domingo, outubro 20, 2024

UMBRAL, UM LUGAR COMPLEXO II

 

 

 


“Os Espíritos que seguem desde o princípio o caminho do bem, nem por isso são espíritos perfeitos; se não têm más tendências, não estão menos obrigados a adquirir a experiência e os conhecimentos necessários à perfeição.” (Kardec, 1984)

Do que foi dito anteriormente conclui-se que o umbral liberta Deus do seu papel de castigador, ficando o Espírito entregue, fatalmente, ao resultado dos seus bons ou maus pendores. Por outro lado, se Deus não castiga também não alivia. Simplesmente está fora de uma coisa e de outra.

Além disso, se há os que seguem, desde o princípio, o caminho do bem, mas nem por isso estão isentos da luta pelo conhecimento, e se todos vamos para o umbral após a morte, como afirmam alguns, então ninguém está livre das tribulações, sejam elas neste planeta, sejam no umbral, tudo em nome da ciência e da perfeição.

Outro aspecto não menos pertinente tem a ver com o facto de se o umbral é o lugar que nos espera a todos após a morte, se contém vales de enxofre, lagos de sangue e de pus, se há colónias aterradoras, e se tudo isso está numa relação de contiguidade com a vida na terra, como referem os mais esclarecidos, então onde situar o processo de limpeza espiritual e de purificação tão necessários ao progresso dos Espíritos?

A globalização está a empurrar-nos para a emergência de uma reconceptualização do nosso discurso, de forma a cortarmos com uma certa exasperação a qual se traduz por uma crescente insensibilidade ao sofrimento. Os ambientes espíritas têm-se tornado, ano após ano, frios e insensíveis, calculistas, isolacionistas, perigosamente radicais a tal ponto que fazer uma abordagem dos incêndios florestais, cheias e todo o tipo de catástrofes naturais, o terrorismo, os tiroteios em escolas e demais lugares públicos, etc., é encarado como fazendo parte do processo de limpeza do planeta que, dessa forma, passará de lugar de provas e de expiações a planeta de regeneração.

Confundindo o avanço tecnológico com evolução espiritual, pois que uma criança mexe num computador como muitos não manuseiam uma tesoura, concluem que já cá temos os novos habitantes iluminados. Porém, quando os telejornais apresentam os pedopsiquiatras e pedopsicólogos a alertarem pais e educadores para os perigos de as nossas crianças e jovens passarem tanto tempo com telemóveis e computadores nas mãos, a teoria da iluminação cai por terra. Efectivamente, acreditar que a regeneração de um planeta se faz por meios tecnológicos e de catástrofes de toda a ordem é não ter o mínimo de sensibilidade pela vida, é fazer do umbral que ainda é a terra o ponto de charneira para o Divino.

Se existe o umbral em torno do planeta, realidade paralela à nossa do tipo mundo das ideias de Platão e a que Aristóteles chamou metáforas poéticas, então não é aqui que tudo começa. Pelo contrário. O umbral é um mundo paralelo de provas e de expiações e o nosso planeta mais não é que a materialização das mesmas. Até porque quem lê o Nosso Lar percebe que se está perante uma realidade objectiva.

Como fazer para sair desta situação? Além do referido no número anterior, temos a:

 

1.     Crença de que os Espíritos sabem tudo, nomeadamente o futuro;

2.     Crença de que os Espíritos presidem ao progresso científico, aos inventos, a descobertas tecnológicas, e que revelam tesouros escondidos;

3.     Crença de que Deus criou seres perfeitos (não sujeitos à escala evolutiva).

4.     Crença de que quando desencarnarmos vamos para o paraíso;

5.     Crença de que os Espíritos de Luz se manifestam na terra, nomeadamente, santos, anjos, arcanjos e serafins

 

Sobre estas matérias, vejamos o que diz a Codificação:

 

1- “As percepções e os conhecimentos dos espíritos são indefinidos; em uma palavra, sabem eles todas as coisas?

