SOFRIMENTO, A INEXPLICÁVEL REALIDADE E O QUE HÁ DE MAIS CARO NO MUNDO
Defender que o ser humano só evolui através do sofrimento, ou que este é pelo menos uma parcela fundamental para o seu progresso, é o mesmo que dizer que uma criança só aprende por meio de açoites. Contrariamente aos que defendem tal aberração, as novas correntes pedagógicas já perceberam que a educação é, principalmente, a arte de bem dialogar, donde promovê-la significa acreditar que a palavra é o maior dos bens do Homem.
Daí ser contraproducente e mesmo anti-natura apoiar o progresso humano no sofrimento. Por outras palavras, nem o progresso vem por esses meios, nem se verifica que os mesmos culminem em progresso. Em termos de fé, uma coisa é acreditar em Deus segundo um espírito livre e feliz, vendo Nele o Ser do sumo Bem, outra bem diferente é fazer de Deus uma terapia psicológica para os males que acontecem. Nem Deus é um comprimido, nem um sádico que traça caminhos dolorosos para chegar até Ele.
Por outro lado, fazer do sofrimento a alavanca para desenvolver a fé é demasiado perigoso, pois a História prova até onde nos tem conduzido tal postura. Chegando ao ponto de não querer ser feliz, sob pena de ir parar ao Inferno, muitos houve que procuraram o caminho da dor, associada ao sofrimento, para antecipar a sua entrada no mundo das bem-aventuranças. Ora, nem a dor física é sofrimento, nem o sofrimento é dor física. É muito fácil flagelar o corpo, é bem mais difícil fazer a alma retroceder nos seus vícios, defende o Espiritismo.
Assim, se quisermos definir sofrimento debatemo-nos com a fagilidade da linguagem. Podemos dizer que é um estado d´alma, uma vez que pessoas em situações idênticas têm reacções opostas. E ainda que tracemos excepções, nomeadamente no que diz respeito à dor universal de perder um filho, o sofrimento é sempre mediatizado pelo factor cultural.
O Espiritismo propõe que é preferível perder um filho a vê-lo nos caminhos do ilícito, o que vem contrariar a máxima de que “enquanto há vida, há esperança.” A Doutrina espírita defende a morte como um bem, isto é, o desencarne, porque, se a vida continua além do corpo, em outra dimensão, então é preferível abandoná-lo a fazer mau uso da vida e do próprio corpo.
Todavia, o assunto não é pacífico, levanta uma infinidade de questões. Vejamos: Não será preferível uma vida difícil a vida nenhuma? Ainda que todos acreditem numa vida além da morte, não é preferível apostar mais nesta, que sabemos como é, a uma outra de que não temos informação, ou pelo menos não a temos de forma precisa? Defender a vida não é um valor prioritário? Desejar a morte, ou preferí-la à vida, não é pecado? Querer a morte por ser dfícil a vida não é uma fuga, um mecanismo de fraqueza? Quem deseja a morte a um filho com base na fé de que no além terá uma vida melhor? Semelhante postura não terá como pressuposto a velha máxima de que, ao morrer, entramos directamente no mundo da luz? Não estará, por ventura, tal desejo, se assim lhe podemos chamar, oposto ao que o próprio Espiritismo defende, a saber, que não entramos num mundo melhor a partir do momento em que neste trilhámos a senda dos vícios?
O que desejamos e o que devemos desejar são por vezes incompatíveis, no sentido de desconformes com os nossos interesses. Vivemos mediatizados por uma infinidade de situações que não construímos, nomeadamente a cultura, além de relações laborais, modelos de consumo normativos que não são nossos. Como contextualizar o sofrimento num mundo que, erroneamente, se tornou global, e no qual cada vez mais se faz o que não se quer nem como quer? Mais, como explicar e justificar a função espiritual do sofrimento quando ele se tornou um artifício manuseado segundo os interesses de quem governa?
Há que perceber que criar sofrimento tornou-se no ganha-pão de uns quantos. Reduzir os salários, a segurança no trabalho, na escola, a criação de ghetos, a identificação dos indivíduos segundo as marcas dos produtos que consomem, a redução do ser ao ter, a produção de novos ignorantes ou analfabetos nas escolas, mercê de métodos e técnicas pedagógicos elaborados em gabinetes e não a partir da experiência da realidade da sala de aula, a falta de perspectivas e de saídas profissionais para os jovens e a violência crescente entre os mesmos, tudo isto se tornou na alavanca dos pulsos de ferro do século XXI.
