A GRANDE CIVILIZAÇÃO
Dos
perigosos chavões e das frases feitas tão inconsequentes como
eles, na tentativa obscura de minar o Espiritismo nos seus
fundamentos, surge a irreflectida e maníaca afirmação de que somos
hoje mais civilizados do que o éramos nas eras pretéritas.
Não
fazendo abstracção do aparato tecnológico e do desenvolvimento
científico, mercê do crescimento intelectual do homem, confundem
salpicos civilizacionais com progresso e crescimento na área
espiritual.
Poucos
são os que percebem que, apesar do crescimento intelectual,
chamemos-lhe assim, continuamos os mesmos, com idênticas reacções,
idênticos valores, muito embora se diga que os mesmos estão em
crise, numa tentativa de regresso ao passado de uma suposta época
áurea em que tudo era respeito, boa convivência, assim como as
demais virtudes que, muito bem envernizadas, tinham o condão de
fazer de uma família infeliz um saudável exemplo para a sociedade.
Isto
significa que, se por um lado o passado era tenebroso, a ignorância
prevalecia e comandava o homem de tal forma que este era todo
instinto (desconhecemos se até os animais o são), por outro lado
surge o apelo a um passado cheio de virtudes.
Estas
afirmações, apresentação de um aparelho psíquico ainda muito
frágil e que, por isso, quer à viva força viver a plenitude de uma
paz pura, sem quaisquer contrariedades, são o grito de um
saudosismo referente a uma época que jamais existiu. Por outras
palavras trata-se de um suposto paraíso perdido, paradigma da
virtude suprema e no qual, porque o homem vivia em conformidade com
os desígnios de Deus, tudo lhe era dado de bandeja.
Embora
esta segunda hipótese tenha poucos adeptos no Espiritismo,
felizmente, não deixa, porém, de estar presente aquando de
abordagens aos novos ares que se respiram em termos de liberdade
sexual e social, estrutura familiar, educação, etc. Há sempre no
passado algo de atractivo. E isso é tão incisivo que, na ausência
de explicação dos males que acontecem, remetem as causas últimas
dos acontecimentos do presente para esse passado imaginário,
desconhecido e vedado, Ora, isto acaba por ser o mesmo, apenas
trocando-lhe as palavras. Se para uns houve um paraíso perdido, onde
se vivia uma paz inconsciente e, como tal, um estado de ignorância
harmonioso, para outros houve um passado infernal governado pelo
inconsciente e pela ignorância desastrosa. Quer num quer noutro
ninguém sabia o que fazia. Procurar uma estrutura desculpabilizadora
ou culpabilizante, o efeito é idêntico. Não há ignorância
virtuosa nem desastrosa, como não há uma paz para cada uma delas.
Nesta
confusão, ou melhor, na aflição de procurar encontrar uma
explicação plausível, e não a encontrando, remetem para o
desconhecido. Este, pela sua própria natureza não se mostra porque
não pode, caso contrário passaria a ser o conhecido.E aqui
interroga-se: que fazer com o conhecido? Ninguém sabe. Ou melhor,
provavelmente até sabe: haveria sempre um resíduo de insatisfação,
uma pluralidade de interpretações que o relativizariam fazendo
regressar (ou regredir) ao ponto de partida.
Uma
questão se impõe com toda a pertinência: Como resolver tão
difícil dilema? A resposta é simples: antigamente não podíamos
ter respostas nem explicações para os nossos problemas porque ainda
não tínhamos a inteligência suficientemente desenvolvida para os
perceber, mas hoje, mercê da infinidade de encarnações que já
temos, mais coisas nos são reveladas e, portanto, já somos capazes
de perceber. Isto é, hoje merecemos mais porque somos mais
inteligentes; no passado remoto Deus pouco ou nada nos revelou porque
éramos tacanhos, selvagens, egoístas, instintivos, e todos os
demais predicados afins. Que Deus seria esse?
Por
muito que nos custe, a nossa civilização essenta em bases muito
frágeis e tão comezinhas que nem damos por elas. Por outras
palavras, podemos afirmar sem receio “Diz-me se comes, onde
vives, com quem vives, o que fazes, que eu dir-te-ei qual a tua fé.”
O
modo como estamos na fé, aquilo em que acreditamos e como
acreditamos, dependem muito mais do que possuímos do que
propriamente de um passado mais ou menos remoto. O aconchego do
estômago dita as regras desta complexa engrenagem. As condições
económicas são responsáveis pela maior ou menor disponibilidade
para o divino; o sagrado é composto por uma rede elaborada de
preceitos em que o factor económico impôs a riqueza dos ritos; a
generosidade da dádiva tinha o peso da graça exigida.
