segunda-feira, dezembro 25, 2017

O NASCIMENTO DE UM JUDEU



“Não se sabe exactamente qual o ano do nascimento de Jesus.” *

E.P.Sanders

 

            Jesus nasceu no judaísmo do segundo Templo, aquele que irá ser destruído no ano 70 d.C., pelas tropas do Império Romano. Na altura, o mediterrâneo oriental era dominado por Roma: Herodes Antipas – tetrarca da Galileia e Pereia; Pôncio Pilatos – prefeito da Judeia e Idumeia. José Caifás era o sumo-sacerdote em Jerusalém (Sanders **).

É neste contexto, deveras complexo, que o profeta Jesus veio pregar o Reino de Deus, dentro do Judaísmo, defendendo que o mesmo só é atingível através de um sentimento divino, o Amor. Já não basta cumprir os preceitos que foram transmitidos de geração em geração; é no coração de cada ser humano que podemos encontrar Deus, através do Amor, o sentimento universal. É pelo Amor que o humano se transcende encontrando-se com Deus, e, simultaneamente, que Deus se torna imanente no coração do humano.

Para tal, os conceitos de próximo e de outro vão tornar-se decisivos para a temática da nova pregação. Serão pontos de charneira para Quem o primeiro mandamento já não é somente o não curvar-se perante qualquer figura, nem adorar outros deuses além do Deus Único (Deut 6:4); impõe-se, agora, o amá-Lo acima de todas as coisas, primeiro mandamento, e ao próximo como a si mesmo, segundo mandamento (Mt 22:37-40; Mc 12:32.

O outro já não é um ser espartilhado pela classe social ou pelo comportamento na vida, mas pessoa no caminho para Deus, excluindo o que socialmente representa. Há uma mudança de paradigma, os valores mudam e Deus, através de Jesus, é o Deus da misericórdia. Isto não significa anulação da Lei/profetas, mas pensar Deus como esperança, refúgio e das coisas sem sentido até então, tais como o óbulo da viúva.

Assim, pode-se afirmar que surge uma democratização do modo de estar na religião do Deus Único, mas não segundo os parâmetros da retórica helénica, tão em voga na altura, objectivanto a necessidade de bem discursar, mas segundo o pluralismo característico do Judaísmo, fazendo-o sair dos debates intelectuais, transpondo-o para a singularidade do coração humano. Dito de outro modo, não se trata de sentir-se como parte integrante do Judaísmo pela via da Lei/profetas/Tradição, mas da humanidade inteira pelo sentimento maior, o Amor. O Deus-Lei passa a Deus-Amor, numa maior abrangência.

Isto significa que a importação do helenismo, com o seu vasto aparelho conceptual, nomeadamente, o Bem, o Belo, a Virtude, etc, são manifestamente insuficientes face a um Judaísmo que cresce através do Amor universal. No entanto, esses conceitos sofrem, também, uma teologização - acresce-se ao sentido filosófico a temática  Deus - . A dificuldade em aceitar a nova doutrina (jamais uma nova religião), deve-se ao facto de que o Amor ultrapassa escolhidos, puros e impuros, sábios e ignorantes, pobres e ricos, pecadores e santos, judeus e gentios, samaritanos, idumeus, etc.  Não é um amor intelectual, ou dentro da mesma congregação, mas à escala universal.

Lembremos que o Judaísmo da Sinagoga era tolerante face às outras crenças. Hayoun afirma que “(…) o exclusivismo religioso nunca foi apanágio da Sinagoga, e esta jamais pretendeu que extra Synagogum non es salus.” (p.57).***

Ninguém melhor que Paulo percebeu a dimensão espiritual do Amor a que Jesus aludia, como refere no complexo texto de 1Cor 13:1-13. Os nossos actos, por muito belos a assertivos que sejam podem não ser representativos de uma vivência interior de Amor pleno de gratuitidade. Aqui temos uma feliz aplicação do helenismo: a separação entre a aparência e a realidade, sendo a realidade o fundamento do acto, invisível,  mas aplicada à reflexão teológica. Na parábola do homem caído á beira da estrada (Lc 10:25-37), temos um excelente exemplo do amor ao próximo, além da própria noção de próximo, tão cara ao Cristianismo, e de puro/impuro, tão caros ao Judaísmo, numa reflexão ímpar. A linguagem do Amor sobrepõe-se fazendo-nos reflectir que estamos no mundo com uma missão: não deixar de ajudar quem precisa, quando precisa, seja ele quem for. O próximo não é o homem caído à beira da estrada, mas o benfeitor que acorreu em seu auxílio. Quem é esse próximo? Donde vem? Para onde vai? Não importa. Sabemos que é alguém que se compadece.

