domingo, março 10, 2019

O SOFRIMENTO NÃO TEM ÉTICA

 
            Quando vai ao médico certamente não lhe interessa a sua vida privada. Não quer saber se é cumpridor da Lei, se é violento no lar, se é ateu ou crente; se é maledicente, se furta, se é preguiçoso ou se tem um feitio intragável. Quando vai ao médico a única coisa que lhe importa é que ele consiga resolver o seu problema de saúde.
            Com os videntes, bruxos, virtuosos, médiuns, ou o que de mais lhes queira chamar, a  situação é semelhante. Quando as pessoas vão solicitar os serviços relacionados com o Além, o oculto, o misterioso, o sagrado, o divino, ou o que de mais lhe queira chamar,  também não querem saber dos comportamentos do dito cujo. Apenas pretendem que o seu problema seja resolvido definitivamente.
O caso João de Deus, a par de muitos outros semelhantes que haverá por esse mundo, é o resultado do aproveitamento do sofrimento alheio, que não carece de grandes habilidades para ser facilmente manipulado, e do instinto de sobrevivência segundo os parâmetros, não da ciência dos homens mas da ciência de Deus representada e transmitida por um suposto ser muito especial, escolhido para o efeito. Mas não são apenas os chamados virtuosos ou bruxos que são manipuladores. Estes são muitas vezes utilizados para camuflar outras realidades mais incisivas, isto é, enquanto se denunciam, e com razão, os seus aspectos mais obscuros fazendo grande alarido, calam-se idênticas práticas levadas a efeito por organizações religiosas (veja-se o escãndalo da pedofilia, por exemplo).        
Urge compreender que o sofrimento é o estado mais perigoso do ser humano. Por isso não tem ética. Mas não só. Os que estão no outro lado da barricada também nâo. Os líderes religiosos, tal como os videntes, chamemos-lhes assim, são igualmente humanos,  igualmente sofredores e, como tal, sujeitos às mesmas regras. Um indivíduo pode ser um grande medium curador, simultaneamente um crápula que isso não impede ninguém de solicitar os seus serviços curadores porque ele pode ser bom naquilo que faz.
Por outro lado, o sofrimento fragiliza, torna a pessoa vulnerável, exposta e frágil. No auge do sofrimento aceita o inaceitável, adere ao irracional, torna-se estranha perante si mesma. O sofrimento cria fantasmas levando, não raro ao homicídio/suicídio na perspectiva de anular definitivamente o mal. No auge do sofrimento são tomadas as piores decisões, cometidos erros irreversíveis, são feitos pactos com o ilícito se preciso for. Por um filho doente um pai ou uma mãe fazem tudo; na expecativa de curar um cancro é percorrido o mundo inteiro; na esperança de uma palavra poderosa que chegue ao céu e traga o tão desejado emprego é dado tudo o que for pedido. Neste ponto, quem será que tem autoridade para dizer”Eu jamais faria tal coisa!” Se cada pessoa puser a mão na consciência verifica que não precisa de grandes reflexões para compreender que em situação de grande sofrimento vai até ao fim do mundo.
Mais. Sem o sofrimento o que seria dos videntes e das religiões? Será possível dissociar a problemática da fé, da crença, da religião da do sofrimento? Em última análise, para que serve a religião, ou para que serve o vidente? Todas as sociedades têm os seus videntes como têm as suas religiões. Todas possuem aquelas pessoas muito especiais que recebem fórmulas mágicas de como manipular os materiais da Natureza, fazer mézinhas, intervenções “cirúrgicas”, curar enfermidades muito complexas e estranhas.
A relação sexual não escapa a esta vivência. Não porque o crente se queixe de perturbações do foro sexual, pode tê-las ou não, mas porque a sexualidade também tem sido encarada como um elemento de referência das curas e das religiões. Não é raro um vidente dizer a uma mulher que a cura só será definitivamente concretizada quando esta tiver relações sexuais com ele a fim de receber a sua energia curadora. E, geralmente, não é uma só vez. Do ponto de vista religioso, surgem práticas idênticas. O que era a prostituição dos templos na Grécia Antiga? Qual o papel das pitonisas, além da prática da adivinhação, senão o da prática sexual para transmitir forças sobrenaturais? Qual o papel de líderes religiosos dos nossos tempos com uma miríade de mulheres sexualmente ao seu dispor? Podemos não saber desde quando existe a  crença de que a sexualidade é transmissora de poderes, mas não estaremos longe da verdade se dissermos que é tão antiga quanto a existência dos próprios videntes, líderes religiosos, os chamados directores espirituais, etc., a sexualidade utilizada para fins catárticos e exorcísticos é uma tematica que está e estará sempre em aberto. Mas primeiro urge sarar preconceitos.
Uma coisa, no entanto, convém esclarecer: Não confundamos práticas culturais tendentes a dissipar-se com o passar do tempo, com tráfico de tudo o que é ilícito justificado com a desculpa esfarrapada do tipo “Eu não obrigava ninguém!”A vulnerabilidade das pessoas, por um lado, ou a própria actividade mediúnica, por outro, jamais podem ser um justificativo para a falta de educação cívica e espiritual.

