A ARIDEZ PASCAL DOS CENTROS ESPÍRITAS
Se todos os templos, se todos e quaisquer lugares de culto representantes das mais diversas organizações cristãs resolvessem fechar portas, como o fazem a maioria dos Centros espíritas, acabavam-se a celebrações do calendário histórico-religioso do judeo-cristianismo de que somos herdeiros. Tombaríamos redondos no chão da incultura religiosa, na crença cínica do deus operatório criado à imagem e semelhança do mais refinado egoísmo.
Por mais que certos espíritas neguem, a Doutrina tem as mesmas origens que as suas congéneres: a comunicação com os Espíritos, a Natureza como espaço sagrado, a crença na vida após a morte. Tudo isso faz parte do universo religioso intrínseco ao próprio homem, do qual as diferentes leituras e representações são a riqueza da manifestação do Espírito na sua relação constante com o Divino e o Sagrado. Nós partilhamos a mesma História, os mesmos conflitos e desenlaces; partilhamos o mesmo universo de esperança e de sentido, partilhamos a procura da felicidade e a explicação para o sofrimento.
Ora, a Páscoa dos cristãos é, antes de mais, a Páscoa do povo judeu. Esta festa do calendário litúrgico não é um acontecimento qualquer. Trata-se da celebração da passagem da escravatura à liberdade, do silêncio ao direito de auto-determinação política e religiosa baseado na promessa de Deus ao seu povo.
Este movimento de passagem é ambivalente porque a estes aspectos acresce ainda a missão ímpar na História das Religiões, a saber, não se trata apenas de libertar um povo mas de o mesmo transportar consigo, mediante uma fé inabalável, a missão de espalhar por toda a Terra a exitência de um Deus libertador, invisível, e que estabeleceu com o seu povo uma Aliança. Um povo escravo é o povo silenciado e, como tal, impedido de cumprir qualquer missão. A saída do Egipto é libertação plena da Palavra, esperança para todos os oprimidos.
Por outras palavras, a História é manifestação de Fé e do Deus único. Isto significa que o jogo entre direitos e deveres passa pelo facto de perceber que o homem é um ser superior e, como tal, na sua fé, não deve curvar-se perante nada, seja feito por mão humana, seja do que existe na Natureza (Ex 20: 2-4).
A fim de celebrar essa passagem, em Ex 12, capítulo em que está instituída a primeira Páscoa, temos no v.5 a imolação cordeiro ou cabrito, macho, sem mácula, de um ano, que será comido assado, com pães asmos e com ervas amargas (v.8), entre outros preceitos (vv 15-27). Esta era a Páscoa do judeu Jesus.
Como a sua morte por crucificação ocorreu na altura das festividades pascais, foi associada a Jesus a classificação de Cordeiro de Deus, aquele cuja morte transportou os nossos pecados. O seu ressurgimento após três dias, que nada tem a ver com reencarnação, dá testemunho da presença do seu Espírito junto dos seus companheiros e familiares, cabendo-lhe agora a feitura da Promessa: “(...)eis que eu estou convosco, todos os dias, até à consumação dos séculos. Amén.” (Mt 28: 20); “E estes sinais seguirão aos que crerem: em meu nome expulsarão os demónios; falarão novas línguas; Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão.” (Mc 16: 17-18); “ E eis que sobre vós envio a promessa do meu Pai: ficai, porém, na cidade de Jerusalém, até que do alto sejais revestidos de poder.” (Lc 24: 49); “E, tudo quanto pedirdes em meu nome, eu o farei, para que o Pai seja glorificado no Filho. Se pedirdes alguma coisa em meu nome, eu o farei. Se me amardes, guardareis os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará outro Consolador, para que fique convosco para sempre. O Espírito de verdade, que o mundo não pode receber, porque não o vê nem conhece; mas vós o conheceis, porque habita convosco, e estará em vós. Não vos deixarei órfãos; voltarei para vós.” (Jo 14: 13-18).
