O INFORTÚNIO E O DESEJO DE MORRER
É extremamente curioso como nos momentos mais difíceis da nossa vida apelamos à morte como se esta fosse portadora de forças apaziguadoras. É como se, porque possuidores de ideais e transportadores de colossais cargas afectivas, a morte fosse em consequência lógica uma dessas personagens indefinidas mas libertadoras.
No entanto, será que é mesmo à morte a que apelamos em último recurso, ou a outra coisa de tal modo perfeita, redutora, imperativa, que à falta de melhor vocábulo transmitimos por morte? Porquê?
Temos dificuldade em atribuir-lhe um fim, terminus de um autocarro moroso mas que nos conduziu ao destino que esperávamos. A morte não é o fim da linha. Chegados ao destino, continuamos a andar pelo nosso próprio pé. A morte parece ser esse caminhar em outro lugar, entregues às nossas capacidades de locomoção mental e afectiva.
O nosso pensamento mágico esforça-se por atribuir-lhe os mais belos predicados. Viajar na morte é encontrar o bem absoluto, a paz ideal, o amor eterno. A morte é saber incondicional, razão extremada, luz infinita, beleza sem par; encontro com os anjos, perdão de todas as ofensas, remedeio de todos os males, visão da Divindade. E ainda, não poderia faltar, prazer, prazer, prazer; trambolhão nos braços do amor, concretização do desejo, encontro definitivo com o par ideal, o filho ideal, o fruto de um grande amor, uma entrega incontrolada, casa afectiva dos devaneios mais eróticos, sensualidade sem limites. A morte é a grande paixão do ser humano.
Para o infortunado, isto é, para todos nós, embora haja um fundo de verdade de veras consistente, é este o mundo que ele espera encontrar ao ansiar penetrá-lo o mais rapidamente possível. Ele não é um suicida, é um ideólogo sonhador que tem na vida terrena a causa do seu infortúnio. Sentindo-se no mundo das trevas, do desprazer, enfim, da des-graça, ele pretende acabar com o suplício que é viver na dor, e por isso clama pelo prazer que a vida não contém.
Mas esse desejo profundo de morte refere-se ainda a um qualquer processo inconsciente, catarxico, no qual a morte é mergulho em águas límpidas, lavagem em profundidade levando consigo toda a sujidade a que a vida nos expõe, exosmose que expele o que não convém, não interessa, não se precisa, o nocivo. Expressão de um amor descontrolado, ela é uma mostra do quanto não daríamos para não amar quem amamos, não desejar quem desejamos, não querer o que queremos, não viver o que vivemos.
Há momentos de reflexão em que paramos, não propriamente para pensar, mas para nos centrarmos no nosso erro de amar, na nossa dedicação ao que não vale a pena, nas nossas perdas de tempo com o que não é para nós. Momentos em que ficamos aflitos, perdidos em questões existenciais, remetendo-nos a nós mesmos para a morte como um fim, não da existência, mas de um modo de existir que está desfasado.
No entanto, o infortunado que deseja ardentemente a morte, não é espírita. Se o fosse, veria que ela é o prolongamento de um estado de alma, de uma forma de estar que não lhe é possível esgotar. Ele compreenderia que nada se impõe à nossa vontade, ao nosso muito querer e que tudo acontece segundo os moldes que traçamos, os modelos com que nos identificamos, os objectivos que nos propomos.
A morte mágica é a morte do nosso aparelho simbólico, representativo das nossas capacidades de camuflagem, um postiço à nossa finitude. Ora, para o Espiritismo, a morte é a revelação, talvez aquilo a que se possa chamar com propriedade desocultação, mas não de uma vida magicamente beatífica. Essa revelação é por vezes um encontro brutal com a nossa mesma miséria afectiva. Amamos tão pouco e tão mal, choramos tão desnecessariamente uma dor por demais vivida, pesando nos séculos da nossa existência.
Morrer é encontro com a nossa escuridão, com uma infinidade de resultados como é a nossa descrença, o devaneio da entrega ao perecível, a redundância dos nossos erros e a persistente queda nos mesmos fracassos.
A morte não é passaporte para a luz, mas a continuação de um caminhar lento e penoso para um mundo onde só entram os burilados. No entanto, compreenda-se que o infortunado não atingiu a noção de que nós somos habitantes de um autêntico paraíso, quando comparados com outros de mundos muito inferiores ao nosso.
Por isso, o Espiritismo ensina que não devemos desejar a morte, mas também não devemos temê-la. A estabilidade espiritual, que mais não é que o nosso ponto de encontro com a mínima sanidade mental aceitável para o planeta em que vivemos, consiste na fé, na confiança de que a justiça é proporcional à conduta, às linhas que traçamos no viver quotidiano.
Uns irão para ambientes mais escuros, outros não tanto. Não há regras definidas, não há preceitos pré feitos, não há uma estrutura igualitária, o que seria uma espécie de saco sem fundo para onde iriam todos os mortos. Não, não há. Há individualidades, casas espirituais racionais e afectivas para onde vão indivíduos, não compostos ou massas compactas de gente.
Espíritas e não espíritas, seguidores das mais diversas religiões, movimentos místicos, ateus, todos, absolutamente todos, podem encontrar-se um dia na casa das trevas, no mundo escuro dos malfeitores, se para tanto não tiverem conduzido suas vidas nos preceitos da justiça e do amor universais.
A morte não é uma ideologia construída pelos homens, ela é apenas uma mera passagem, subtil, mais ou menos dolorosa, mais ou menos prolongada, mas sempre uma barreira que tem que ser ultrapassada por todos sem excepção. E se há verdades para as quais ela é caminho objectivo, uma dessas verdades somos nós mesmos, sem máscara, sem símbolos, sem camuflado. A morte é uma nudez que nos assusta porque aquilo que mais tememos é sabermos quem somos de verdade, do que somos capazes, do que já fizemos, do que viremos a fazer porque ainda incapazes de construir mundos de luz.
A morte não é um mito, não é fenoménica. É facto real, uma necessidade absoluta do Espírito que anseia libertar-se precisamente dos mitos, dos fenómenos e da obediência às falsas concepções de espiritualidade.
Todavia, quantas não são as vezes em que o nosso Espírito, porque encerrado num corpo grosseiro, clama bem alto "Morte! Morte! Onde estás?" São os momentos bucólicos movidos por estranha sensação de peso, densidade, arrastamento de algo que não sabemos explicar e que definimos por dias de tristeza, de monotonia. São os momentos em que oramos quais pastores atormentados com o rebanho que se extravia frente aos seus próprios olhos. São também os dias de céu pedrento em que o firmamento parece ameaçar cair-nos em cima.
Mas esta não é a morte clamada pela tristeza ou pelo sofrimento, antes pela sede de liberdade, fuga das amarras que prendem o Espírito à vida terrena. Esta é a morte que a saudade deseja no intuito de rever os entes queridos que deixou no mundo invisível, as relações que interrompeu num até breve de alguns anos, que é o que nós passamos aqui.
Esta não é uma morte-fim, é uma morte-recomeço, morte-vida. É a outra face da moeda que nada tem a ver com o cunho de César, mas um rosto no Espírito, uma presença que se torna progressivamente mais exigente da nossa capacidade de luta, uma vitória que se chama Deus.