Ora, é certo e sabido que em situações adversas a fé entra em acção. Ela transforma-se, não em acto livre de crer, mas em mecanismo reactivo, uma resposta contra a prisão “perpétua” em que encerraram toda agente. A fé deixa de ser um meio de o indivíduo lutar pelo bem e elevar-se, para ser a crença de que, no para lá, seja lá onde for, a felicidade espera-o. E é este o pensamento que interessa aos que governam, que dessa forma têm o caminho aberto e livre para criar mais sofrimento. Dito de outro modo, se parte significativa do que comemos já não vem directamente da Natureza, o sofrimento está a ser igualmente criado em estufa.
Estamos a viver num aviário gigantesco, carne para consumo de processus de aculturação que nos impelem a apresentações de sofrimento que se sobrepõem às nossas. Exemplo: uma coisa é um indivíduo querer publicar uma obra literária, mas, mercê das suas ocupações com um familiar doente, não ter a disponibilidade necessária para o fazer; bem diferente é querer publicar o dito trabalho mas não o fazer porque, à sua frente, estão as obras fúteis de todos os que pertencem às amizades do editor.
Estávamos habituados a que o sofrimento fosse o meu sofrimento, não o de outro, a minha relação com o meu estado d´alma; uma relação de posse, de intransmissibilidade e intransitividade, e nisto consistia a sua universalidade: ser tanto mais geral quanto mais se particulariza em cada indivíduo. Hoje, continua a haver universalidade, já não como o conjunto dos indivíduos mas como massa anónima de gente que se pretende à deriva, perdida e confusa, e à qual se dá todo o tipo de possibilidades para pensar a sua fé inconsequente, verdadeiras aberrações que em nada contribuem para o progresso da Humanidade. Todos se tornaram expectantes de uma vida melhor no para lá, ou de um castigo mágico para os maus ainda cá deste lado.
Associar o sofrimento à evolução pode ter as suas vantagens, se com isso querermos dizer que o progresso tem os seus escolhos. Porém, eles não podem ser tidos como elementos do sofrimento. Pelo contrário, são móbeis fundamentais ao processo de investigação. As evidências são por demais perigosas e os escolhos despertam a inteligência para o mais recôndito.
A nossa evolução é, por isso, antes de tudo, uma acção da vontade livre à qual está subjacente uma pré-disposição. Nascemos portadores de mecanismos que nos direccionam para áreas de interesses. Ora, o sofrimento surge quando, exteriores a nós, ou mesmo por nosso intermédio, em resultado da nossa ignorância, outros factores se sobrepõem impeditivos de conscretizar o que naturalmente nos está traçado. Porém, não se confunda tais factores com a noção psicológica de frustração. Esta não se resume apenas à figura paterna ou materna castradora que impede o filho de realizar um desejo; ela consiste igualmente numa barreira do próprio indivíduo impedindo-o de concretizar tarefas, o que, uma vez tratado, remete-o para a efectivação dos seus objectivos. Pelo contrário, os factores externos impeditivos são um conjunto de múltiplas acções, que mercê do seu poder incomensurável, condicionam o indivíduo de forma definitiva, levando-o a agir contra si mesmo e que o impedem de realizar aquilo para que estava vocacionado.
Há que compreender que evoluir é uma decisão que se toma e que fica para sempre. Ninguém decide que vai evoluir durante um mês ou um ano. Trata-se de um querer desmesurado, sem limite, sem ponto de chegada pois está em permanente acontecer e onde é sempre possível acrescentar mais um.
Por consequência, crescer significa aumentar responsabilidades, desenvolver aptidões, partilhar com maior equidade, contribuir conscientemente para o progresso da sociedade. Como fazê-lo numa cama de hospital, que projectos num país onde, pela fome, a esperança média de vida vai apenas até aos 40 anos de idade? Como pensar a longo prazo? Como idealizar uma vida melhor para os filhos? Que educação lhes facultar? Que fé, que oração, que forma de crença, que disponibilidade para as actividades espirituais na miséria, na falta do mais elementar, do mais básico?
