domingo, novembro 20, 2011

DEUS, A MÃE E O FILHO


“E aconteceu, depois destas coisas, que tentou Deus a Abraão, e disse-lhe: Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.


E disse: Toma, agora, o teu filho, o teu único filho, Isaac, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali em holocausto, sobre uma das montanhas, que eu te direi.


Mas o anjo do Senhor lhe bradou desde os céus, e disse: Abraão, Abraão! E ele disse: Eis-me aqui.


Então disse: Não estendas a tua mão sobre o moço, e não lhe faças nada; porquanto, agora sei que temes a Deus, e não me negaste o teu filho, o teu único.” (Gn 22: 1-2; 11-12)



Aprende-se através destes versículos que não basta dizer que se acredita em Deus, é preciso prová-lo. Porém, algumas provas parece que transcendem em muito o razoável.

Será que é preciso numa dimensão sacrificial o sacrifício, e nomeadamente da própria vida, para provar a fé? Que representa a vida em relação à fé? Precisará a fé da minimização vida, de a tornar insignificante?

Este cap. Gn 22 remete-nos para a dimensão trágica do amor e da fé, um dos binómios mais complexos da nossa existência. Com linguagens diferentes, objectivos e vivências diferentes, neste capítulo, incompatíveis e em conflito, remetem-nos para: Quem amo mais, Deus ou o meu filho? É esta a grande questão da reflexão que se segue.

Mas o texto vai ainda mais longe. Em sua magistral sabedoria, não nos permite colocar as seguintes questões: O que faço com a fé, na ausência do meu filho, que matei sem ripostar? Que alegria numa fé baseada no infanticídio do único filho, objecto do amor total? Como é que a fé anula o horror da morte do filho, uma ausência sem retorno? Não podemos colocar tais questões porque o infanticídio não chegou a acontecer e, como tal, a reflexão é vazia de conteúdo. As respostas a estas questões nunca as iremos ter porque o texto deixa-nos em suspenso...

Aquilo para que nos remete, entre outras coisas, é para a tomada de consciência de que podemos ser interceptados por Deus, pedindo-nos coisas dificílimas e por meio das quais somos confrontandos com as mais cruas questões existenciais, entre elas as provas da nossa fé.

Por outro lado, todos sabemos que as situações-limite nos conduzem a realidades que desencadeiam em nós estados de alma, avivam ou recalcam sentimentos conduzindo-nos a certezas de tal forma ilusórias que nos fazem crer que determinadas coisas estão na iminência de acontecer. São episódios que nos põem à prova mediante testes muito complexos, em que precisamos de pôr em causa ou reflectir sobre o que temos acreditado desde sempre, impondo-nos nervos de aço para tomarmos decisões ao arrepio do que seria esperável.

Através do capítulo em questão, é-nos exigido que saibamos viver com o desconhecido e o inesperável, aceitar a realidade de que viver é não saber como tudo vai acabar. Abraão não sabia se Deus o deixaria levar o teste até ao fim, nós, séculos mais tarde, também não. Quem sabe se apenas ficou adiado?! É dramático pensá-lo.

Mediante as nossas estruturas afectivas e a nossa relação com Deus, bem como o modo como estamos na fé, será que Deus não estará disposto, hoje, a pôr-nos à prova mediante idênticos processos? Esta questão, não já face ao que não aconteceu porque Deus não quis, mas em nome de um futuro que depende só de nós, faz algum sentido.

Matar o filho para provar a fé é o absurdo dos absurdos. Mas é para a análise de abismos como este que a Bíblia Hebraica nos remete: a dimensão trágica da nossa existência, os absurdos, as aporias, o ilógico.

O capítulo (Gn 22) alude indiscriminadamente a Deus e ao anjo como se de uma personagem única se tratasse, revelando duas presenças numa só. Nos v. 1-2 quem fala é Deus, enquanto nos v. 11-12 é o anjo. Porquê? Não poderemos assumir isso como uma fuga de Deus? Onde estava Deus aquando do holocausto? Era suposto que Deus estivesse também em 11-12. Por que não está?

Não poderemos entender isso como uma resposta do género: nos momentos cruciais, quando o mecanismo já está irreversivelmente em acção, somos entregues a nós mesmos, abandonados às nossas próprias decisões? A decisão é sempre complexa e isolada, e segundo o capítulo em epígrafe, nem Deus interfere.