- Quanto mais se aproximam da perfeição mais sabem: se são superiores, sabem muito; os Espíritos inferiores são mais ou menos ignorantes em todos os assuntos.” (Kardec, ibidem, questão n.º 238)

 

2- “ - Os Espíritos não podem guiar descobertas nem investigações científicas. A Ciência é obra do génio e só deve ser adquirida pelo trabalho, pois é por este que o homem progride. Que mérito teríamos nós se, para tudo saber, apenas bastasse interrogar os Espíritos? (…)

O mesmo se dá relativamente aos inventos e descobertas da indústria. Chegado que seja o tempo de uma descoberta, os Espíritos encarregados da sua marcha procuram o homem capaz de levá-la a bom termo e inspiram-lhes as ideias necessárias, isto de maneira que lhe não tire o respectivo mérito, que está na elaboração e execução dessas ideias.

- Os Espíritos não podem concorrer para a descoberta de tesouros ocultos. Os superiores não se ocupam dessas coisas e só os zombeteiros indicam tesouros que o mais das vezes não existem e apontam lugares diametralmente opostos àqueles em que realmente existem. (…) a verdadeira riqueza consiste no trabalho.” (Kardec, 1997, p. 112).

 

            3- “ Se a opinião de que há seres criados perfeitos e superiores a todos os outros é errónea, como se explica a sua presença na tradição de quase todos os povos?

            - Aprende que o teu mundo não existe de toda a eternidade, e que muito antes de existir já havia Espíritos no grau supremo; os homens, por isso, acreditaram que eles sempre haviam sido perfeitos.” (Kardec, o.c., questão n.º 130).

 

              4- “Em que se transforma a alma no instante da morte?

            - Volta a ser Espírito, ou seja, retorna ao mundo dos Espíritos que ela havia deixado temporariamente.” (Kardec, ibidem, questão n.º 149).

 

              5- Os Espíritos puros têm como missão: “Assistir os homens nas suas angústias, incitá-los ao bem e à expiação de faltas que os distanciam da felicidade suprema (…). São às vezes designados pelos nomes de anjos, arcanjos ou serafins;

            Os homens podem comunicar-se com eles, mas bem presunçoso seria o que pretendesse tê-los constantemente às suas ordens.” (Kardec, ibidem, p.102).

 

            6- “ Há Espíritos que ficarão perpetuamente nas classes inferiores?

            - Não; todos se tornarão perfeitos.” (Kardec, ibidem, questão n.º 116).

 

             

              Além dos anteriormente referidos, parece-me que é por estes elementos que devemos começar. Exacerbar a moralidade e a razão em nada abona a seu favor. Elas desenvolver-se-ão com o tempo. Para já, influenciados que somos pelos Espíritos, é de uma educação para a espiritualidade que precisamos urgentemente. Aprender a pensar o bem, a desejá-lo para todos, aprender a perdoar, a desfrutar da diversidade humana e da Natureza, estarmos receptivos ao aprendizado nesta escola maravilhosa que é a Vida significa construirmos um pequeno oásis espiritual na terra.

            Não existe quem saiba tudo, neste ou no outro lado da vida, ninguém é perfeito, só Deus; não há paraísos perdidos, não temos acesso a seres altíssimos porque fulminar-nos-iam com a sua luz. Contentemo-nos com a luz que nos chega, que já está muito acima de nós, sem ela não tínhamos a Codificação.

            Não temos uma ideia objectiva do que se passa ao redor de nós. Que sabemos do umbral de que tanto se fala? Diz-se, com alguma razão, que nele ocuparemos o lugar compatível com a nossa consciência, um dia, quando desencarnarmos. Creio, no entanto, que ele é sobretudo uma boa casa do nosso inconsciente, individual e colectivo. Talvez ele seja o tal mundo muitooooo distante, o referencial dos nossos gostos, preferências, simpatias, ou não, onde habitam os nossos conceitos, os sentidos que damos à vida.