Resquícios de um passado espiritual ainda muito presente jamais se podem sobrepor ao avanço civilizacional onde os conhecimentos científicos e a educação mediúnica estão ao alcance de todos.
Muitos espíritas fanáticos diziam que João de Deus era espírita, só que não o sabia, dadas a maravilhas que realizava. A sua actividade só poderia ser devida a um ser superior e, sempre que alguém punha em causa a sua prática, tal como quem escreve estas linhas, era tido como herege. Agora, perante as horríveis descobertas que vieram a lume, calaram-se. Nem um pio. Aqui D´El –Rei que isto não é comigo. Pois é, a fragmentação do movimento espírita, a crendice que o invadiu, a falta de leitura de Kardec e a ignorância bíblica (quer do Antigo quer do Novo Testamentos) têm construído uma panóplia de seres tão superiores que facilmente se desmoronam à velocidade do relâmpago. Aqui, não podemos deixar de lembrar o grande S. Paulo com o seu texto espectacular 1Cor 13: 1-13. Esses espíritas palradores esquecem-se de que a mediunidade é transversal ao ser humano; mediuns de cura há muitos, oradores de cátedra ainda mais, fama mundial e ribalta nem se fala. Mas oração, estudo aprofundado e livre, empenho na sua modificação interior, espírito de sacrifício, altruísmo, preocupar-se em cumprir os Dez Mandamentos, estudar os profetas, desenvolver a auto-crítica, etc., isso fica para depois.

Quanto à mediunidade propriamente dita, e partindo do princípio de que houve efectivamente curas em que João de Deus foi medianeiro, é de lamentar que as Entidades que descem a este planeta para trabalhar em prol do nosso bem-estar tenham que se sujeitar a tais pessoas. Os que estão cá deste lado esquecem-se de que essas  Entidades também evoluem com o trabalho que realizam junto de nós. Obedecem a ordens superiores de que não temos a menor noção. Infelizmente, a falta de respeito pelas Entidades generalizou-se.
 Tudo isto nos remete para questões muito incisivas, entre as quais a maior de todas será sempre: O que é, efectivamente, a mediunidade? Mas também qual o peso da educação na actividade mediúnica; porque algumas pessoas que manifestam tanta fé não conseguem o que a outras é dado fazer, tais como João de Deus, por exemplo? Não consta que Teresa de Calcutá fizesse operações, nem que as curas realizadas por Jesus fossem sobrenaturais, dito por ele mesmo, supostamente, pois elas estão ao alcance de todo aquele que tiver fé (Mt 17:20; Jo 14:12).
Acreditar nos homens mais do que em Deus é o maior risco do ser humano. O resultado está à vista de todos.
Margarida Azevedo