domingo, abril 21, 2024

AS MANIFESTAÇÕES CONTRA O RACISMO SÃO MANIFESTAÇÕES RACISTAS

 


O carácter baseia-se em ações virtuosas que são fundamentadas na verdade. A verdade é, portanto, a fonte e a base fundamental para todas as coisas que são boas e grandiosas. Assim, a busca resoluta e sem medo do ideal da verdade e da conduta correta é a chave da verdadeira saúde, assim como de tudo o resto.

Gandhi*

 

            Com 50 anos de doutrinação política deformadora, onde abundam os clichés e perigosamente dualista, isto é, dualidades do tipo bom/mau, branco/preto, azul/verde, a sociedade foi sedimentando atitudes e modos de estar que, chegados ao século XXI, estão a dar os seus frutos amargos e nocivos.

            Doutrinados para não pensar, tentam apagar as benfeitorias construídas em séculos de história, na formatação mental que foi sendo construída ao longo de décadas. Sedimentando-se o discurso do ódio, confundido com um discurso emancipador portador de uma reacção cheia de sentido face a um explorador sanguinário que tem que ser abatido, impôs-se uma segregação jamais existente na sociedade portuguesa. Hoje diz-se o que nunca se pensou dizer, em uma estranheza de cada um perante si próprio.

            Confundindo Racismo e Escravatura, pretende-se apagar uma era, sob pretexto de com o apagão se acabar com o mal, dando uma imagem do presente como algo que surge de geração espontânea, sem passado, isto é, sem uma linha condutora como é próprio da História. Com isso se pretende dar ao presente um aspecto limpo e atractivo, fazer dele um período de inauguração de novos tempos cheios de virtude, camuflando o próspero negócio do tráfico humano, de todas as raças, acrescente-se.

Antropólogos alemães chegaram à conclusão de que nunca houve tanta escravatura como hoje. Podemos não ter o ferro com o número, podemos não ter perdido uma batalha ou uma guerra e ficarmos à mercê de um senhor, mas temos a segregação, a riqueza cada vez mais centrada em um punhado de espertos, terrenos férteis incultos, fogos postos nas florestas com a culpa sobre bodes expiatórios, fome e miséria a aumentar a olhos vistos, em nome de uma vontade esquizofrénica de criar um exército de gente disponível para tudo o que se quiser fazer. Assim se constroem-se barreiras contra o progresso civilizacional, cria-se o fosso entre pobres e ricos, implementa-se a alienação mediante um conceito de felicidade baseado no consumismo poluidor. É a virtude e a felicidade do desnecessário. Compram-se produtos baratos e fazem-se fortunas a troco de trabalhadores com salários de miséria, a viver em condições miseráveis, faz-se figura de rico só porque se tem nas mãos um produto electrónico, produzido nas cadeias obtusas de produção sem direitos humanos (em todas as raças). Mas isto não é tema para as manifestações.

Porque culpabilizadoras de uma só raça, Branca, confusas e manipuladas, as manifestações contra o racismo alimentam a discriminação e a segregação ao invés de a combaterem. Mercê do clique que nos expõe ao mundo através da internet, os problemas específicos de uma sociedade depressa se tornam endémicos. As nossas sociedades tornaram-se caricaturas, generalizando problemas e modus operandi. Deita-se abaixo uma estátua de um traficante de escravos, em Inglaterra. Muito bem. E o resto, também veio abaixo? Há uma atitude igualmente repulsiva contra os comerciantes de gente que, em qualquer parte do mundo, vendem os da sua tribo/casta/desempregados/mulheres/crianças aos traficantes (de todas as raças)? Mas isto não vai às manifestações. É que, no próspero e escandaloso negócio de pessoas, não há raça nem nacionalidade. Há os poderosos e há os outros, em qualquer parte do mundo, em qualquer época, prova de que a evolução civilizacional não se pode confundir com revolução tecnológica. Lutar contra o racismo é lutar contra todos os comportamentos desviantes por motivos raciais, venham eles de onde vierem.

