A EUROPA DE “REGRESSO” AO PAGANISMO
Ao remontarmos às origens do Cristianismo, verificamos que a sua arquê subdivide-se em duas grandes vertentes: a judaica e a pagã.
Não foram incompatíveis, ao que parece, para o pensamento de Jesus que, ao remeter a fé para o coração dos homens e das mulheres, colocou o acento tónico da religiosidade no bem fazer e não no bem parecer. Aliás, como todos sabemos, o alvo das suas duras críticas foram os seus correligionários e não os pagãos.
Este facto tem uma infinidade de leituras, as quais já fizeram e farão correr rios de tinta, pois não falta quem sobreponha à mensagem de Jesus aspectos de práticas pagãs, não tão subtis como à primeira vista possam parecer. São disso exemplo as curas e o seu lado milagroso, não histórico portanto.
Por outro lado, com o passar do tempo, a luta contra os Judeus, a proibição da leitura da Bíblia, bem como a rejeição do lado histórico do referido texto colocaram o Cristianismo numa linha de continuidade do Paganismo, e não numa de estudo pluralista típico do tempo de Jesus, quer no aspecto linguístico (diferenças estilísticas, de herança sacerdotal e popular), quer em termos de hermenêutica e exegese. Perante esta situação, o Segundo Testamento foi sempre preferencial uma vez que, ao crer que Jesus é a encarnação de Deus, tudo o que estava para trás era desnecessário. Um erro colossal associado a esta posição foi submeter o Primeiro Testamento ao Segundo. Por outras palavras, todos os profetas anteriores a Jesus, sem excepção, tiveram como missão preparar a vinda do Messias, o Deus-Homem.
Isto significa que os Cristãos não perceberam a dimensão renovadora do Judaísmo proposta por Jesus, o qual, ao pregar a Paz e o Amor, isto é, o Reino de Deus, foi portador de um universo de esperança aos mais deserdados. Não compreendendo esse aspecto de renovação profunda, fizeram dele um deus, e assim cavaram um lamentável fosso entre eles e os Judeus, facto que se tem prolongado até aos nossos dias, infelizmente.
Isto significa que, das três grandes religiões monoteístas ou religiões do Livro, o Cristianismo é aquela que por excelência deu continuidade à vertente pagã, mantendo os mesmos deuses, apenas mudando-lhes os nomes para as suas Entidades. Ser profeta passa a ter estatuto de santo e significado equivalente a deus, agente em determinada área, mas também na dimensão em que cura milagrosamente quando evocado, prevê o futuro, defende máximas morais, numa palavra, influi no modo como socialmente a fé deve manifestar-se, mexendo com materiais tais como a tradição, as crenças, as fórmulas ritualísticas, relações com a Natureza, numa simbólica onde o onírico, o folclore e superstições formam o edifício que lhe conhecemos.
Assim, em boa verdade, para falarmos em regresso teríamos previamente que situar no tempo e no espaço quando é que o Paganismo foi definitivamente erradicado, quando é que os mortos deixaram de ser considerados deuses, quando é que as famílias enlutadas deixaram de lhes fazer pedidos e oferendas em cultos relativamente complexos; quando é que deixaram de ser cultuadas imagens bem como os ritos sacrificiais; seria importante saber quando é que os produtos da Natureza deixaram de ser utilizados como materiais sagrados, fazendo parte de celebrações ligadas aos solstícios, a ritos nupciais, baptismais e fúnebres, entre outros.
Seria importante saber quando é que um Deus sem nome nem figura começou a ser cultuado, em exclusão radical, logo definitiva, de todo o aparato supramencionado. Quando é que se começou a compreender a necessidade de uma ética da libertação, isto é, não agregada a uma confissão política ou religiosa, pondo o acento tónico no homem enquanto o maior valor da Criação e, portanto, tornando desnecessário o simbolismo cultual que o tem subjugado, ao longo dos séculos, a seres semelhantes e até inferiores.
O que verificamos é que dois mil anos de história a pregar o amor a Deus como ser Supremo não conseguiram apagar os traços pagãos da nossa cultura. Muito pelo contrário, eles fizeram desde sempre parte integrante dos cultos cristãos que, como vimos, em vez de lutarem pela sua abolição, assimilaram-nos até aos nossos dias.