Vejamos a mesma história pelo lado feminino, e coloquemos as seguintes questões: Porque é que a mãe, Sara, está ausente deste diálogo? E se Deus tivesse dirigido o mesmo pedido à mulher? E já agora, por que não o fez?

Parece que toda a história teria outro desenlace. É que uma mãe é um animal muito estranho. Atacar um filho é candidatar-se a observar até onde pode ir a ferocidade, ainda que representada na mais franzina das mulheres. Não há animal que lhe ganhe. O leão mais bravo não passa de gatinho manso quando comparado com uma mãe assanhada. É uma experiência que não aconselho a fazer.

Por outro lado, questões como justo e injusto, dignidade e indignidade, verdade e mentira não passam de binómios sem sentido, facilmente ultrapassáveis quando se trata de defender um filho. Por ele, a mãe pobre deixa de comer para que a ele não falte; faz qualquer coisa para o vestir e calçar, para que seja alguém na vida, vai ao fim do mundo, ultrapassa impossíveis, até faz o pino em cima de pregos.

Se Deus tivesse feito o mesmo pedido à mulher, e o autor do texto sabia-o muito bem, o desfecho teria sido o fracasso de Deus porque a experiência gorava. A mulher não teria ido ao monte para entregar o filho em holocausto. Menos ainda ser ela própria a matá-lo. Nunca, jamais. Deus não teria podido provar a importância da fé, e o amor incondicional pelo filho sairia vitorioso. O animal-mãe encara o filho como sendo o seu próprio anjo, o seu pequeno deus, donde viver é trabalhar para ele.

Abraão está sempre presente não por se tratar de um patriarca, ou por se crer, erroneamente, que na Bíblia a mulher é considerada inferior ao homem, a Bíblia está cheia de mulheres importantes, do Primeiro ao Segundo Testamentos. O facto é que há certos pedidos que não se podem fazer a uma mulher. Este é um deles.

Exigir que a mulher entre em conflito com o seu filho, ainda que em nome da fé ou de Deus, é melhor não exigir, pois a mãe prefere o inferno com o filho do que o céu sem ele.

A grandeza da vida humana é precisamente a dinâmica destes conflitos, os quais nem sempre terminam bem. Há um que é esmagado pelo outro. Para a mulher, crer em Deus é um caso arrumado, desde que não vá mexer com o seu sagrado pessoal afectivo. Ao longo da história das religiões, o feminino tem desempenhado um papel preponderante, todavia há que não esquecer de que há outra camada que se sobrepõe, uma outra forma de relação com o divino. A mulher tem como que um pacto de não agressão com ele porque, no que toca ao seu filho, estamos perante o seu próprio sagrado, o que para ela é intocável.

No entanto, o amor incondicional pelo filho não poderá ser uma linguagem da fé? Um dos grandes enigmas do mundo é o amor de mãe. É incondicional, desmesurado, cego, universal, atemporal, … E a fé não deveria ser assim? Lembremos que Francisco de Assis afirmou que gostaria de ver os homens comportarem-se como filhos de uma só mãe.

Em termos de interpretação judaica, a nossa leitura seguiria outros caminhos. Não no que diz respeito à mãe, mas em relação ao Homem. A grande novidade do Judaísmo é que Deus é Deus sem precisar de apoucar o próprio homem, e o homem é o homem sem precisar de se rebaixar perante Deus. São ambos importantes e grandes, donde não é necessário que um anule o outro.

Nesta ordem de grandezas, Deus e Homem encontram-se na História, e por isso o Messias tão esperado tem que ser um líder político, libertador de toda a opressão porque directamente ao serviço de Deus.

Se Deus tivesse levado a prova até ao fim, estaríamos em presença da escravização da fé, a opressão de Deus sobre o homem. Ao deixar viver Isaac, Deus confere a Abraão a alegria da fé. E a História é a trama dos vivos, não dos mortos.

Margarida Azevedo

Agradecimentos

O meu muito obrigada ao grupo ecuménico de estudos bíblicos, que tanto me tem ensinado, e de que tenho a honra de fazer parte há já onze anos.

domingo, novembro 13, 2011

O ESPIRITISMO À BEIRA DO ABISMO ?!

Todos os grupos religiosos, independentemente das dimensões em termos de fiéis ou do maior ou menor impacto social, primam pela construção de interditos e preceitos, normas, teologias que visam traçar caminhos que conduzam ao divino.