Sabe-se que é próprio da multidão os ânimos à flor da pele, a emotividade, o grito reivindicativo, quantas vezes irreflectido. Porém, porque manipuladas por interesses escusos, pouco ou nada definidos, as manifestações são multidões de gente que diz o que não pensa, que muitas vezes até vai contra os ideais e interesses dos manifestantes. Os ímpetos não são bons conselheiros e, como tal, não podemos permitir que, em nome de um ideal, se anulem outros de grande valor civilizacional tais como sociais, económicos, espirituais. As manifestações contra o racismo não podem ser um chorrilho de discursos de ódio contra raça nenhuma. Pelo contrário, devem ser momentos de convergência de ideais nobres, objectivando o progresso de uma sociedade que se quer pluralista e inclusiva.

            Vão longe os tempos em que as manifestações, que apesar da emotividade característica das mesmas, se moviam impulsionadas pelo desejo de mudar alguma coisa, de trazer à praça pública o descontentamento com injustiças sociais, laborais, perda de direitos, ou a luta pela conquista dos mesmos. Hoje, o descontentamento é arma de arremesso nas mãos dos manipuladores que, sem escrúpulos, o utilizam para desviar a atenção da verdadeira raiz dos problemas.

E uma das verdadeiras raízes é o facto de todos querem vir para a terra do antigo colonizador, porque na sua se tornou insuportável viver. Certamente porque na Europa ainda há um fundo de esperança de uma vida melhor, uma vida com alguma dignidade, é onde ainda é possível sonhar. Porém, vítimas do embuste, não são poucos os que caiem nas mãos do vigário. Quanto à sua terra, porque em guerra, porque com regimes insuportavelmente corruptos, ou por outras razões, se não é um lugar onde se possa viver com a dignidade que um ser humano merece, então o melhor é partir. Eu sei o que isso é. Também sou filha de emigrantes, aliás, estou numa família de emigrantes (tenho família em França há 60 anos, a maioria nem português falam. No entanto, jamais se disse algo contra o país/países que os receberam).

            Na manifestação grita-se que o racismo está a aumentar em Portugal. Será? Não seria melhor reflectir por que muitas pessoas se revoltam contra determinados comportamentos? Este é outro problema. A associalização é o móbil da discriminação, criando uma sociedade de hostis. Aquilo a que estamos a assistir é ao crescimento da aceitação forçada de comportamentos, quando praticados por uma raça ou etnia, mas que são penalizados quando praticados por outra.

            Com leis cada vez mais desculpabilizadoras do erro, em nome de uma falsa noção de tolerância, põe-se em risco a identidade social, cria-se a tensão entre os cidadãos e culpa-se a democracia como sendo um regime falhado. Efectivamente, a continuar assim, chama-se democracia, porque é um vocábulo simpático, a um regime que não é carne nem peixe. Ora é essa “coisa” indefinida que interessa aos manipuladores.

Um dos problemas que a sociedade global levanta é precisamente o da identidade. O que é hoje a identidade racial? Não se sabe. Quando uma pessoa sai do seu país de origem e vai viver noutro, deve ir receptiva ao que irá encontrar. Dito de outro modo, não são apenas os outros que devem aceitar quem chega, é também quem chega que deve tornar-se aceitável para os outros. Até porque, parece, é impossível manter os mesmos comportamentos e costumes em locais e momentos completamente diferentes (o aqui e agora são determinantes para as atitudes que tomamos). Há sempre mudanças estruturais que implicam qualquer coisa do género: sair de um lugar para outro é deixar para trás alguma coisa e abrir-se a novas realidades. Tem sempre que haver uma adaptação, uma mudança. Não há sociedades sem contágios culturais. Todos somos emissores e receptores, todos damos e recebemos alguma coisa.

Porém, cada vez mais as pessoas se vão calando a situações absolutamente intoleráveis, comportamentos inaceitáveis. Está instalado o medo de falar, de dizer “não está bem”. Atrever-se a falar é sujeitar-se a ser chamado de racista, xenófobo e, quem sabe, candidatar-se a um processo judicial, e até perder o emprego e ser lançado na marginalidade – ter ou não razão, nem sequer é questão que se levante -. Por outro lado, são conferidas regalias, direitos e deveres com os quais na sua terra nem sonhavam, a indivíduos que, não poucos, odeiam quem lhos oferece e quem os paga com os seus impostos. Assim se alimentam comportamentos arrogantes, olhares de ódio movidos por complexos de inferioridade racial, e não só, se criam tensões que dificilmente se apagam, tendo como pano de fundo os silêncios da revolta, ou a revolta silenciada. O resultado é o virar das costas, o olhar distorcido, o implementar da indiferença.