Entre as várias leituras que podemos fazer de tal verdade, a primeira terá que ver com a interpretação dos próprios Evangelhos, canónicos e apócrifos que, nos retratos que nos legaram de Jesus, com maiores ou menores nuanças, o apresentam como um pregador que não vai contra as práticas exteriores vigentes dos grupos religiosos de então, mas sim contra as práticas exteriores de de uma falsa religiosidade judaica, que se pretendia impulsionadora de uma vivência de fé num Deus reformador do interior humano, mas que estava a falhar nos seus propósitos. Não foi contra os pagãos que Jesus se insurgiu, mas contra os seus companheiros de culto, supostos sábios e virtuosos, leitores assíduos e comentadores das Escrituras, mas que desconheciam as coisas mais simples do Reino de Deus bem como a que as mesmas aludem.
Porém, esta posição não é justificativa nem desculpabilizante da manutenção, ou mesmo desenvolvimento de cultos pagãos. A sua sobrevivência insere-se, principalmente, com o modo como o Cristianismo foi impondo o Cristo às populações. Estas, apesar do Amor e Paz, do ideal de fraternidade pregado pelos Cristãos, bem como da defesa da igualdade do senhor e do escravo, depressa constataram que embora essa teoria fosse uma agradável novidade, não bastava para anular os seus compromissos para com a Natureza e os mortos. Por outro lado, os cristãos falavam de amor com agressividade.
Assim, sentindo-se impotentes para tão grande empresa, os cristãos não tiveram outro remédio senão deixar que tudo ficasse como está. Isto não significa que, em latência, o problema estivesse esquecido. A Inquisição é disso um bom exemplo. Não conseguindo anular os cultos domésticos, e com eles os meios e técnicas de cura pelo manuseamento de ervas e respectivos dizeres, que mais facilmente correspondiam às necessidades das populações, usou de todos os meios de força que alguma vez se podiam imaginar, ligados a uma fé ou forma de adoração a um deus. Pela via do medo, impuseram um deus do Mal pior que o dos pagãos, envernizado de bondade, e assim tentaram fazê-los perder influência. Por outras palavras, o Deus único tornava-se medonho, intolerante e assassino, mercê de uma proibição radical da leitura da Bíblia e dos próprios evangelhos, mas também movido por uma insaciável vontade de poder e domínio.
Por outras palavras, enquanto as populações conheciam os deuses pagãos, sabiam as liturgias, ofereciam-lhes sacrifícios; se tinham rezas para tudo e mais alguma coisa, desde, por exemplo, da cura para hemorragias e queimaduras a influências espirituais, a nova doutrina era bélica e assustadora e nada prometia de concreto.
A força, no entanto, venceu. Trouxe, porém, alguns benefícios na área da educação e saúde, trouxe grandes pensadores, trouxe bons exemplos de beatitude, porém manteve parte do paganismo. A forma de adoração às Entidades cristãs é em tudo idêntica às dos deuses pagãos, que o digam aqueles que todos os anos cultuam João Baptista, em Portugal, no Baixo-Alentejo, por exemplo.
Podíamos ainda apontar algumas das causas da permanência do Paganismo no Cristianismo à celebérrima conversão de Constantino ao Cristianismo e à consequente subida dos Cristãos ao poder de Roma. No entanto há que perceber que essa conversão não foi radical. Ele não tornou o Paganismo ilegal, a imagem do deus imperial Sol continuou a ser cunhada nas moedas até cerca de 315, e as práticas piedosas pagãs continuaram a atraí-lo. Talvez esse tenha sido um dos motivos porque não impôs uma religião oficial única. Isto é, converter-se não significou anular-se nas suas crenças anteriores, nem significou impor e discriminar.
A descristianização do Cristianismo aparece quando os Cristãos confundem divulgação de uma máxima, confundem o ideal de expansão universalista de Jesus, com ganância e consequente subida ao poder. A partir de então, ao tornar-se a religião oficial de Roma, dá-se início à politização e respectivas formas de imposição de um movimento que começava a tomar forma segundo novos parâmetros.
A anterior divulgação das ideias de Jesus, assente no apostolado e discipulado, depressa foi substituída pela nova forma, a saber, a conquista do poder político. Isto significa que esses homens e essas mulheres converteram-se à Política, criando para tal uma nova religião que lhes favorecesse a subida ao poder.