É o que justifica a crença na existência de mundo paralelo ao mundo físico, atingível por meio de fórmulas complexas, dizeres, sacralização de espaços, lugares e objectos. Esses materiais tornaram-se meios de transmissão de poderes mediante um uso diferente do do comum: o céu não é um espaço físico onde cintilam estrelas e giram planetas, mas o lugar misterioso onde moram os deuses com poderes infinitos; a Natureza não é a vastidão imensa da fauna e flora, mas o espaço sagrado que reflecte a vontade dos deuses.

Com o avanço da Ciência, o horizonte do religioso sofre profundas alterações ao deslocar o sagrado para o próprio homem. Inicia-se então uma era geradora de uma espécie de super-homem, todo-poderoso, que, com o seu pensamento, se impõe à Natureza, enfrenta-a, disputando com os próprios deuses poderes e honrarias, a ponto de se confundirem entre si. É disso exemplo a epopeia lusíada, brilhantemente cantada por Camões, em que os deuses parecem humanos e os humanos parecem deuses. Mas deixemos a Literatura.

Sem ter consciência do que essa tomada de posição implica, há quem não perceba que o endeusamento do homem é o seu próprio fracasso. Caindo a absolutização do divino, com o seu mundo distante e independente do mundo dos humanos, caiem crenças tais como uma rocha colocada de um modo específico deixa de ser meio de adoração, e o templo já não congrega a totalidade dos crentes. Porquê? Porque a Ciência mexeu com a fé, e os materiais do sagrado fazem agora parte uma Natureza laicisada. Mais, tornou ridículas muitas das suas manifestações, os seus conceitos e seus investimentos afectivos, o que em nada abona a favor do homem. Isto significa que, não tendo deixado para trás a noção de bons e maus deuses, a mesma passou para o homem, classificando como mau aquele que não pertence ao mesmo sistema de valores, logo aquele que não está na mesma sintonia em termos de fé.

Se por um lado desmorona-se todo o edifício e sistema de crenças assente no desconhecimento das leis da Física, Química e Biologia, libertando progressivamente o factor religioso da superstição, o que é uma mais-valia, por outro há todo um vastíssimo desconhecimento e consequente desvaloração do pensamento antigo por parte do homem moderno; houve um deslocar da crença e da fé para a Ciência. Acredita-se mais na descoberta da cura do cancro que na força da fé ou na eficácia da oração, não se percebendo que uma não implica a anulação da outra.

É preciso compreender que o avanço científico, responsável por novas e cada vez mais complexas problemáticas, não anula as questões mais antigas referentes ao campo religioso, à fé, ao investimento de crenças em supostos métodos e meios de manifestação do divino. Ele apenas acompanha os novos tempos, toma outro cariz, porém as questões de ontem estão tão presentes hoje como antigamente. Não se trata de anular os deuses, mas a superstição, pois que deuses, Espíritos, forças da Natureza, Energia, etc., é tudo a mesma coisa com nomes diferentes, tal como o Espiritismo o afirma ( vide perg. n.º 668 de O Livro dos Espíritos).

Porque há sofrimento, porque há ricos e pobres, porque morrem uns de fome e outros vivem na opulência, porque há deficientes, porque é que o mundo é algo organizado? O que é a fé? Por que sou crente? O que é a não crença? Por que existo? Quem sou? De onde venho? Para onde vou? Estas questões existenciais, terríveis, acrescente-se, são as mesmas desde que o mundo é mundo, desde que o pensamento religioso existe, e não conseguimos pensar o mundo e nós mesmos sem ele.

Vivemos a prisão da nossa crença. Por mais mutável que nos pareça, por mais que por seu intermédio nos modifiquemos, ela estará sempre lá. É uma condicionante da nossa acção valorativa, uma forma de olhar, um modo de viver. O mundo gira em torno e em função daquilo em que acreditamos, seja no que for e como for. Vivemos na sombra das nossas vivências interiores e à qual atribuímos e remetemos o que de bom e de mau nos acontece. E esta matéria não é o objecto da Ciência.