Embora com diferenças marcantes entre os quatro evangelistas, a Promessa cumpre-se, tal como fora anunciada nas Escrituras, de que a presença de Deus junto dos que permanecerem fiéis aos seus ensinamentos será inviolável. Aquele que crê torna-se imune a todas as vicissitudes, de tal forma que a sua vida é um viver constante para Deus. Dito numa linguagem espírita, este lado e o lado de lá são um só no bem fazer, na prece e no amor incondicional ao próximo.
E aqui surge o incómodo: Neste tempo de Páscoa, como foi a sua passagem? Qual foi o seu gesto libertador? O que é que modificou em si próprio? Acha que faz parte do povo escolhido para transmitir ao mundo a fé no Deus único? Sente-se com coragem para tal responsabilidade? Acha que é digno de ser servo desse Deus? Sente-se apóstolo, seguidor, ou é mero simpatizante desse Jesus, Cordeiro de Deus? Que rumo pretende dar à sua vida? Para que lado lança as suas redes? O que quer verdadeiramente: peixe, pão, serpente ou pedra?
Ser cristão incomoda. Mexe com a natureza de quem ainda trilha caminhos de Damasco ou de Emaús; de quem se esconde com medo dos soldados do Império Romano representados em milhentos olhares acusadores e dos quais não temos notícia. É o medo de vermos as nossas incongruências, a nossa cor pardacenta.
Não tenho a menor dúvida de que, se o discurso pascal fosse idêntico ao natalício, os Centros ficariam a abarrotar de roupas velhas, alimentos fora de prazo, sacos cheios de sandes, sumos e frutas para dar aos pobrezinhos (sem desonra para os que o fazem com o devido respeito e consideração por quem recebe). Mas como o discurso pascal está na outra margem, eu diria nos antípodas da caridade falaciosa, os Centros resolvem fechar as portas pois não há caridadezinha para garantir a salvação. Como evitar que isto aconteça?
Instituir nos Centros a Sessão Pascal: conduzir o crente a uma autocrítica profunda, uma reflexão sobre os seus pensamentos, as suas acções; instalar o incómodo do erro, do pecado, da falsidade; incentivar à procura do Bem, à limpeza mental; ensinar que a fé associada a uma vontade firme formam a alavanca que nos fará ultrapassar os escolhos que se nos deparam no quotidiano. Com que meios poderá o Centro espírita fazer tudo isto?
Todos os trabalhadores têm que dar o exemplo. Não significa serem perfeitos, nem bons, porque só Deus o é. Significa tão simplesmente estarem empenhados em ser melhores. Depois, deve o Centro espírita, no início de cada ano de actividades, geralmente no princípio de Setembro, estabelecer um calendário para o ano inteiro no que se refere às festividades internas à Doutrina, da Casa, bem como daquelas que marcam os episódios basilares da nossa herança religiosa. Os espíritas têm que perceber que não estão sózinhos no mundo cristão e, como tal, não lhes é permitido alhearem-se daquilo que lhes confere identidade. Isso também é uma falta de caridade. Antes de Kardec está Jesus Cristo, e antes de Jesus Cristo está Deus, e Deus está acima de todas as coisas. Celebrar a Páscoa é celebrar Deus libertador. O Espiritismo não pode esquivar-se a essa comemoração.
Seguidamente, dividir os trabalhadores com equidade, segundo aquilo para que estão mais vocacionados e mediante as possibilidades dos mesmos, penso que é coerente. Há que perceber que o Centro é uma casa de oração que deve estar ao dispor de quem chega 365/6 dias no ano. Proíbir um espírita de celebrar a Páscoa no Centro que habitualmente frequenta é, a meu ver, um pecado hediondo. Ele tem o direito de partilhar a sua oração com os demais, nem que sejam dois ou três.
Por fim, sentir a alegria de partilhar a oração, os esclarecimentos e tudo o mais que cada Centro achar por bem levar a efeito no sentido de melhor complementar os trabalhos.
Lembre-se, viver a Páscoa é celebrar a maior das victórias: a vida sobre a morte.
Qua a paz de Deus, de Jesus Cristo e de todos os que abnegadamente estão ao seu serviço estejam consigo. Amén.
Margarida Azevedo