massa informe dos cada vez mais infortunados, desesperados e à deriva; constrói-se os vencedores stressados, porque têm que manter os seus pódios, infelizes, mas felizes por viverem no luxo enganador, tão efémero, tão de cristal, com amigos de circunstância, casados com as lutas da avidez, isolados e aperfilhados pela mentira e pela ilusão ofuscante. Vai tudo na onda.

            Para outros, já não é o medo da morte, porque o desejo de não-vida também existe. Não por ímpetos suicidas, mas pela força da tortura. Também já não é a certeza, mais ou menos, da continuidade da vida no além. É a temeridade do infinito astuto e retórico cá neste mundo, de língua afiada com resposta pronta, que prolongue nesta vida o ser nada, o ter nada, o nada valer; o anular do sentido ao sentido da vida, a dessacralização do sagrado.

            Vivemos tempos em que tudo tem mais valor que a própria vida. Tornámo-nos nada, zero. Consome-se o que querem que se consuma, vemos o filme que foi previamente selecionado, ouvem-se notícias passadas pelo crivo da censura, com outros nomes, é claro. Estamos nos tempos em que se chama verde ao amarelo, o alto é baixo, a fealdade bela, pior, cria-se a defesa férrea de que é realmente assim.

            Tem sido assim ano após ano. O 2023 foi a cereja no topo do bolo: duas guerras devastadoras. Caiu o disfarce, o verniz de uma paz podre. O ódio pôs as garras de fora. As religiões, nos seus belos discursos, e teologias complexas, não conseguem impor-se aos crentes. Continua a haver um discurso do religioso sem uma componente prática, sem se mostrar na sua alteridade face ao rumo caótico da vida social. Os agressores não são ateus, ou pelo menos não se dizem como tal. Todos frequentam as suas religiões ou igrejas. Todos se afirmam como tementes de Deus, como se Deus fosse uma temeridade.

            Assim, os discursos continuam a ser belos, cheios de verdade. Claro que é verdade que a inteligência artificial, erroneamente assim chamada, é um perigo; é verdade que as guerras são cada vez mais devastadoras; é verdade que vivem-se tempos sem tempo, em que a azáfama tomou conta das vidas esvaziando-as, mas não é menos verdade que o discurso religioso continua a não penetrar nos corações, a não conseguir modificar a natureza humana. Precisamos de ser outros. Termos outros valores, outra fé, outra laicidade. Precisamos de chamar as coisas pelos seus nomes. Precisamos de acreditar na nossa finitude, viver com os nossos limites, aceitar os nossos defeitos para melhor os combater; precisamos de compreender que só o amor incondicional pode vencer tudo isso.

Mas, muito pior que a inteligência artificial, são as mentes que a criaram, pois a inteligência artificial não tem autonomia sem uma mente que a invista de supostos poderes, e que se chama mente humana. É o humano que, porque escravo de si mesmo, se rebaixa à sua mesma fantasia devastadora com ares de criatividade, de super-homem. Continuamos na construção de bezerros de oiro, aos quais, fascinados pela sua obra, rendem graças, prostram-se como diante de um deus É a genialidade no seu melhor, no seu expoente mais baixo e trevoso, totalmente redutora.

            Com tudo isto, atrevo-me a desejar um ano com mais oração, um casamento feliz entre a fé e as boas práticas sociais. A presença de um amor só: o único, porque na verdade só há um. Desejo uma unidade discursiva, uma mesma personalidade, a da sua religião ou igreja, e a da sua vida familiar, profissional e social; uma integridade, o não-medo. Não tenha medo de ter fé, reciprocamente, não tenha medo de viver. Esse viver que é mostrar-se, participar e partilhar, ser cúmplice no bem e estar presente na mudança, no crescimento, no amor ao próximo.

Não tenha medo mesmo. Caminhar não se faz sem perigos. Todos juntos somos mais fortes a superá-los. Vamos contar uns com os outros. Tenho estado a falar de igrejas e religiões. Mas isso não é uma verdade definitiva, mas um episódio transitório da nossa fé. Diga-se em abono da verdade, verdadinha, há só uma organização religiosa, a da nossa mente, a da nossa sensibilidade, na multiplicidade de cores que forma um jardim. Os nossos discursos podem ser necessariamente diferentes, porém abordam uma mesma realidade, um mesmo Ser, pretendem alcançar o mesmo fim, a felicidade, e esta só com o outro e Deus.

A nossa ignorância é que criou diferenças, patamares, e tudo o que nos possa identificar como mais e menos, mais verdade e menos verdade, mais fé e menos fé. Nada disso. Temos caminhos, apenas caminhos, que, no conjunto, rumam para uma mesma cidade, um mesmo recinto onde assistimos ao mesmo concerto, com um mesmo fito, o da alegria de estarmos todos juntos e sermos felizes.