Como enquadrar a vivência de paz e amor num contexto de interesses políticos, onde predomina a intriga, a desconfiança e, acima de tudo, onde se desenvolve a retórica ou a capacidade de explorar o poder da palavra até ao seu máximo expoente, independentemente do conteúdo?
Não foram os Pagãos que rejeitaram as ideias cristãs, foram os Cristãos que não souberam transportar o estandarte da paz e do amor aos povos. Divulgar um Deus sem nome nem figura não era, nem é, tarefa fácil. Mas fazê-lo num contexto bélico, opressivo, discriminador de homens e mulheres foi o desastre total, tendo em conta que o profeta impulsionador desse movimento reformista nada teve a ver com isso. Nunca um movimento religioso deturpou tanto o seu profeta como o fizeram os Cristãos face a Jesus.
Com tudo isto, o nosso século XXI herda do último quartel do anterior a rejeição do Cristianismo, pelo menos nos moldes em que este continua a prevalecer. A maioria dos cristãos não cumpre as doutrinas das suas igrejas, porque descontextualizadas, desconexas, impraticáveis.
Por outro lado, a dispersão dos cristãos nesta multiplicidade de igrejas tem vindo a contribuir para um empobrecimento do próprio Cristianismo, mostra da sua mesma fraqueza. Elas seriam muito positivas se fossem hermenêuticas, vivências rumo a uma maior especificidade da mensagem de Jesus; se tivessem nascido a partir de uma preocupação em criar novas directivas sociológicas, novos caminhos da fé. Mas não. E ainda que algumas o tivessem feito, depressa caíram em suas bases. O Cristianismo é hoje um movimento confuso, do qual cada uma das suas igrejas reclama a exclusividade da verdade, esquecendo o Cristo. Preconizam ideias exclusivistas e defendem a hipocrisia de um ecumenismo reduzido a alguns, muito poucos.
A Europa, cansada, está a retomar, isto é, a dar progressivamente mais força ao que parecia estar relativamente adormecido: o Paganismo, que regressa poderoso, a todo o vapor. Os cultos do Sol e da Lua, na Europa do Norte, a retoma dos cultos tradicionais às forças da Natureza, com o objectivo de, mal disfarçado, não deixar morrer a tradição ancestral; o culto dos mortos, o simbolismo dos materiais da Natureza, ainda que mal disfarçados com os nomes deturpados de Naturismo ou Naturalismo, Ecologia, e ainda Reciclagem.
Por outro lado, temos a importação de cultos a deuses estrangeiros, a introdução de princípios teolológico-filosóficos orientais, alguns ainda com pouca expressividade. Está a crescer o recurso a técnicas de meditação hindús e taoístas, o Budismo, que já conta com várias associações, os quais surgem mal compreendidos na medida em que todos eles são meios para o indizível libertador, e não formas de manutenção dos homens e mulheres na densidade da matéria.
Com tudo isto, não é Jesus que está a ser rejeitado, mas sim a falsa religião que lhe atribuem, o Cristianismo. Desta forma, porém, Jesus está a tomar o lugar de podium ao lado dos profetas de eleição do Antigo Israel e de todo o mundo, aos quais sempre pertenceu, e perde a cada dia que passa lugar cativo nas catedrais e igrejas. Jesus está a soltar-se, como solto sempre foi, sem tabus nem complexos. Se Gandhi ou Siddharta Gautama são respeitados pelos cristãos, se as orações índias são cada vez mais apreciadas, na mesma leva Jesus vem nesse arrasto.
Outro aspecto de capital importância situa a descristianização da Europa no facto de as suas igrejas serem empresas lucrativas, que não impõem, porque não querem ou porque não sabem, um Deus sem imagem, de Amor e de Paz, nem conseguem dar testemunho de um profeta da tolerância e da universalidade. E aqui regressamos ao Judaísmo. Sem ele, não temos dúvidas, o Cristianismo está definitivamente perdido, uma vez que este precisa de se repensar a si mesmo, reformular-se, donde, sem essas bases, perde definitivamente uma parcela fundamental da sua arquê. Definitivamente os Cristãos têm que compreender o Judaísmo de Jesus. Rejeitar esta alavanca, móbil do edifício cristológico, a saber, o homem é capaz de falar de Deus na medida em que é Homem, isto é, a nossa Humanidade implica Deus na Sua manifestação na nossa História, é cair no vazio e fazer de Jesus um pregador de surdos.