Ainda que fique provado que o Espírito existe, que a Matemática consiga defini-lo por meio de fórmulas, que a Tecnologia delimite com toda a precisão as suas dimensões, que a Biologia o identifique como uma forma de vida apenas diferente, o homem de não fé continuará a chamar-lhe outra coisa. Não podemos confundir a prova com a certeza da fé. Provar que existe o ar não é acreditar nele. As certezas da fé advêm de um fundo que não definimos, que é absolutamente inefável e que está dependente de programas vivenciais que escapam ao entendimento. Pela fé não descobrimos coisas novas, mas aprendemos a direccionar o nosso olhar mediante estruturas vivenciais interiores, que nos remetem para um tempo e uma vivência que nos parecem muito antigos. Viver na fé é revelar-se, evidenciando mundivivências que estão fora do nosso espaço e do nosso tempo. Somos portadores de uma multiplicidade de deuses, ritos, castigo e perdão.

Antigamente, o factor religioso era composto por um conjunto de preceitos que respondiam às necessidases do homem de então. Hoje já não é assim. O homem moderno e pos-moderno vive a angústia das suas descobertas. O que é natural. O que ignoramos não nos incomoda porque é um não existente. O incómodo vem directamente do que conhecemos e não sabemos o que fazer com ele. Saber como se fazem os bébés-proveta não é problema; em que situações, com que óvulos e com que espermatozóides, do casal ou de dadores, isso já é um problema.

A criação de leis que regulem as novas descobertas, quer queiramos aceitar quer não, estarão sempre dependentes de factores que em tudo se perdem na dimensão da fé, do modo como se está perante o divino, e de como se espera agradar-lhe. Surgiram, de facto, novas questões, mas o fundamento e o modo de solucioná-las passará sempre pelos mesmos condicionalismos: uma componente valorativa dependente do sagrado.

O Espiritismo, longe destas problemáticas, limita-se ao chavão das vidas pretéritas. Porque é que uma coisa é de tal modo, responde-se sempre por causa das encarnações anteriores. Desta forma, longe de ser uma hipótese explicativa e um meio de ajudar na solução do problema, assiste-se ao efeito contrário. Esta falsa teoria da reencarnação é geradora da angústia de que um problema pode estender-se a uma pluralidade de encarnações, nem podemos escapar-lhe porque nos persegue. Mais que libertadora, essa teoria é uma corrente aprisionadora do indivíduo ao seu passado, de que não se lembra, do qual não tem quaisquer certezas, mas que está lá, culpabilizador. Quanto ao perdão não existe, ficou adiado.

O esquecimento das vidas passadas significa viver a presente como uma novidade. Cada vida é um livro que se abre, totalmente desconhecido. Assim, julgando que combatem aquilo a que chamam fé irracional ou infundada, os falsos espíritas apenas substituem os materiais das antigas crenças, ou simplesmente de outras crenças, pelo dogma da reencarnação, pensando que dessa forma são mais evoluídos. Ora, o Espiritismo não inventou os Espíritos, a sua comunicação com a Terra, assim como não inventou a reencarnação. O Espiritismo cristianizou-os mediante uma codificação que pretende dar voz às máximas de Jesus, num mundo onde os próprios cristãos o esqueceram bem como à sua Doutrina.

Mais, o Espiritismo não pode nem deve negar as antigas formas de crença, o que seria uma profunda contradição, pois elas são o seu próprio fundamento. “É à mesma lembrança que se devem certas crenças relativas à doutrina espírita encontradas em todos os povos? - Esta doutrina é tão antiga quanto o próprio mundo. É por isso que a encontramos por toda a parte, e é esta uma prova da sua veracidade.” ( KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, pp 128-129, perg, n.º221-a), e em O Evangelho Segundo o Espiritismo, o referido autor diz com toda a clareza que “O Espiritismo se encontra por toda a parte, na antiguidade,e em todas as épocas da humanidade.” (p. 18).

A veracidade da Doutrina está mais que provada através da História e da Arqueologia, e podemos dizer que a Antiguidade, oriental e clássica, além de ser a história social e política dos povos, a sua arte, ciência e cultura, é, simultaneamente, a nossa História Espírita. É nesta arquê do Espiritismo que encontramos, de forma indiferenciada, Magia (lembremos os Reis Magos do Oriente, que previram o nascimento de Jesus), Religião, Astrologia, Matemática, Geometria, Magnetismo... é aqui que a Doutrina vai beber a sua identidade. “O Espiritismo e o magnetismo nos dão a chave de uma infinidade de fenómenos sobre os quais a ignorância teceu muitas fábulas, em que os factos são exagerados pela imaginação. O conhecimento esclarecido dessas duas ciências, que se resumem numa só, mostrando a realidade das coisas e a sua verdeira causa, é o melhor preservativo contra as ideias supersticiosas, porque revela o que é impossível, o que está nas leis da Natureza e o que não passa de crença ridícula.” (KARDEC, A., idem, p. 243)