Pré-ocupemo-nos com os problemas que temos à nossa porta, dentro das nossas casas. Quando o ser humano deixar de criar infernos é justamente quando o planeta irá passar a outro nível. As desgraças que acontecem no mundo não são um processo de purificação, mas a consequência de uma multiplicidade de factores, principalmente a crise de valores que se está a viver, a falta de perspectivas para o futuro, o falhanço das religiões porque não conseguiram modificar a natureza humana, pelo contrário, criando o medo e o sofrimento, alimentando a miséria fazendo da pobreza uma virtude, têm-se importado mais como vozes infernais que doces teorias das virtudes divinas. Ao longo da história massacraram o ser humano com falsas noções da vida espiritual, dando imagens do além fantasiosas, perpetuando a mentira ao longo dos tempos. É este uma pequena parte do umbral em que temos vivido.

Há outro além deste? Invisível para os nossos olhos? Que sabemos nós? Que vemos nós? Estou sentada frente a este computador, a escrever estas linhas. Quantas coisas estarão a passar-se neste momento, nesta sala, junto a mim, e eu nem uma ténue sensação tenho, um vislumbre que seja me toca no olhar. É o drama da transcendência na imanência, ou do fraco que deseja superar-se.

Os Espíritos gravitam pelo universo no cumprimento das leis de Deus, que nós não entendemos por sermos tão pequeninos.

 

 

Margarida Azevedo   

 

 

 

Referências bibliográfficas

KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, Livro Segundo, Mundo Espírita ou dos Espíritos, cap. I, Dos Espíritos, perg. n.º 127, p.105, nota de Kardec.

      ___________, O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, LAKE, São Paulo, 1997, Primeira Parte - Doutrina, cap. X, Intervenção dos Demónios nas Diversas Manifestações, p.112.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

terça-feira, setembro 24, 2024

UMBRAL, UM LUGAR COMPLEXO


 

“Todo pensamento implicitamente falso, toda máxima contrária à sã moral, todo conselho ridículo, toda expressão grasseira, trivial ou simplesmente frívola, qualquer sinal de malevolência, de presunção ou de arrogância, são indícios incontestáveis da inferioridade de um Espírito.” (1) 

            Os Srs. Leitores, que já me conhecem, sabem que não é do meu agrado falar do lado de lá. Até porque, além da nossa sensibilidade e do nosso entendimento tão rudimentares, estamos ainda condicionados pela lei sapiente do esquecimento do passado, o que, à partida, nos projecta para o futuro, que almejamos sempre mais risonho do que o presente. Se tivéssemos uns laivos, ainda que incipientes, de alguma reminiscência, talvez pudéssemos adiantar alguns aspectos. No entanto, isso seria pura ilusão. Por sabedoria divina, estamos submetidos à lei do progresso, com os seus patamares, o que, por agora, significa estarmos submersos numa existência ainda demasiado densa e envolvidos por uma matéria demasiado grosseira. Entregues à fantasia, e quantas vezes ao devaneio, deixando cair por terra a tão necessária objectividade, desenhamos mundos com a nossa imaginação mas que nos parecem reais. Por outro lado, há quem confunda a revelação de uma ou outra vida passada com a noção do que são os mundos habitados. Ora, uma coisa nada tem que ver com a outra. Além disso, quando se fala de revelação há que ter em conta da utilidade da mesma.

            Por todas estas razões, e por via da coerência, não partilho das descrições que são feitas desses mundos, nem da confusão entre vidas passadas e os mesmos. Além disso, semelhantes revelações em nada trariam mais fé, e em nada contribuiriam para a modificação interior do ser humano. Muito pelo contrário. A revelação do passado espiritual iria aumentar significativamente os conflitos existenciais no mundo, e já temos que chegue. Penso que é tempo de o ser humano deixar de vez as preocupações com o além e ocupar-se com o planeta em que vive, que bem precisa de todos nós.

            O umbral não escapa a essas descrições, sobre as quais não há consenso. É descrito como um local para onde vão os que não evoluíram na terra, ou para onde vão todos os que viveram na terra, o que não é a mesma coisa. Em comum temos o facto de a permanência não ser definitiva, nem para uns, nem para outros. Como habitualmente em Espiritismo, há uma pesada carga moral, isto é, a vivência dentro dos parâmetros da moral é que vai decidir para que nível do umbral os Espíritos ingressam. Que parâmetros são esses, ninguém sabe. Por exemplo, ser bom cidadão, bom pai ou boa mãe não se restringe apenas à individualidade, mas há todo um contexto social. Há comportamentos de bons cidadãos, bons pais e boas mães que são opostos, ou mesmo chocantes face às diferentes culturas. Não falta quem mate a esposa por um cisma qualquer, e veja nisso um acto virtuoso; reciprocamente, não faltam médiuns a quem lhes aparecem assassinos felizes da vida por terem limpado o mundo de indivíduos nocivos, passado a ideia de que foi um acto nobre.