Na ânsia, porém, de saber quem foi o Jesus histórico, nunca foi consumida tanta literatura nessa área, nunca se falou tanto do judeu Jesus, nunca se foi tanto às origens como hoje. Qualquer crente quer saber que Jesus é esse de que tanto se tem falado, o que é que verdadeiramente defendeu, que testemunho veio dar. Já ninguém aceita porque já não suporta um Jesus mágico, fazedor de milagres. Jesus já não é o milagreiro prodigioso, mas um homem que urge conhecer. Milagres qualquer um faz. Importa saber o que tem este Homem de tão especial? Se os Pagãos conheciam os seus deuses, os Cristãos desconhecem Jesus, consequentemente o Deus de que veio dar testemunho.
A nova forma de paganismo, agora nas mãos dos cristãos com Cristo mas sem Cristianismo, de curiosidade insaciável, exige uma vivência em conformidade com a fé, segundo os parâmetros de uma nova religiosidade, o coração dos homens e mulheres.
Se os primeiros cristãos eram judeus e pagãos, e se os seus diferendos giravam em torno da circuncisão, essencialmente, os novos pagãos vindos do Cristianismo, com os seus diferendos, giram em torno de saber quem verdadeiramente foi Jesus. Quando perceberem que a Paz e o Amor são as suas grandes alavancas, quando interiorizarem que pessoa é cada um de nós, e quando perceberem que o Cristo é uma Entidade que veio ao mundo dar esse testemunho para todos, quando perceberem que cada profeta é parte desse movimento, à sua maneira e segundo a sua época e lugar, a sua cultura e a sua história, perceberão que Cristo é uma Entidade colectiva e Jesus um dos seus profetas. Quando isso acontecer reinará o amor entre todos os povos, viveremos uma paz fraterna.
Ora, a Europa não pode rejeitar Deus nem fazê-lo depender de superstições, sejam elas novas ou velhas. Por seu lado, ao receber Jesus e cristãos, de uma forma assumida por ambas as partes, o próprio Paganismo exige uma superação. Já não lhe basta a Natureza na sua dimensão simbólica. Jesus começa a fazer-lhe todo o sentido na medida em que fala ao coração dos homens e das mulheres, elevando o papel da Natureza a outro expoente. Com isso, o Paganismo depressa irá compreender que o coração humano está em permanente mutação evolutiva. Vai notar que há uma fé inefável no Invisível, construção de uma identidade que se renova sem retrocesso. Vai perceber que há uma proposta de modificação afectiva radical dos homens e das mulheres conjuntamente. E isso o Paganismo não é capaz de fazer porque não lhe pertence, vem de um judeu reformador, Jesus. O Paganismo pode ter tido, e tem, a sua influência na construção da nossa relação com o invisível, mas não construiu a noção de transcendência humana baseada no conceito de pessoa.
Não precisamos de sobrecarregar a Natureza de simbolismos, mas de libertar os homens e as mulheres do cárcere da ignorância a que a se têm amarrado. A Natureza não pode mais que Deus.
Desta forma se verifica que se o Cristianismo tem que se repensar, o Paganismo não lhe fica atrás. Inversamente, ele passa por idênticas questões. Pode ser um caminho, mas está longe de ser o caminho porque tal não existe. O que existe são caminhos.
O Paganismo sem a Natureza perderia o Homem, porque não saberia onde situá-lo; o Judaísmo sem História Humana perderia a manifestação de Deus, pois não saberia como falar Dele; o Cristianismo sem a mensagem de Jesus perde a noção de manifestação do Amor Divino, reformulação da nossa fé. Sem a noção dessa realidade, continuaremos a ter um deus carregado de ouro no altar da sumptuosidade, o deus-bezerro da nossa ignorância.
Não temos dúvidas, o regresso ao Paganismo é o espelho das fraquezas do Cristianismo. Mas também espelho da infantilidade de homens e mulheres que temem a sua mesma liberdade, porque não são capazes de assumir a responsabilidade que ela, naturalmente, exige.
Liberdade, é da liberdade da fé que a Europa precisa... e o resto do mundo.
Margarida Azevedo