O que o Espiritismo codificado pretende fazer, entre outras coisas, é introduzir o homem noutra dimensão da fé, livre dos materiais que até agora têm funcionado como uma bengala: talismãs, representações figurativas de Entidades, fórmulas e códigos complexos, enfim, toda e qualquer manipulação mágica da Natureza. Como vimos na citação supramencionada, o Espiritismo ultrapássa-os. “ Em todos os tempos foram reputados sobrenaturais os fenómenos cuja causa não era conhecida, pois bem: o Espiritismo vem revelar uma nova lei, segundo a qual a conversação com o espírito de um morto é um fato tão natural, como o que se dá por intermédio da electricidade, entre dois indivíduos separados por uma distância de cem léguas; o mesmo acontece com os outros fenómenos espíritas.” (KARDEC,. A., O que é o Espiritismo, p. 75).

Porém, tomemos agora em consideração a seguinte pergunta: Os espíritas conseguiram superar o politeísmo dos Antigos e o contemporâneo? Vejamos o que a respeito nos ensina a Entidade interrogada:

“Os fenómenos espíritas, sendo produzidos desde todos os tempos e conhecidos desde as primeiras eras do mundo, não podem ter contribuído para a crença na pluralidade dos deuses?


_ Sem dúvida, porque aos homens, que chamavam deus a tudo o que era sobre-humano, os Espíritos pareciam deuses. E também por isso, quando um homem se distinguia entre os demais pelas suas acções, pelo seu génio ou por um poder oculto que o vulgo não podia compreender, faziam dele um deus e lhe rendiam culto após a morte.” (K., A., o.c., p.281, perg. n.º 668. Sublinhado do autor.).

Parte significativa dos espíritas ainda não superou os antigos deuses. Os fenómenos espíritas continuam a criar espanto tal como outrora. Apenas mudaram os tempos e, com eles, a sua apresentação. Será que alguém pode negar o culto e as romarias em torno da figura de F. C. Xavier, a que um número cada vez maior de “fiéis” rende homenagem? Alguém nega que o referido médium está a ser mais cultuado que Jesus, nalguns Centros? Alguém pode negar que pôr em causa certos conteúdos dos livros de Emmanuel é pôr a cabeça no cepo? Fazer referência a aspectos em que Kardec está ultrapassado não equivale a falar contra a Doutrina, sendo, quem o fizer, excomungado na fogueira da ignorância? Alguém pode negar o ambiente exclusivista e intolerante face à rejeição de certos trabalhos mediúnicos, por parte de alguns trabalhadores? Quem se atreve a dizer, numa mesa de trabalhos, que não aprecia o Nosso Lar, de F. C. Xavier, que rejeita passagens de O Livro dos Espíritos? Quem nega que os fenómenos mediúnicos, porque produzidos através de determinados médiuns ou tão somente por acontecerem dentro dos meios espíritas, são aceites sem contestação? Desafio quem quer que seja a provar que o que digo é falso.

Além disso, muitos espíritas não conseguiram sobrepor-se à crença em mézinhas, como é o caso de medicamentos que dizem vir do Astral, supostamente revelados e prescritos por médicos espirituais; ou “operações” feitas por autênticos curandeiros, um verdadeiro perigo para a saúde pública e brilhantemente condenado pelo próprio F. C. Xavier; continuam a creditar em seres com poderes especiais e, por isso, em contacto directo com o divino ou com quem o represente, movimentando milhões, uma ignomínia para os espíritas sérios, que se sentem incapazes de acabar com tais práticas, por mais que as desmascarem. O sobrenatural continua dentro da Doutrina, mal disfarçado perante o olhar clínico de trabalhadores sérios, onde os falsos remetem o que é o Espiritismo para segundo plano.

E o que é o Espiritismo? Eu diria a liberdade de pensar Deus em que “Os Espíritos, ensinando o dogma da pluralidade das existências corpóreas, renovam uma doutrina que nasceu nos primeiros tempos do mundo e que se conservou até os nossos dias, no pensamento íntimo de muitas pessoas. Apresentam-na, porém, de um ponto de vista mais racional, mais conforme com as leis progressivas da Natureza e mais em harmonia com a sabedoria do Criador, ao despojá-la de todos os acréscimos da superstição."(KARDEC, A., idem, p. 141). E é isto que não está percebido.