As manifestações contra o racismo, que se confundem com reacções contra a raça Branca, desculpabilizam as restantes, vitimizando-as, fazendo dos Brancos os maus da sociedade, da vida e do mundo. Dividindo os cidadãos entre santos e diabos, este tudo e nada culmina numa instrumentalização das mentes, em uma ausência de valores de tal forma que quem é odiento e complexado com a sua cor de pele sai de lá ainda pior.

            O racismo é transversal à humanidade e só pela educação se pode combater. Ele existe em indivíduos de todas as raças, isto é, não há raças sem racistas, infelizmente. Ora, a educação é o aprendizado de regras, entre elas a do respeito mútuo, da tolerância e da igualdade perante a Lei. O que na prática, mercê da desculpabilização agoniante e do silêncio forçado, não está acontecer.

            Lamentavelmente, aquilo que verdadeiramente se deveria combater, a ideologia Racismo, permanece intocável, e isso é que é preocupante. Ninguém parece estar interessado em educar, formar, fazer convergir num mesmo ideal, a saber, o de uma sociedade com lugar para todos, onde todos os cidadãos têm os mesmos direitos e deveres. Pelo contrário, inventam-se culpados e vítimas, constroem-se sensibilidades à flor da pele, implementa-se a desconfiança e o atrito de tal forma que as pessoas se olham com indiferença e revolta. O medo está instalado. Ninguém se conhece nem se quer conhecer. Vive-se compartimentado e segregado. A própria sombra assusta.

            As manifestações, porque são um mar de gente, podiam ser momentos de grande abordagem conjunta do motivo que as incentiva, motivo que se deseja emancipado e livre. Isso não seria impossível. Tudo iria depender do líder que as dirige. Só que isso iria implicar uma luta genuína por um ideal colectivo, sem manipulações, uma reconfiguração do que deve ser uma manifestação, bem como uma abordagem dos problemas isenta.

            Em matéria racial não há só vítimas e só culpados. É a nossa ignorância quanto ao diferente, e a ignorância cria a temeridade, que leva a atitudes repreensíveis. Face a isso, há todo um aprendizado que tem que ser feito, que tem vários caminhos, mas com toda a certeza o do medo não é um deles. Uma sociedade onde impera o medo, o silêncio, a discriminação, seja ela por que motivo for, jamais se pode chamar democrata.

            Ninguém se está a tornar racista. Nem são os cidadãos que criam o mal-estar. A culpa está em quem os manipula, em quem decide, em quem aplica a Lei. Se isso não mudar, não se perspectiva uma sociedade tolerante. E a tolerância é o pão da democracia.

 

            Margarida Azevedo

 

            P.S. É claro que não se revêem neste texto os daltónicos, os pacifistas, os reencarnacionistas, que acreditam que em uma vida somos de uma raça e noutra seremos de outra; nem aqueles que se consideram seres em evolução, cheios de defeitos, mas lutadores contra os seus maus pendores. Também não se revêem aqueles que se dizem muito ignorantes, que vivem em aprendizado permanente, que dizem que passamos pelo planeta em jeito de lição, rumo à Luz e à Fraternidade. Nem se revê aquele que vive em paz consigo próprio, com o outro e com Deus.

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*MAHATMA, G., O Caminho da Paz, 4 Estações Editora, lda., Parede, 2020, 2. A verdade é a fonte do carácter, p.54.

           

           

 

domingo, março 31, 2024

PÁSCOA 2024

 


 

       A passagem do cativeiro para a liberdade e da morte para a vida eterna tem hoje um sentido muito particular.

Somos diariamente acometidos de uma visão que não é nossa, dirigidos para fins que não desejamos, elevados a uma fraqueza crescente e aterradora com ares de força e de triunfo. Neste quadro, faz todo o sentido perguntar “para aonde nos dirigimos, para aonde nos estão a dirigir, ou quem ou o quê nos dirige?”.