A religião, a ética, a política e tudo o mais com que nos ocupamos quotidianamente é assunto de gente de barriga cheia. Quando cheio de fome, tudo se resume a colmatá-la. Condenar um ladrão que assaltou um banco é uma coisa, condenar alguém que furta um pão para comer é outra bem diferente. Víctor Hugo, esse espírita convicto, percebeu-o com singular lucidez: a universalidade da Lei tem que ser justamente aplicável à singularidade do indivíduo. Os Miseráveis mostram-nos até onde pode ir um homem, quando injustamente acusado de ter cometido um acto perigoso, movido apenas pela fome.
Em suma, bem mais que a indústria farmacêutica e o negócio das armas, para além do tráfico de droga e todo o tipo de produtos comercializados no mercado negro, o sofrimento supera, e muito, todo esse mundo do ilícito.
Primeiro porque é um negócio legal, ainda que tudo o que lhe seja paralelo possa não o ser; segundo porque não escolhe ninguém. Toda a gente tem o seu sofrimento, em todas as idades, em todas as classes sociais, em todos os sectores da vida. É uma espécie de praga sem antídoto que atravessa continentes, estruturas sociais e políticas. Não conhece raças, etnias, vai para além do factor religioso, da fé. Não tem que ver com a conduta da vida. Gente boa e má sofre de forma idêntica: assassinos, ladrões e gente honrada. Ética, moral, educação, arte, ciência, cultura são-lhe indiferentes. Todos, absolutamente todos estão no mesmo barco. Porquê? Como explicar este mistério?
Se tomarmos em consideração que o mundo cresce para um contencioso com quem trabalha, que a mão-de-obra está cada vez mais dispensável e barata, que se abafa todos os dias a força de quem tem nas mãos a riqueza e o garante de sobrevivência de um país, que são criados todos os meios para desenvolver a insegurança e com ela a crescente fragilização do ser humano em todos os parâmetros e em todas as estruturas básicas, então temos que concluir que estão criadas as condições para manter e aumentar o sofrimento dos povos. Condenando-os ao silêncio, mas criando a ilusão de que são livres de pensar e opinar, a autodeterminação nunca foi tão posta em causa, pois que a interferência nas políticas internas tornou-se o prato do dia.
E como há compradores para tudo, ou consumidores de todos os gostos, também há quem goste de consumir sofrimento. É muito fácil. A imagem de Jesus crucificado deve ser das figuras mais vendidas do mundo. Um instrumento de tortura, Jesus no clímax do sofrimento, a cabeça pendente, a sangrar e com o olhar vítrico tornou-se no grande embaixador da salvação. Trazê-la pendurada ao pescoço, ou fazer dela instrumento de adorno em casa, ou trazê-la como amuleto no automóvel, a cruz, com ou sem Jesus, é dos maiores instrumentos do medo, do sofrimento, bem como de antagonismo à livre expansão do pensamento do crente.
Cada vez mais procurado, o sofrimento é matéria fácil de políticos sem escrúpulos, dos líderes religiosos fanáticos, da publicidade enganosa, de organizações fantasma tais como agências matrimoniais, centros de convívio para conhecer pessoas sob o pretexto de cultivar e desenvolver padrões de socialização e quebrar o isolamento. E estes são os aspectos mais soft. Aumentar o fosso entre ricos e pobres, ver gente a enriquecer à custa do ilícito, criar, por meio de mecanismos psicológicos manipuladores, o aliciamento e a consequente angústia por não poder comprar algum conforto a que, legitimamente, todo o ser humano tem direito é tornar a vida em tortura e cujo objectivo, dos fracos, é viver uma vida sofrível e descurar, por consequência lógica, o seu importante papel de ser mensageiro de uma pequena luz ao fundo do túnel.
No conjunto, é um punhado de gente das trevas a viver à custa de quem precisa de uma resposta para os seus problemas, uma mão amiga, uma ajuda eficaz, mas também de quem quer mostrar o seu valor e fazer alguma coisa pelo outro. É certo que não há uma resposta definitiva, como nada de definitivo existe neste mundo, mas é a resposta possível, a mais viável para um determinado momento; é aquilo que se precisa de ouvir ou fazer naquela hora.
É facto que o Homem é um ser de problema, mas é simultaneamente um ser de resoluções. Num mundo onde os animais são tão mal tratados e ainda trabalham, não conhecemos que os mesmos se tenham organizado em associações contra os maus tratos dos humanos. Assim, se estes não aprenderem a utilizar a inteligência em seu favor, se não a aplicarem no alívio do sofrimento, cada um de per si e em prol de todos, então em nada serão superiores aos animais.
Margarida Azevedo