A FALSA FILANTROPIA
De um ponto de vista social e político, a solidariedade nunca deu tanto dinheiro e prestígio, nunca colocou na berlinda políticos, respectivos familiares e amigos como nos dias que correm.
Por toda a parte aparecem pessoas a pedir para tudo e mais alguma coisa, cheias de sorrisos e boa vontade, a solicitar a moedinha milagrosa “que para si não fica a fazer falta, mas para os necessitados fará toda a diferença”.
Formas de solicitar colaboração manipuladoras de consciências colocam entre a espada e a parede o potencial “caridoso” à força, criando a instabilidade emocional tipo “amanhã poderá ser você a precisar”. E com essa conversa lá vai caindo a esmola, não por amor, mas por medo, não em manifestação de uma religiosidade livre e emancipada mas em gesto pobre de superstição.
Desconhecendo que esse gesto não é uma espécie de vacina social, pois não é um garante de que alguém fique impune da miséria, escapar-lhe ou não as razões são outras, as pessoas continuam a dar pensando exclusivamente em si próprias e não no outro. Mais, o outro, o pobre e desconhecido, ainda carrega com a culpa do medo de que “se não dou, algum mal pode cair-me em cima”. Por outras palavras, o pobre ainda é o responsável pelos desajustes da vida, os quais nos apanham quase sempre de surpresa. Ele torna-se desta forma um meio para a felicidade, quando cai a moeda no saco, para a infelicidade quando a moeda não cai.
Neste mundo de superstições criadoras de dependência de toda a ordem e desajustes psíquicos, dar não é um acto de solidariedade, social ou religiosa, mas uma mostra objectiva de inferioridade espiritual. Aquilo que deveria elevar passa a acto minimizador de quem dá como de quem recebe, se é que recebe, pois ninguém tem provas de que a totalidade do fruto da colheita vai integralmente para quem de facto precisa.
Educar para ser autónomo, desenvolver o espírito crítico e a criatividade, pôr à disposição meios que permitam desenvolver a agricultura tornando os povos autónomos do ponto de vista alimentar, ou o mais próximo disso, apetrechá-los técnica e tecnologicamente, é caridade que ninguém faz. E mesmo que façam algo rudimentarmente parecido, o objectivo é mantê-los sob a sua alçada, não vá dar-se o caso de “ensinei-os a ladrar e agora já mordem”.
Os países mais ricos gabam-se de o ser pelo facto de produzirem inteligência, mais do que os países subdesenvolvidos e em vias de desenvolvimento, isto é, capacidade e meios de transformação de matérias-primas. Não é rico quem produz cortiça ou diamantes, mas quem os transforma, pagando a respectiva mão-de-obra ao preço da chuva.
Este sistema, gerador de dependência, mercados paralelos e pobreza, tráfico de pessoas e paraísos fiscais, é o mesmo que desenvolve uma rede complexa de instituições de caridade multinacionais que actuam por toda a parte, e principalmente nesses países, a fim de “colmatar” as necessidades mais elementares dos pobrezinhos, levando-lhes alimentos tais como arroz, sementes (muitas nem chegam a ser plantadas, mas sim cozinhadas), roupas, muitas delas vendidas no mercado negro, entre outros produtos. Algumas constroem um hospital ou uma escola, tudo dependendo das benesses que daí advierem, nomeadamente redução da carga fiscal, benefícios políticos para a instituição doadora ou para ficar bem visto na fotografia. Esquivam-se a obrigar os respectivos chefes de estado dos países mais pobres a fazer o seu trabalho, não mais que conferir aos seus povos a dignidade que legitimamente merecem através da criação de boas condições de vida, sob pena de falharem acordos políticos.
Se transferirmos esta situação exclusivamente para as religiões e seus digníssimos representantes, a situação é duplamente vergonhosa. Armados com as palavras-chave do género amor, solidariedade, igualdade perante o Criador, ou expressões tipo “vamos levar um sorriso aos nossos irmãos; dar confiança e fé; restituir a alegria de viver…” fazem desses homens e mulheres uma espécie de depósitos onde descarregam as consciências, os que a têm, a troco de manipulação ideológica e laboral, mão-de-obra submissa e barata, ou simplesmente levando-os a acreditar nos falsos sorrisos de orelha a orelha, ou num deus construído à imagem e semelhança de quem empenha a vida de outrem: gostos, tendências, apetências, vocações, afectividade, sonhos, etc, etc...
No entanto, se transportarmos esta falsa caridade para o Espiritismo, a situação é, e para usar uma expressão muito querida em certos meios espíritas, umbrálica, na nossa linguagem, tenebrosa.
Movidos pelo chavão mal interpretado “Fora da caridade não há salvação”, os falsos espíritas esquecem-se de que é o amor a maior fonte de caridade, a única, e que o dar não é construir casas de caridade que nem cogumelos, instituições luxuosas, com o objectivo de à viva força ganhar um lugar nas mais altas falanges da espiritualidade.
É muito fácil criticar as outras religiões e igrejas por desenvolverem a prática das promessas, construírem santos, darem dinheiro aos templos, serem ricas; é fácil criticar tudo o que acima foi dito, tal como é fácil dizer, como vem no Evangelho Segundo o Espiritismo, que mortificam o corpo em vez de mortificarem a alma, (“Provas voluntárias. O verdadeiro cilício” *). Em face do exposto, afirmamos que ainda não vimos simpósios sobre a humildade, o espírito de entreajuda, como praticar as máximas do Evangelho tal como a referida obra aconselha.
É assim que se desmascaram os falsos espíritas, os que fazem autênticos prodígios, quando o maior prodígio é amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Como podem os espíritas ser caridosos se não se amam entre si? Esses não são espíritas, são os falsos que usam esta Doutrina para se auto promoverem, não mais que movidos por negatividades de que eles são os protagonistas, com as consequentes alterações de personalidade e os seus mesmos fantasmas, aprisionando as Entidades mais fracas e submetendo-as aos seus caprichos.
Por isso afirmamos, com base em observação no terreno, que não há apenas falsos espíritas na Doutrina. Como consequência lógica, há igualmente falsos centros espíritas, casas que se dizem cristãs e kardecistas mas que em verdade não o são, pactuantes com a falsa filantropia.
Margarida Azevedo
* KARDEC, A., O Evangelho Segundo o Espiritismo, Livros de Vida, Editores, Lda., Mem-Martins, 2002, cap. V, p.91.
_______________________________________________________, FEB, 1979, p.127.
______________________________________________________, CEPC, 1987, p. 98.
“… fustigez votre orgueil; recevez les humiliations sans vous plaindre; meurtrissez votre amour-propre ; roidissez-vous contre la douleur de l´injure et de la calomnie plus poignante que la douleur corporelle. Voilà le vrai cilice dont les blessures vous seront comptées, parce qu´elles attesteront votre courage et votre soumission à la volonté de Dieu. »
___________, L´Evangile selon le Spiritisme, « Epreuves volontaires. Le vrai cilice », Les Editions Philman, Marly-le-Roi, 2001, pp.112-113.