Vou basear-me em Kardec. Tenhamos, porém, em linha de conta que a nossa distância do séc. XIX kardecista caracteriza-se por uma rejeição da Ciência, pondo-se em causa verdades científicas. Se o Iluminismo se impôs pelas suas descobertas científicas e novas reflexões filosóficas e teológicas, hoje pretende-se remeter esse período para o sótão das velharias. Já não está em causa querer descobrir as leis imutáveis que nos regem, mas viver munido de tecnologia que nos permita dominar o universo, autêntica alucinação numa nova versão do super-homem, desta vez isolado, infeliz, desprotegido, infantilizado, idiotizado, crédulo, desprovido de liberdade, mal intuído, à mercê de todo o tipo de negatividades.

            Não pretendo impor-me ao que muito se diz sobre esta matéria, menos ainda criar uma teoria sobre a mesma. O que vou fazer, muito sinceramente, é cometer o atrevimento de escrever umas linhas sobre o umbral, recorrendo exaustivamente a Kardec porque muitos não conhecem a Codificação, outros porque já a esqueceram. À partida, vou usar o vocábulo umbral por ser o mais acessível à maioria dos leitores. Desconheço se é o termo mais correcto para designar aquilo a que espíritas, e não só, referem com tal conceito. O termo, no entanto, parece-me problemático.

            A palavra vem “Do espanhol umbral, do antigo catalão limbrar, do latim liminares, - e, relativo à soleira da porta.”*, designa o “Ponto de passagem para o interior ou o início de algo.”* Não é uma palavra da Codificação espírita, Kardec desconheci-a por completo. Entra no léxico espírita no séc.XX com F. C. Xavier, através da obra Nosso Lar, publicada em 1944. É definido como a 4ª dimensão, uma região fluídica que funciona como um filtro onde ninguém ingressa por castigo divino, mas por necessidade de limpeza espiritual ou depuração. Para muitos, toda a gente vai para o umbral depois do desencarne, inevitavelmente. E porquê? Porque no umbral é onde estão todos os estados de consciência, dos mais atormentados ou negativos, aos mais elevados, segundo os nossos parâmetros. Isto é, sendo que todos somos pecadores, todos somos, potencialmente, umbralinos.*

Há quem compare o umbral com:

O purgatório, no Catolicismo, o qual consiste num lugar onde as almas passam por um processo de purificação antes de ingressarem no paraíso; lugar, simultaneamente, de reflexão e expiação.

O bardo, no Budismo Tibetano, que consiste num estado entre a morte e a encarnação. Aí, o Espírito procede a uma reflexão sobre o passado, a qual vai ser determinante para a encarnação seguinte.

O sheol, no Judaísmo, terra do esquecimento, lugar de sombras, morada dos mortos. Não há punição, no entanto é “um estado de existência separado da vida plena com Deus.”**

O hades, na Mitologia Grega, lugar dos mortos, morada das almas dos falecidos. Conforme o modo como viveram, assim “podem experimentar diferentes níveis de conforto ou sofrimento.”**

Aparentemente, parece que há alguma similitude com estas doutrinas. Porém, não é bem assim. Aquilo que nos chega como umbral, pelas Entidades nos trabalhos de evangelização, não é compatível com um plano de purificação antes de entrar num suposto paraíso, nem lugar de esquecimento. Também não é lugar de reflexões profundas, na maioria dos casos, pois que o sofrimento nessas regiões é de tal forma que o principal objectivo é aliviá-lo. Isto significa que nunca nos chegou a informação de que o umbral fosse um lugar leve. Bem pelo contrário, é de uma densidade profunda. No entanto, é onde o Espírito toma alguma consciência de si mesmo, recebe uma relativa informação sobre a vida espiritual, dependendo, sempre, do seu estado evolutivo (nível cognitivo, e principalmente afectivo), o qual, por sua vez, espelha o modo como viveu na terra. Assim, o umbral é o lugar onde é relativamente avivada a memória das suas práticas terrenas, as quais foram a causa do seu ingresso num dos níveis de semelhante lugar. Dito de outro modo, o umbral parece ser um lugar de preparação para uma suposta encarnação na terra.