Os nossos caminhos têm que se cruzar. E eles cruzam-se, efectivamente, se deixarmos. O amor é a maior das pontes, é onde nos sentimos iguais nas nossas diferenças. A diferença é uma virtude.

Precisamos urgentemente de um 2024 lutador: na oração persistente, na modificação interior, no dizer não às nossas tolices, aos nossos olhares tão distorcidos e enganadores.

Precisamos de ter força para ir ao arrepio. Se tudo nos parece desabar, então sejamos construtores do sólido, do estável; se há guerra, sejamos crentes na paz, se tantas coisas boas nos parecem impossíveis, pois é o impossível que nós queremos, é por ele que lutamos. Estamos todos aí, vamos à luta por um mundo melhor.

O cristão deve ter sempre presente: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”. Peçamos ao Pai distância do não saber o que se faz, de estar totalmente inconsciente face ao bem supremo que temos diante dos nossos olhos; que não sejamos nós a fazer parte desses, que nos aumente a consciência das coisas belas, das coisas que estão por fazer e que, na graça divina, tenhamos a felicidade de fazer parte daqueles que são os construtores de uma vida nova, de uma existência feliz.

Não deixemos a vida em suspenso, adiada. Construamos a capacidade de perdoar. O perdão é uma proximidade, a única. Sem perdão caímos na esterilidade. Ele é o sal da fé.

Tenha um 2024 cheio de tudo, transbordante do tudo que Deus lhe tem para lhe dar. Se a minha vontade conta, eu quero que seja feliz. Assim, lutemos juntos pela nossa santificação, oremos ao Pai em uníssono pela modificação do ser humano. Vamos ter força. Juntos venceremos, não tenhamos dúvida nenhuma. O mundo pode tornar-se num paraíso. Acredito que o será um dia. Isto é um sonho? E quem foi que retirou à fé a sua necessária capacidade de sonhar?

Muita paz, desejo-lhe muita paz.

 

Margarida Azevedo

 

domingo, dezembro 24, 2023

NATAL 2023

 



É impossível separar o Homem da fé.

António Manuel Bento

 

            Se há festividades religiosas e espiritualidades fecundas, esmagadoramente exuberantes, contagiantes e avassaladoras, nenhuma iguala o Natal.

            Encher as localidades de luzes cintilantes, pintar as ruas de gente vestida de Pai Natal, de outros a cantar e a tocar, ou a transportar presentes para crianças e adultos, e a desejar a Boas Festas, apaga a infinidade de sem importâncias de um ano inteiro a que vulgarmente nos dedicamos.

Contudo, é necessário separar as luzes da oração, não lhes permitir o silêncio de palavras benditas, nem descolorir os corações do calor que só o amor é capaz. A festividade reluzente e extroversora não pode esterilizar o Natal, embrulhando-o de pequenos nadas.

            Por mais azáfama que haja, o Natal é naturalmente uma paragem: no sofrimento, por maior que ele seja, e não deixe de estar presente; na distância que criamos entre nós, na ausência de espiritualidade no “não há tempo” do quotidiano. Há sempre um momentinho de felicidade na maior das angústias, uma pequena reflexão, por mais insignificante que pareça, um toque de ternura, um chamamento, qual voz do Divino, que, ainda que tímida ou acanhadamente se faz presente, e não escolhe corações. O Natal não nos divide entre mais ou menos sofredores, mais ou menos ricos, mais ou menos sábios. No Natal somos todos festa, todos celebração, todos irmãos, porque o Natal não é apenas um dia, mas um dia que celebra a eternidade do nascer.

            Numa época em que ter um filho se tornou um acto pensado e repensado, bem reflectido e economicamente avaliado, não porque se tema falhar enquanto pai ou mãe, porque se vive a preocupação de que não vão faltar aos filhos os supérfluos inventados pela sociedade de consumo, o Natal da manjedoura transporta-nos para a simplicidade do amor verdadeiro, aquele que está livre dos vernizes brilhantes do efémero, a que damos tanta importância.

Que queremos nós mais? Ter um filho é ter um filho. Não tem complicações. Em qualquer lado se nasce, em qualquer momento. Nascer é vir ao outro mundo, sim, nós somos o outro mundo, o mundo em que nascer se faz carne, o infinito finitiza-se, o invisível torna-se visível. Somos portadores de tudo isso na medida em que somos filhos de Deus, criados simples e ignorantes, preparados para a descoberta da alegria que é viver.

Cada um de nós é um ínfimo Jesus. Nascemos nus e recebemos presentes, como Ele, e, tal como Ele, nascemos para uma família universal, para amar incondicionalmente, para trazermos uma mensagem renovadora.

            Já nos dispusemos a pensar: Que mensagem trago eu para o mundo? O que é que Deus gostaria que eu dissesse? E fizesse? Que exemplo sou de humanidade? Que filho/a de Deus sou eu? Em que medida o meu natal pessoal se confunde com o de Jesus?