Vivemos em um deserto onde, sem que haja um rosto definido, somos tentados com o poder sobre o mundo, se nos prostrarmos aos pés de um senhor cheio de atractivos e de promessas vãs que parecem fantasticamente verdadeiras. Ele diz-nos que tudo será nosso, ao que a avidez se rende na sua irracionalidade. E assim, sem que se dê conta, a liberdade mais uma vez fica adiada, a fé perdida, Deus lá muito longe. A ilusão do poder impõe-se, até se quebrar com a doença que surge quando menos se espera, a guerra no míssil aniquilador, ou a catástrofe que arrasou tudo. Depois, vem a mudança de paradigma. É a Páscoa que acontece e o deserto fica para trás, irremediavelmente.

Acorda-se para a realidade: tantos a amar o mundo, a lutar para que nada falte, ou muito pouco; há os que passam horas à cabeceira de um desconhecido que geme de dor; os que são amigos porque simplesmente amam um abraço fraterno, um olhar doce, uma palavra que se supera a ela própria. Ainda há os que expõem a própria vida movidos por uma fé que irrompe, provocadora e triunfal, nos campos da mentira e da manipulação no tal deserto das tentações. De facto, não se tinha pensado nisso, até precisar, é claro.

Mas existe. Existe o discurso que não é de ódio, e que não se consegue abafar, o desejo de paz e liberdade onde Deus está presente. É a voz daqueles que já festejam a Páscoa, os que estão em liberdade e vida eterna. E quem são eles? Nada de complicado. São os que vivem fraternalmente em um mundo faminto de Deus, são aqueles que têm em cada ser humano um irmão, os que pregam sem que ninguém os ouça em salas vazias ou cheias de gente que desejaria ouvir outra coisa. São os que pregam com a certeza de que Deus e Jesus, o Cristo, estão presentes.

São esses que, ao serviço de Deus e do Ressuscitado, tornam urgente repensar a Páscoa como a Grande Passagem, a saber, da fome para a saciedade, da guerra para a paz, da catástrofe para a reconstrução. A Páscoa como uma verdadeira primavera espiritual, uma mudança radical de paradigma.

Com tanto sofrimento, em um mundo que mata das mais diversas maneiras, que justifica os comportamentos mais ignóbeis, que chega ao ponto de afirmar e fazer crer que tem que ser mesmo assim, o que fazer? Como pensar Deus nesta cruel realidade? Mas também podemos inverter a questão: o que não fazer? Como não pensar Deus? Numa palavra, o que é que nos é possível?

Se Deus está em toda a parte, então também está dentro de nós. Então é chegada a altura de Deus passar por nós, residir, ficar lá. De certeza que, nessa altura, sem bezerros de oiro nem flagelações, os Mandamentos impor-se-ão na sua grandeza porque todos, absolutamente todos nas suas diferenças, viverão como filhos de um só Deus.

Precisamos de acreditar na humanidade. Não é acreditar nos bons porque são bons. Aí não é preciso. É acreditar que, como uma flor frágil, se se cultivar o bem de certeza que, pela lei dos afins, o mal não tem força.

Dito de outro modo: a vida é uma passagem, não mais do que de umas escassas dezenas de anos, para os que chegam lá. É do que dispomos para mostrar o que queremos, que mundo e que vida desejamos, que Deus há dentro de nós, o que ocultamos e o que se desoculta na nossa natureza. Há, no entanto, uma única certeza, transversal a todos nós, a de que há uma passagem inevitável que nos espera. Todos sabemos também que tudo o que é do foro material cá fica, pois o que levamos é o bem que fizemos ou o que deixámos de fazer, e não fazer o bem já é um mal. Compete-nos a nós, juntamente com o outro, sempre com o outro, fazer a mala.

Somos todos companheiros de viagem, e que viagem. Que esta Páscoa seja a passagem à consciência da inevitabilidade do encontro com o próximo, ou o reencontro num convívio que, de alguma forma, terá sido interrompido nos caminhos complexos da nossa existência. Sintamos a felicidade que é viajarmos todos juntos.

 

Margarida Azevedo