Mas nem tudo aí é dor ou sofrimento, tal como o entendemos. No umbral habitam igualmente seres de uma inteligência super-desenvolvida, versados nas mais diversas áreas, da ciência às artes, da teologia à filosofia, produzindo grandes teorias, construindo sistemas, correntes de pensamento que, para nós, fazem todo o sentido, mas que no fundo são altamente trevosas.

Neste sub-mundo super-povoado que nos circunda vivem muitas das Entidades que comunicam com a terra, afinizadas com os que aqui vivem, alimentando e desenvolvendo-lhes os sentimentos de vingança, ódio, inveja, falsas noções axiológicas, éticas e morais, religiosas e políticas. Intuindo pensamentos desajustados, porém meticulosamente elaborados e rebuscados, não falta quem na terra lhes dê ouvidos, seres reencarnados em tudo semelhantes a essas Entidades, obedecendo-lhes cegamente. Estes obedientes, julgando estarem perante raciocínios muito avançados, vão iludindo, por sua vez, outros ainda mais cegos. Numa época em que tanto se fala em crise de liderança, eles são vistos como sobre-dotados, grandes líderes, até mesmo profetas. Contudo, se os víssemos como eles verdadeiramente são, assustar-nos-íamos, afirmam os Mentores. E temo-los em todos os sectores da vida.

No entanto, os Espíritos que se dedicam a este trabalho maléfico vivem eles próprios acorrentados a esses sistemas, desprezam os ensinamentos dos seus Mentores que abnegadamente os tentam doutrinar, retardando o seu progresso espiritual. Estando entre nós, por toda a parte, com o fito de criar desentendimento, ingovernabilidade, guerra, destruição, quer da natureza, quer do próprio ser humano, vivem a felicidade do bruto.

Os Mentores dos grupos de trabalho de evangelização são unânimes em lembrar, face às afinidades com esses Espíritos, que nós somos uma extensão do umbral na própria terra. A densidade pesa de tal maneira que nem nós que aqui habitamos temos, para nossa mesma protecção, a noção do que se passa ao nosso próprio planeta, do sub-mundo, do negativismo extremamente perigoso que nele existe, apelando por isso ao desenvolvimento da fé, ao cultivo das virtudes, à vigilância do pensamento e à oração constante. Os Mentores esclarecem-nos que vivemos circunscritos a um ambiente, compatível com a nossa resistência psicológica, sem nos darmos conta disso. Isto significa que, por essa e por outras razões, gravitamos em áreas muito específicas. Por muito que uma pessoa viaje, ou simplesmente que se desloque para trabalhar em outro país, é sempre em torno de um ambiente idêntico.

Esse sub-mundo na terra, que é crescente, pode habitar ao nosso lado e nem damos por isso. Quantas vezes, nos telejornais, temos a notícia de que um dos vizinhos é um traficante de armas, um casal do prédio ao lado é serial killer, ou o amigo com quem tomava café após o jantar é pedófilo?! E eram todos tão boas pessoas. Acrescente-se que, superando as questões de vizinhança, e as do progresso tecnológico em que estamos envolvidos, há a escravatura, em pleno século XXI, é bom lembrar. Efectivamente, o primitivismo é o que melhor caracteriza a humanidade. A inveja, a cobiça e a mentira proliferam um pouco por toda a parte, a par dos falsos testemunhos, das injustiças, da criação de pobreza, etc.

Esta triste realidade, dando ares de que se está num beco sem saída, o que ainda é pior, desenvolve gradativamente a crença nos demónios e nos seres super-poderosos. Assim, a fé cada vez mais fragilizada vai descendo na densidade entregando-se aos seres do umbral, os quais vão tomando o lugar que deveria ser da fé em Deus Todo-Poderoso. Dito de outro modo, pensa-se mais nos demónios do que em Deus. A crendice sedimenta-se, os bruxos e os respectivos talismãs continuam a ser um negócio rentável.

