Para que existem as religiões? Serão
elas as responsáveis privilegiadas da construção do caminho para Deus, ou
haverá outras formas? O discurso político e a consciencialização do colectivo
como forma de progresso social, os grupos laicos e os seus aforismos apelativos
à mudança interior, a educação, não serão porventura outras formas de caminhar
para Deus? Por outro lado, também importaria saber até que ponto estão as
referidas discursividades emancipadas do discurso religioso ou, inversamente, até
que ponto o discurso religioso está emancipado dos demais, e, estando-o ou não,
em que medida tal é possível e benéfico.
Saber o que é o outro é complexo, mas
para o mundo religioso é-o duplamente? Como encaram as religiões a alteridade,
como perspectivam o outro na sua individualidade, irrepetibilidade, o seu ser
único portador singular de uma infinidade de aspectos que são seus e só seus? A
resposta a todas estas questões não é uniforme, nem poderia sê-lo, porém, isso
não significa intolerância nem fanatismo. A diferença de opiniões deve ser
encarada como uma mais-valia e não como um fracasso ou uma insustentabilidade
das “nossas” opiniões.
Por muito diferentes que nos
pareçam, os discursos religiosos têm mais aspectos em comum do que possamos
pensar. Todos se julgam na posse da verdade, todos se têm como caminhos únicos
de salvação, todos se encaram como privilegiados por serem quem são. Os mais
tolerantes caiem sempre na afirmação de que “embora todos sejam caminhos, eu já estou num patamar acima do daquele
grupo, graças a Deus.”
E isto reflecte-se em tudo. Face à
pobreza, que é o que nos interessa de momento, os grupos religiosos têm nela
parte da sua razão de ser. Pelo menos assim parece. E isso é de tal modo evidente
que a questão surge imperiosa: “Se não houvesse pobres, que sentido teria a
religião?” Se se conseguir imaginar um mundo sem pobres, que religião teríamos?
Que céu, que mundo de luz, que beatitude defenderia? Isto porque sem pobres o
mundo seria feliz. Ou talvez não. O contrário de pobreza não significa ausência
de problema, de dor, de injustiça. A pobreza pode ter a ver com isso, mas não o
é exclusivamente. Ela limita-se a ser uma das suas múltiplas apresentações.
É facto que a caridade tem sido um
alvo preferencial do mundo religioso. Alimentação, cuidados médicos e de
enfermagem, educação, esmolas, apoio a famílias carenciadas, idosos e crianças
desprotegidas. Tudo muito louvável, realmente. Não esqueçamos que são muitos os
que devem à caridade o triunfo profissional, a saúde e até a própria vida. Só
que esses muito são bem poucos.
Porém, a questão não é essa. A
questão reside em saber qual o móbil dessas acções, porque é aí que está a
razão de tão duras críticas à caridade.
O que as moveu foi o amor ao próximo?
Foi não temer que o outro pudesse manifestar mais capacidades, inteligência,
criatividade, virtuosismo? Além da maioria dos necessitados não estar abrangida
pela caridade religiosa, esta permaneceu quase sempre dependente da imposição
de formas de fé que nada tinham a ver com as dos carenciados. Isto significa
que “dou-te um pão se te converteres”,
fazendo tábua rasa da fé do outro. E dizemos “quase sempre” porque somos
optimistas.
Ora, as religiões têm movimentado
milhões… Com os pobres? Se, em todo o mundo, as esmolas que são dadas às
religiões, os donativos em dinheiro, em propriedades, em géneros que vão desde
alimentos a bens de primeira necessidade, passando por joias e peças de arte;
se se contabilizasse o trabalho voluntário, a venda de produtos religiosos, o
comércio da fé com a venda de orações e benesses; se se tivesse uma ideia
mínima da actividade bancária, de tudo o que ela movimenta, e se a mesma fosse,
como dizem, para gastar com a pobreza, bem, se assim fosse seria impossível que
houvesse pobres à face da terra. À custa dos pobres e à sombra da caridade
acumularam tesouros, dito de outro modo, cavaram o seu próprio fosso.
Não foram capazes de ensinar a cultivar
a terra nem a pescar, preferiram, na maior parte dos casos, dar o produto da
terra e o peixe; temeram o livre pensamento, e com isso se empobreceram pois
expuseram-se à estagnação. Hoje, queixam-se da confusão em que o mundo se
encontra, não mais que o produto do que semearam. O medo gera a esterilidade e
palradores de vocábulos estéreis.
