domingo, setembro 21, 2014

MILAGRES E PSICOGRAFIAS



            Nota prévia: Há milagres? Ainda os há. Ter saúde, alguma, e estar relativamente bom da cabeça, nos tempos que correm e como correm, é um “milagre”, e dos grandes. Há psicografias? Há-as, ainda. Honestas e credíveis? Sim, poucochinhas, mas essas estão escondidinhas, à poeira, pobrezinhas.

A não satisfação com o mundo material tal como ele é, e a consequente procura de algo que o contrarie é, no mínimo, reflexo de insensatez e de desordem mental e afectiva.”Um verdadeiro discurso alucinado”, diria o psicanalista.
Ora se entendermos por mundo material o chão que pisamos, a Natureza, enfim, pergunta-se: O que é que lhe falta para que a nossa felicidade seja completa? ou então: Que fundo de insaciedade é o nosso, que exigência tão desmesurada, para que o espaço em que nos movemos e o que temos sejam tão insuficientes para a fé em Deus? Além disso, não estando estes devidamente explicados, a começar porque não sabemos porque existe algo e vez de nada, parece que não haveria necessidade de acrescentar mais uns quantos enigmas a juntar aos que já temos.
Alargar o conceito de mundo material a um mundo invisível, denominado Espíritos, almas, ou designando-o de qualquer outra forma, não resolve o problema. É que a nossa grande questão não é o Espírito mas a Matéria, embora o Espírito também seja uma questão de relevância. Somos capazes de pensar Espírito sem Matéria, mas não o podemos representar; não podemos pensar a Matéria sem mais, a Matéria é sempre Matéria mais qualquer coisa, por isso, de alguma forma, a representamos. Mas esta representação é problemática.
Onde e como vamos buscar essa representatividade? Como construímos a estrutura material? Existe em nós uma monitorização com uma panóplia de apresentações que nos estabilizam e simultaneamente nos insatisfazem. Imaginamos ou sonhamos com uma pluralidade paralela à nossa, que nos observa e atrai. Movemo-nos perseguindo esse imaginário, não mais que uma realidade com outras formas de fé.
Os milagres manifestam-se na matéria, parecendo conferir-lhe, ainda que momentaneamente, outra natureza, outras leis, outra rácio. Cairbar Schutel defende que sem as manifestações, não lhes chama milagres, o Cristianismo não existiria, nem tão pouco, num sentido mais abrangente, a própria Religião. Será? Simultaneamente afirma que “A Verdadeira Religião desperta altas aspirações e torna-se um liame entre as almas e Deus; por isso não pode deixar de ter caráter permanente, no tempo e fora do tempo, na espaço e fora do espaço.” (1)
Mas os espíritas não acreditam em milagres. Dizem que tudo faz parte da mesma natureza; que é a nossa ignorância que lhes chama assim, milagres. De facto, podem ter razão os que assim pensam, no entanto, parece-nos, o nível do milagroso foi substituído pela designação de mediunidade, com todas as suas múltiplas apresentações, entre as quais salientamos a psicografia.
O apreciar doentio e insano de psicografias, a sua proliferação dentro do movimento espírita, entupindo as livrarias dos Centros, têm-na absolutizado e dado dela uma péssima imagem. Porquê? Porque, para muitos, são os Espíritos que estão ali, é o milagre da sua comunicação, é a Graça de Deus na Sua manifestação aos simples e incorrectos mortais; são as certezas para as incertezas, o certo para os errados, os despertos para os que estão a dormir, o abrir dos olhos aos que estão cegos, ainda que a própria Doutrina diga que não é, de todo, assim.
Mas porque prevalece e triunfa a psicografia face às demais formas de mediunidade? Além de ser a que mais conduz a erros grosseiros, outros subtis, e embora sendo do conhecimento de todos que os Espíritos, na sua maioria, não sabem mais do que nós, e que o conhecimento científico tem que ser trabalho nosso, e é explicado porquê, a psicografia é uma manifestação que se impõe na medida em que diz o que se pretende ler, o que se pensa que precisa de ler. E aqui é que está o erro. Parte das psicografias não o são mas apenas desdobramentos da personalidade dos médiuns, outras nem isso, são puras invenções; quanto às que são dos Espíritos, convém ter em consideração que há que saber examinar “(…)os Espíritos, para ver se são de Deus,(…)”.(1 Jo 4:1), e este é um dos pilares fundamentais da Doutrina.
A psicografia não é uma mediunidade do Evangelho, mas fora dele. Espalhar a Boa-Nova, curar os enfermos, falar línguas, expulsar os demónios é que são mediunidades evangélicas. Todavia, não falta quem diga que o Centro espírita não tem como função curar ninguém. Sem cair em exageros, pergunta-se: Quem impõe a barreira? Quem pode dizer o que cura e o que não cura? Quem sabe qual a natureza e intensidade de uma doença? Quem pode afirmar com certeza que os problemas do espírito e do corpo não interagem, quando todos sabemos que é o contrário que se verifica? Que dizer das somatizações, da fé, das curas em pessoas que estavam desenganadas dos médicos? Quantos passaram pela provação do estado de coma e que reanimaram e fazem a sua vida normal?
Neste momento, à semelhança dos milagres, as psicografias criaram regras de conduta. Os milagres despertam para novas formas de vivência, novos comportamentos, modificam usos e costumes. As psicografias também. São os milagres do Espiritismo.
Milagres e psicografias tornaram-se praticamente sinónimos: pretendem dar outro aspecto à realidade, ao quotidiano físico, desvalorando-o, passando-o ao estatuto de erro, insuficiência, um mal que só se justifica e explica através de uma outra manifestação que se lhe sobrepõe e, portanto, lhe dá sentido.
Com o passar dos anos, os milagres foram-se desfazendo, perderam importância. Deixaram de ser manifestações de fé. Com a valoração do papel do homem/mulher na manifestação do religioso, com o assimilar a vida material à vontade, ou pelo menos, à permissão de Deus, os milagres perderam carisma. A partir do momento em que o ser humano começou a perceber que ele é o portador de Deus na justa medida em que o seu pensamento esteja com Ele, tudo se modificou. Os milagres tornaram-se, felizmente, uma forma de não fé, tal como, em Espiritismo, quem ainda precisa de um suposto texto vindo do além para sedimentar a sua fé é porque ainda coloca Deus em segundo plano.
Uma Entidade pode ditar um texto, mas, para nós, será sempre o texto de uma Entidade, tal como aquele que escapa de um perigo tem aí o seu milagre. De facto, quem realmente crê em Deus tem na sua própria existência uma prova, não precisa de mais nada.


Margarida Azevedo

­­­­­­­­­­­­­­­­­­Referência Bibliográfica
(1    (1)     SCHUTEL, C., Parábolas e Ensinos de Jesus, O Clarim, S.P. 1979, Preâmbulo, s/nº de pág.
1 Jo 4, Bíblia de Jerusalém, Paulus, S.P., 2002