Vejamos sucintamente quais as áreas da vida terrena mais propícias à influência do umbral. Para já, vamos partir da premissa de que tudo o que aprisione o ser humano de forma a desenvolver-lhe a superstição, impedindo-o de pensar livremente, que imponha o medo e a desconfiança é de anular com uma fé firme e determinada porque poder, só Deus

Vejamos o que ainda está longe de ser banido, infelizmente muitas vezes alimentado pelas próprias religiões como meio de angariar fundos. A verdadeira fé não dá dinheiro, mas liberdade de crer.

 

1.     Crença em objectos com poderes, ou talismãs;

2.     Crença em palavras mágicas e fórmulas mágicas.

3.     Crença em lugares assombrados ou privilegiados para a manifestação dos Espíritos;

4.     Crença em dias e horas preferidos pelos Espíritos;

5.     Crença de que os familiares mortos são santos que vivem no eterno descanso;

6.     Crença de que há demónios no sentido de seres eternamente vinculados ao mal;

7.     Crença em anjos decaídos

 

 

 

Passemos a palavra à Codificação:

 

 

1-    17.ª Certos objectos, como medalhas e talismãs, têm a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos conforme pretendem alguns?

“ (…) a matéria nenhuma ação exerce sobre os Espíritos. (…) nunca um bom Espírito aconselhará semelhantes absurdidades. A virtude dos talismãs, de qualquer natureza que sejam, jamais existiu, senão, na imaginação das pessoas crédulas.”. (2)

 

2- “Qual pode ser o efeito de fórmulas e práticas com as quais certas pessoas pretendem dispor da vontade dos espíritos?

- O de as tornar ridículas, se são de boa-fé; (…) todas as fórmulas são charlatanice; não há nenhuma palavra sacramental, nenhum signo cabalístico, nenhum talismã que tenha qualquer acção sobre os Espíritos, porque eles são atraídos pelo pensamento e não pelas coisas materiais.” (3)

 

3- 18.ª Que se deve pensar dos Espíritos que marcam encontros em lugares lúgubres e a horas indevidas?

“ Esses Espíritos se divertem à custa dos que lhes dão ouvidos.” (2)

 

4-    19.ª Haverá dias e horas mais propícias para as evocações?

“ (…) isso é completamente indiferente, como tudo o que é material, e fora superstição acreditar-se na influência dos dias e das horas.” (2)

 

5- “ Em que se transforma a alma no instante da morte?

- Volta a ser Espírito, ou seja, retorna ao mundo dos Espíritos que ela havia deixado temporariamente.” (4)

6- Há Espíritos que ficarão perpetuamente nas classes inferiores?

- Não; todos se tornarão perfeitos.” (5)

 

7- “Os Espíritos podem degenerar?

- Não. (…) Quando o Espírito conclui uma prova, adquiriu conhecimento e não mais o perde.” (6)

            Estes aspectos que acabo de referenciar são os mais básicos, os que nos prendem, por desconhecimento de nós mesmos e das forças da Natureza, a vivências rudimentares espelhando uma fé baseada no medo. Acreditar que há demónios e temê-los, é uma coisa, outra bem diferente é evocar as forças maléficas para prejudicar o próximo.

            Muito embora vivamos num planeta de provas e de expiações, não mais que uma apresentação de umbral, cabe-nos desenvolver a vontade e a força para ultrapassar a nossa condição. Um bom caminho será, por exemplo, perguntarmo-nos: O que é que eu desejo na minha vida? O que é para mim mais importante?

            João Rucha Pereira diz, numa das suas entrevistas, que precisamos de uma educação para a paz, introduzida no ensino. Efectivamente, na minha vida eu posso desejar uma melhor educação que, no tempo em que vivemos, começa por novas disciplinas, a paz seria uma delas; aprender a pedir a Deus a saúde, que é o mais importante, mas também a partilha; apreciar a magnânima noção de suficiência, pois que a ganância ofusca o pensamento, desvalora o importante e fragiliza, consequentemente, a saúde; desenvolver a fé, mas perceber que a minha não é a única.