Ajudaram alguns, é verdade, porém o
móbil não foi erradicar definitivamente a pobreza, mas mantê-la. Não combatendo
a miséria, os pobres nascem que nem cogumelos. O nosso século está a ser uma
fábrica de pobres num homicídio político, social e, já se vê, religioso.
O móbil não foi a sensibilidade da alma,
a assimilação da dor do outro como sua, os problemas do outro como seus.
Algumas fizeram mártires, por vezes gente de comportamento estranho e inaceitável
pelas comunidades, revelador de uma depreciação da vida, entregando o corpo à
tortura e a vida aos intolerantes, tão intolerantes como os torturados, tão
incompreendidos uns quanto os outros. Todavia, não fizeram a caridade
verdadeira, e é isso que o mundo está a cobrar.
Todos os governantes têm as suas
religiões, mas estas estão muito bem guardadas … nos templos. Cá fora outros
galos cantam, prova de que a mensagem não passou, porque nem tão pouco existiu.
É o discurso da santa pobreza para ganhar o céu, por outras palavras, o discurso
camuflado dos ricos para iludir os pobres. Sensibilizar para acabar com os
bairros de lata, levar a educação e a saúde a toda a gente, defender práticas
ecológicas, não permitir que nenhum ser humano viva na pobreza, em condições
verdadeiramente degradantes, tudo isso está por fazer. Não é importante que haja
rede de saneamento básico numa barraca, o que é urgente é erradicar as barracas.
Nada existe que dê mais lucro que uma
falange de pobres. Quanto maior melhor. Os pobres estão disponíveis para tudo.
São reserva de sucata humana, um conjunto de peças para serem encaixadas na
manipulação perigosa da complexa engrenagem da alta finança, na política sem
escrúpulos, são peões ao serviço dos sem carácter.
Facilmente são aliciados, dispostos
a tudo, a qualquer momento e a qualquer preço, julgando-se privilegiados por
serem chamados a tarefas “bem remuneradas”. Os raros que têm trabalho, não têm
horário, nem permissão para constituir família, embora muitos não o saibam. Por
vezes falam nisso com um sorriso nos lábios. São os que fazem parte dos
escolhidos que têm uma profissão, pela graça de Deus que se lembrou deles. São
os que enriquecem as igrejas com dádivas, pois vivem em estado de graça.
A este estado social caótico, falhanço
da caridade interesseira, nem já as religiões conseguem pôr cobro. Estão
afogadas no seu próprio veneno. Hoje trabalha-se, amanhã logo se vê. E se
porventura o houver, vão executar tarefas que nada têm a ver com a anterior. O
que é preciso é que não se sintam especialistas em nada, pois assim é mais
fácil jogar com o fantasma de voltar a ficar sem trabalho. Sem regalias
sociais, sem subsídios, de deficitário acesso à saúde vivem a carência entre o
nada e o quase nada. É o novo modelo de esclavagismo.
Consequentemente não há tempo para
pensar. A mente está permanentemente ocupada com a sobrevivência, o rastejar constante
perante a quem alimentam o salário da luxúria escandalosa.
Quanto aos outros, os que nunca
trabalham, esses são utilizados na criminalidade da droga, das influências, do outro
lado do ilícito. São o garante da manutenção de outros pobres em regime de
trabalho escravo. Estes são também o alvo fácil das religiões que assim vêem
forma de enriquecer à custa de dádivas, tal como os seus fiéis que vêem forma
de aligeirar o fardo existencial. O egoísmo, a fé a preto e branco, no fundo o
velho problema da falta de espiritualidade. E assim se manipulam os homens e as
mulheres uns/umas aos/às outros/outras.
São os pobres o alvo preferencial das
campanhas eleitorais, mas muito mais ainda dos discursos sem escrúpulos dos
dirigentes religiosos e seus acólitos.
A Caridade é uma luta constante contra o
desleixo espiritual, a acomodação cínica de que a vida é assim. Como é que
sabem? Provem-no. A Caridade passa por uma vivência escatológica, a saber, a
Felicidade, a Justiça, a Luz, o Bem, enfim, é para todos.
A religião tem no mundo o seu reino de
ouro; a Caridade tem no mundo o seu reino de trabalho. A religião pode ser um
caminho, mas a Caridade é Amor.
Margarida Azevedo