Ao ignorá-lo confundem codificação com negação. Ora, em parte alguma Kardec ou as Entidades negam as antigas formas de crença, apenas lhes dão continuidade de um ponto de vista mais racional. Na ilusão de que o mundo de hoje já está preparado para perceber o que os Antigos não eram capazes de compreender, não lhes passa pela cabeça que vivemos em torno dos textos da Antiguidade, a começar pelos Evangelhos, e que estamos muito longe de os pormos de lado. São disso exemplo o renascer das técnicas de meditação orientais, taoistas e budistas, as práticas do yôga, bem como os textos milenares que os fundamentam. É que o problema não são os textos, mas a vivência da fé. Isto significa que o acento tónico do problema não tem nada a ver com a antiguidade dos textos que, só porque são antigos têm que ser forçosamente rejeitados. Santa ignorância! Esses mesmos textos têm que ser lidos, hoje, desprovidos de todo e qualquer pensamento prisioneiro de ideologias. É aí que está a superação, no método analítico próprio de uma exegese histórico-crítica, e não acorrentado a príncipios dogmáticos e supersticiosos.

Por outras palavras, a ignorância não está do lado de quem os escreveu, que conseguiu transmitir os grandes problemas da Humanidade, percebê-los com notável clareza e singular inteligência, como é o caso da Bíblia Hebraica, dos aforismos budistas, tão em voga ultimamente, bem como da surpreendente admiração pelo conhecimento egípcio antigo. A ignorância é nossa, quando nos julgamos detentores das respostas, apoiados numa visão da Ciência, ela própria dogmatizada, e essa é grande obsessão dos nosso tempo. E até neste ponto a Doutrina é uma novidade, isto é, o conceito de ciência, segundo o Espiritismo não é um conceito dogmático: “ O Espiritismo repudia, nos limites do que lhe pertence, todo efeito maravilhoso, isto é, fora das leis da Natureza; (…) Ele amplia igualmente, o domínio da Ciência, e é nisto que ele próprio se torna uma ciência;” (KARDEC, A., o.c., p. 75).

Saber que o mundo está em expansão, que começou ou não com o Big Bang, pode ser uma grande victória da Ciência; desconhecer quem sou, porque estou aqui e porque existo continua e continuará por responder, porque quando tivermos respostas definitivas teremos chegado ao fim da História.

O que seria da Doutrina sem Sócrates ou Platão, a que o Evangelho Segundo o Espiritismo faz referência, sem Moisés, onde a referida obra afirma peremptoriamente “ Deus é único e Moisés é o espírito que Deus enviou com a missão de fazê-lo conhecer, não somente pelos hebreus, mas também pelos povos pagãos. O povo hebraico foi o instrumento de que Deus se serviu para fazer a sua revelação através de Moisés e dos Profetas, e as vicissitudes da vida desse povo foram feitasa para chocar os homens e arrancar-lhes dos olhos véu que lhes ocultava a divindade. Os mandamentos de Deus, dados por Moisés, trazem o germe da mais ampla moral cristã.” (p.46) ? O que seria da Codificação sem o próprio Jesus, quando o Kardec esclarece que “o Espiritismo e o Cristianismo ensinam a mesma coisa.” (idem, p.35)?

Não podemos deixar afundar esta doutrina só porque alguns querem fazer dela um mundo à parte, isolando-a das suas raízes históricas e filosóficas, das crenças que a fundamentam, fazendo comprometer o futuro para que está vocacionada. Espiritismo significa continuidade, humildade e amor por si próprio, pelo Outro e pelo Absoluto, tal como se ensina nos meios yogues. Uma doutrina não tem que dizer coisas diferentes, apenas dizer de forma diferente as coisas que todos dizem. É que o caminho para Deus tem que ser desbravado por todos, segundo a sua sensibilidade e o seu entendimento. Ou não será assim?

Margarida Azevedo
Bibliografia
Citada:

KARDEC, A., O Livro dos Espíritos, CEPC, Lisboa, 1984, p.281, perg. n.º 668.

                       O Evangelho Segundo o Espiritismo, CEPC, Lisboa, pp. 35 e 46.

                       O que é o Espiritismo, FEB, RJ, 1987

Consultada:

ELIADE, Mircea, O Mito do Eterno Retorno, Edições 70, Lisboa, 1993.