            Perceber que a vida é a coisa mais importante que há e, muito embora a Doutrina afirme que não há mistérios, Kardec e as Entidades que me perdoem, mas a vida é um grande mistério. Porém, certamente estamos a falar de conceitos de mistério completamente diferentes. Os rios e os oceanos, as florestas, a fauna com toda a sua diversidade, das aldeias às cidades tudo tem a mão de Deus.

            Não podemos continuar a ser cristãos à procura de Cristo, vivendo arreigados a um passado que se pretende aterrador, um presente inseguro e um futuro incerto. Temos que saber conciliar a nossa procura interna com a externa, o individual e o colectivo, o inato e o adquirido.

            O umbral que habita no nosso coração está a criar, alimentar e desenvolver a desconfiança. Já não se acredita em ninguém e a crença cega e irreflectida está a dar ares de verdade absoluta. O discurso alucinado, os rituais perigosos, os sacrifícios humanos, o ignóbil e o colossal, as teorias perigosas há muito que deixaram de constituir-se em grupos à parte. Pelo contrário. Estão espalhadas dentro dos grupos já existentes. São cada vez mais os crentes que não têm um discurso coerente. Tornou-se relativamente vulgar ver ovnis em forma de camioneta, que deixava ver os passageiros através dos vidros, há quem não distinga o sonho da realidade, há quem despreze a razão e há quem a sobrevalorize, e são cada vez mais os que têm a verdade na algibeira, mergulhados no lodo da intolerância, cada vez mais agressivos, perigosos porque fanáticos. É a loucura no seu melhor.

            Os dirigentes religiosos sem escrúpulos têm aí matéria-prima. A infelicidade é o maior meio de recruta de fiéis à beira de um ataque de nervos. Discernir, hoje, que nem todos os que falam de paz, fé, tolerância, amor, verdade, liberdade, e até de Deus têm alguma coisa a ver com isso, e que tais conceitos são isco para atrair as pessoas, abusando da boa-fé das mesmas, é uma verdadeira aventura. Percebê-lo implica uma transformação, metanoia, a que Jesus nos convida,” todos, todos, todos”, como diz o papa Francisco, diariamente. “Metanoia é a renovação interior, inconformismo com o ambiente exterior e com a sua mentalidade. Pressupõe a arte do discernimento espiritual.” (7)

A humanidade está no arame sem rede, muito longe da certeza de que quem acredita em Deus não precisa de acreditar em mais nada. Um espírita não acredita nos Espíritos, mas tenta compreendê-los na incrível continuidade da vida.

 

(cont.)

 

Margarida Azevedo

 

 

 

 

 

(1)   KARDEC, A., O Céu e o Inferno ou A Justiça Divina Segundo o Espiritismo, LAKE, São Paulo, 1997, Primeira Parte - Doutrina, cap. X, Intervenção dos Demónios nas Diversas Manifestações, p.115.

*In: dicionário.priberam.org

**Copilot

(2)   KARDEC, A., O Livro dos Médiuns, FEB, RJ, 1977, Segunda Parte – Das Manifestações Espíritas, cap. XXV, Das Evocações, 282, Questões sobre as evocações, p. 353. Vide o.c., 1997, cap. X, Intervenção dos Demónios nas Modernas Manifestações, p. 111.

(3)   ___________,O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984 Livro Segundo, Mundo Espírita ou dos Espíritos, cap. IX, Intervenção dos Espíritos no Mundo Corpóreo, perg. n.º 553, p.242.

(4)   __________, idem, cap. III, Retorno da vida Corpórea à Vida Espiritual, perg. n.º 149, p.116,

(5)   __________, idem, cap. I, Dos Espíritos, perg. n.º 116. p. 103.

(6)   __________, idem, ibidem, perg. n.º 118.

(7)   HALÍK, T., A Tarde do Cristianismo, O Tempo e a Transformação, Paulinas, Prior Velho, 2022, cap. X, Um Terceiro Iluminismo?, p.175.