Para nos entregarmos à aventura das respostas, temos que primeiramente nos converter a outros horizontes, tais como: ter uma família não pode ser um luxo, amar ser um desejo longínquo, o amor um sentimento inatingível, uma família estável uma quimera.

A vida tornou-se uma fragilidade, um sem-importância, uma qualquer coisa que qualquer coisa com ares de importante derruba. Tudo se sobrepõe, no momento difícil e complexo que atravessamos, à importância da vida.

Vivemos rodeados de coisas que nos atacam, quantas vezes até as próprias religiões com o fanatismo que implementam. Algumas coisas, ainda somos capazes de combater, outras, mercê dos seus ardis, nem damos por elas e enterramo-nos no seu lodo.

            E, neste cenário, o que é amar? O que é que amo quando digo que amo? Amar é uma transcendência, é compreender que a vida material é o necessário palco da espiritualidade, esta que é a nossa, com todos os nossos quês e porquês.

            Por mais que tentem finitizar a vida, descaracterizá-la, afundá-la nos ardis da luxúria ou da ganância, ela será sempre infinita, magnânima, extraordinariamente simples, uma força vertiginosa.

            Vivem-se mitos, não para explicar o inexplicável, mas o do homem endeusado, que busca do auto-controlo, o auto-domínio, o cuidado em não ter filhos, porque um filho passou a significar fome, miséria, privação; vive-se o mito de que a família já não é o laço, um nó apertado, aqui, neste outro mundo; criou-se o mito de que se é feliz sem nada disso, que se é auto-suficiente, que o sucesso na vida depende única e exclusivamente do trabalho pessoal, e que só a mim, e a ninguém mais, devo o triunfo e a glória na minha vida; é o mito de que o outro é um incómodo, que triunfar, ou não, é sempre por mérito próprio ou por falta dele, exclusivamente, porque perder ou não singrar é ser fraco, dispensável; vive-se o mito de que o contacto com o mundo se faz unicamente com um telemóvel. Vive-se a pobreza como uma vitória, o mito da auto-suficiência como uma sobredotação.

No entanto, se nos interrogarmos porque é que há abandonados, porque dormem cada vez mais irmãos espalhados pelas ruas frias da indiferença, a resposta está inevitavelmente na raiz dos nossos corações, nessas auto-qualquer-coisa que não têm outro nome que não seja avareza, no acreditar que por graça de Deus se nasce superior, que os fracos dormem ao relento porque nasceram limitados e não têm forças para lutar pela vida.

Porém, alguns desses que nem sequer olhamos, de que nem tampouco sabemos a cor dos olhos, já poderão ter sido nossos filhos e nossas filhas, nossos pais ou nossas mães. Não sabemos. Mas isso também não é o mais importante. Importante mesmo é a indiferença, por um lado, o escândalo do desamor, por outro.

Ainda que soubéssemos quem nos foram os que dormem nas ruas, a ajuda deve ser sempre um impulso irreflectido do amor espontâneo, e jamais a resposta a uma dádiva existencial perdida algures nos laços da consanguinidade: Não te dou porque foste meu pai, porque até foste o meu maior amigo sabe-se lá quando e onde. Dou-te porque me dou a ti, no amor que transporto, na gratuitidade do meu natal que desejo que se aproxime do de Jesus. Mais, dou-te apesar de Jesus, porque é na espontaneidade que está o Natal que me fazes conhecer. E é aí que, efectivamente, está Jesus de Quem me quero aproximar.

            O nosso dever não é para com o passado. Os nossos deveres, e muitos, são para com o futuro, que é hoje. O hoje está prenhe de futuro. A ajuda deve acontecer porque sim, não porque há uma razão perdida, existencialmente, numa ou em várias vivências. Não apouquemos a grandiosidade de olhar para quem precisa, descalço e esfarrapado nas calçadas frias, não limitemos o ilimitável. O amor não tem limites nem uma razão para ser. Ele é, simplesmente.

            Está-se cada vez mais nas mãos de um controlador invisível, de uma liderança qualquer. Entreguemo-nos nas mãos de Quem verdadeiramente nos lidera, Daquele que tudo sabe e tudo perdoa; sigamos sem receios quem nos disse “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vai ao Pai senão por mim” (Jo 14:6); entreguemo-nos à oração e acreditemos que somos felizes, sim, há muita gente que é feliz e não sabe, somos nós todos.

            E por isso, no Natal, todas as exuberâncias do coração são poucas, as alegrias sempre limitadas, porque o nascimento de um Salvador não há alegria que o represente, cânticos que o elevem. Tudo o que fizermos ficará, inevitavelmente, sempre, aquém.

            Precisamos que fé e alegria se confundam, que falem uma mesma linguagem, porque ser Homem é ser fé.

            Um Natal feliz, mas feliz mesmo, inesquecível.

            Margaria Azevedo