Saber
como se chegou a esses valores é um mistério, ainda que muitos
afirmem que vem do além. Isso não resolve nada, porque então
teríamos que perguntar ao além como chegou aos referidos valores. A
resposta poderia ser espantosa e impensável, uma vez que penetrar
nos confins do além implicaria possuir uma linguagem compatível com
tão complexos raciocínios.
Ora,
a nossa linguagem cresce e desenvolve-se à medida que o meio se
torna mais elaborado, sempre material e tangível, portanto. As
nossas barreiras materiais não nos permitem transpor essa
fronteira, representadas fielmente pela linguagem. Logo, vivemos no
mundo da nosssa discursividade.
Ainda
não ultrapassámos os textos da Antiguidade. Tudo no passado
continua a fazer muito sentido, um passado histórico em que,
efectivamente, podemos ser os mesmos, nalguns casos, não sabemos,
mas também não é isso que importa. Sejamos quem formos, o
importante é que ainda estamos aquém do que muitos pensam.
Na
miséria não há espiritualidade, mas a crença de que um dia poderá
sair desse estado, (talvez, sempre talvez). Na miséria não há um
amor por amor a Deus, mas um sentimento utilitário, pois Deus passa
ao estatudo de deus mágico, poderoso, mitológico, o único que pode
lutar contra os homens para lhes impor pesados castigos por se
portarem mal. Noutros nem tão pouco há o desejo de castigo porque
tudo lhes é indiferente.
Na
miséria anseia-se por justiça imediata, apressada, exemplar. Quem
tem uma esperança média de vida de trinta ou quarenta anos, no
máximo, que embala filhos esqueléticos ou passeia nas ruas da
lixeira não quer ouvir falar de Deus, não quer palavras belas e
doces porque estão a mais, são totalmente dispensáveis porque fora
do contexto; também não quer um lanchinho humilhante, em jeito de
troça e oferecido ao fim da tarde pela caridadezinha. Quem é
mão-de-obra disponível pelos senhores da droga e da prostituição,
do tráfico humano, que acede a tudo e mais alguma coisa pois sabe
que se morrer no tráfico é apenas mais um sem nome nem vida para
contar, que lhe importa se Deus existe ou não, se há gente boa ou
má, se há verdade ou mentira, filosofia ou ciência, arte, sabores,
perfume, sorte ou azar?! Quem é privado de amor, quem nem sabe se
poderá ser amado, que nunca foi olhado com desejo, singularidade,
quem nunca foi descoberto na sua existência de gente e que nem tão
pouco sobe ao estatuto de pessoa (conceito que o Cristianismo
inaugura), que desconhece o mundo imenso dos possíveis numa vida em
que tudo lhe é impossível, como representa ele as fadas, os dendes,
os Espíritos, como é a floresta, qual a cor das flores ou os seus
aromas? Que universo de sentido numa vida sem sentido? E depois ainda
há os que dizem que são santos porque estão a queimar grandes
karmas. “São os oficiais de Hitler!”, exclamam
uns; “Foram Espíritos com grandes malfeitorias.”,
dizem outros. E assim se vão desculpando os egoísmos, as
indiferenças, o medo. Se perante os pobres a humanidade ainda não
mudou de atitudes, então ainda não mudou em nada, pois é no amor
ao próximo que reside o amor a Deus.
Este
Deus revelado pelo Povo Judeu é um Ser libertador, de memória, um
Ser todo de paz e fraternidade. Tirou o seu povo do Egipto, da terra
da servidão. Imagine-se que, num golpe de benevolência, uma força
superior tirava da miséria todos quantos lá estão? Que aconteceria
aos outros? Nem as mais belas preces, teorias, crenças, caridades e
todas as demais virtudes os protegeriam da ira da justiça. Todas as
teorias seriam reduzidas a nada, cairiam na terra árida, seriam pó
e nada mais. Que sabe essa gente de civilização, de progresso, de
amor de que tanto enchem as bocas?
Deus
não separa os homens em categorias, inteligentes ou estúpidos,
primários ou desenvolvidos, sábios ou ignorantes. Este Deus de
liberdade ainda não foi assimilado pelas nossas formas de fé.
Estamos todos aquém da liberdade da fé porque estamos aquém do
outro.
Reencarnar
serve para corrigir, não para castigar, penalizar. A vida não é um
tribunal de penas, mas um agradável movimento imparável cujo móbil
é uma força incomensurável que não sabemos o que é e a que
chamamos Vida.
Se
tantos direitos se criaram, como os supramencionados, então é
urgente criar o direito à não pobreza e gritar bem alto “A
partir de agora jamais existirá um mísero à face da terra. Amen.”
Margarida Azevedo