            Podemos pensar que, segundo Jesus, há uma relativização do religioso em detrimento do social (Mt 5:23-24). Pode ser. Mas a questão é mais abrangente. O próprio social é religioso na medida em que apresenta o outro como um elemento de re-ligação. Trata-se de olhá-lo todo filho, todo companheiro, todo irmão. A questão do puro/impuro torna-se, agora, uma questão a ser revista. Podemos dizer que, no judaísmo jesuânico, não há impuros, mas os de corações disponíveis versus os de corações indiferentes.

            Não estamos em presença do amor dos filósofos, pela sabedoria e grandes temáticas afins, de longas discussões e retóricas, pertença de uma classe de sábios, mas do Amor que não se discute e que habita no coração de toda a gente. Não são incompatíveis, complementam-se se para tanto tiverem a sabedoria de bem se harmonizarem.

            O que é que não faz parte destas temáticas e que lhes foi sobreposto?

            A concepção virginal de Maria; o pecado original; Deus Uno e Trino; Jesus, encarnação de Deus (o Judaísmo, Jesus, os Doze, Paulo ignoravam semelhantes temáticas). Ora estes dogmas não são representativos de todos os grupos cristãos, nomeadamente do Espiritismo.

Por outro lado, o que significa dizer que Jesus é o Salvador? Dentro de uma perspectiva histórica, Jesus é salvador na medida em que a sua pregação procede a uma inevitável desfatalização da História. O Natal de Jesus é o da esperança de uma vivência fraterna em que o ser humano não está condenado a uma vida de sofrimento. A felicidade, o Banquete celestial que nos espera, o festim espiritual são o corolário de um trabalho em prol do Bem. Vivendo em amor, o Reino de Deus é na terra e não fora dela. Há cristãos que vivem à espera de um golpe de Deus sobre uma fatia considerável da humanidade, com fim a uma limpeza espiritual radical e, dessa forma,implantando um novo reino para um punhado de escolhidos. Esses cristãos ainda não entenderam que é cada um de per si que tem que trabalhar para a implementação do reino de Deus, na medida em que ame o próximo como a si mesmo e a Deus acima de todas as coisas.

O Paganismo, uma das riquezas do Cristianismo, não significa fé num deus mágico. Deus não tira coelhos da cartola nem é um herói. O Paganismo é, sobretudo, o respeito pelas forças da Natureza como manifestação de Deus.  

            Assim, lembrar o Natal significa entrar num momento único de espiritualidade num momento histórico preciso; Jesus não veio contradizer a Lei e os profetas, pois são inúmeras as referências aos mesmos, sendo que os dois primeiros mandamentos resumem “toda a Lei os profetas” (Mt 22:37-40; Mc 12:32). O Natal é entrar no universo de uma memória que lembra simultaneamente a irrupção do helenismo no pensamento judaico, que vinha a acontecer muito antes de Jesus, e a tomada do território de Israel pelo Império Romano, com consequências histórico-religiosas importantíssimas. Se o primeiro impõe a intelectualidade da retórica com o objectivo de melhor expor a pregação teológica, o que os judeus não viam com bons olhos, o segundo irrompe pela força. Ambos conduzem à necessidade de duas novas páscoas: 1. Não já geográfico-teológica (do Egipto para a Terra Prometida), mas para a liberdade de crer segundo os seus mesmos conceitos. O messias político e salvador coincidentes na mesma pessoa, tão criticado por alguns cristãos, faz todo o sentido para um povo que estava a viver a irrupção da cultura helénica, que se impunha com toda a sua punjança. Pretendia-se a continuidade de uma fé sem interferências avassaladoras de intelectuais gentílicos. 2. O Natal de Jesus conduz a uma passagem súbtil na medida em que há uma observação da Lei e da Tradição, é certo, as práticas exteriores, para a interioridade do coração humano. Além de uma vivência, o Judaísmo é algo que se transporta na fé.

Com o Natal é uma nova humanidade que se pretende construir. Nascer numa cabana, ser visitado por impuros, os pastores, por Magos vindos do Oriente, é uma novidade, principalmente se essa criança for o Messias. Esta Natividade impõe-se como uma esperança: o sofrimento terá um fim.

            Por isso, não é apenas Jesus que nasce, mas a humanidade inteira porque, tal como se encontra, está de passagem.
 
            Margarida Azevedo

 

Bibliografia

*E.P. SANDERS, A Verdadeira História de Jesus, Editorial Notícias, Cruz Quebrada, 1993, p. 26.

**idem, p.51.

*** HAYOUN, M-R, O Judaísmo, Teorema, Lisboa, 2007, 2Face ao Mundo, 2. Judeus e Cristãos, pp. 57-60.

Bibliografia consultada

NEVES, Pe. C. das, As Grandes Figuras da Bíblia, Editorial Presença, Barcarena, 2010, Jesus, pp.222-339.

PUIG, A., Jesus uma Biografia, Paulus, Lisboa, 2010, 4. A Personagem, pp. 147- 155.

VIDAL, César, Jesus, o Judeu, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2011, I O Nascimento e a Família de Jesus, pp.197-204.

 

Referências bíblicas

Trad. de Frederico Lourenço, vols I e II.