ESPIRITISMO DA LIBERTAÇÃO
Porque demasiado arreigados a um passado
longínquo, não passível de ser total, ou até mesmo parcialmente provado, porque
nascemos virtuosamente esquecidos, nunca é demais lembrar, parte significativa
dos espíritas vivem prisioneiros de uma ancestralidade que desconhecem, em
absoluto, e que não pára de lhes ser erroneamente lembrada pelas comunicações
mediúnicas que recebem.
Kardec jamais deu certezas, apenas que
talvez o inexplicado do que acontece no presente tenha uma possível origem no
pretérito. “Talvez”, mas o talvez não é certo.
Mal lido, mal compreendido, não estudado
na sua codificação, o Espiritismo está atulhado de livros que não dizem nada,
que confundem e induzem o leitor em confusão, culminando em modos de encarar a
Doutrina contrários aos que o próprio codificador transmitiu.
O Espiritismo está a tornar-se, assim,
uma doutrina incontrolável, porque ninguém é capaz de dizer “Basta!”. Tornou-se
acrítica, invadida e ofuscada por textos insípidos e repetitivos. Descurando o
papel fundamental da razão, apesar dos seus limites, é claro, tudo é aceite só
porque é recebido dentro do Espiritismo, como se isso fosse sinónimo de
espírita. Ninguém se ouve nem pára para pensar. O movimento tornou-se num mar
de desunião, onde cada um se move baseado em simpatias particulares, tentando
sobreviver pelos seus próprios meios.
Podemos dizer que psicografar tornou-se
uma actividade rentável para alguns Centros e para certos sectores do próprio
movimento, bem como alimento da vaidade de encarnados e desencarnados que,
movidos por instintos ludibriosos e separatistas, vêem nela uma forma fácil de
manipular, de enganar e dividir. Essas psicografias apresentam-se como
discursos de grande saber, de verdades feitas, com explicação e resposta pronta
para tudo. Apresentam-se como textos que pensam pelo leitor, substituem-se ao
seu raciocínio, à sua crítica. Impondo-se à Ciência, fazem afirmações que não
se podem provar, ou que põem em causa saberes confirmados. E ainda que o não
sejam, a psicografia jamais deve sobrepor-se ao trabalho do cientista e
investigador. A Ciência não é nem será do âmbito da Revelação, jamais. Kardec,
muito claramente, afirma: “Em virtude
desse princípio é que os Espíritos não acorrem a poupar o homem ao trabalho das
pesquisas, trazendo-lhe, já feitas e prontas a ser utilizadas, descobertas e
invenções, de modo a não ter ele mais do que tomar o que lhe ponham nas mãos,
sem o incômodo, sequer, de abaixar-se para apanhar, nem mesmo o de pensar. Se
assim fosse, o mais preguiçoso poderia enriquecer-se e o mais ignorante
tornar-se sábio à custa de nada e ambos se atribuírem o mérito do que não
fizeram. Não, os Espíritos não vêm
isentar o homem da lei do trabalho: vêm unicamente mostrar-lhe a meta que lhe
cumpre atingir e o caminho que a ela conduz, dizendo-lhe: Anda e chegarás. Toparás com pedras; olha e afasta-as tu
mesmo. Nós te daremos a força necessária, se a quiseres empregar.” (pp.
372- 373).
E para que não restem dúvidas, O Livro dos Médiuns, o livro de
cabeceira do médium sério, corrobora desta forma: Os nossos Espíritos protectores podem, em muitas circunstâncias,
indicar-nos o melhor caminho, sem entretanto nos levarem a ele. Do contrário,
perderíamos toda a iniciativa e nada mais faríamos sem recorrer a eles, isso em
prejuízo do nosso aperfeiçoamento. Para progredir, o homem tem sempre
necessidade de adquirir experiência à sua própria custa. É por isso que os
Espíritos sábios, sempre prontos a aconselharem-nos, entregam-nos às nossas próprias
forças, como um instrutor hábil faz com os seus alunos. Nas circunstâncias
ordinárias da vida, aconselham-nos pela inspiração e deixam-nos assim todo o
mérito do bem, com toda a responsabilidade pelas más escolhas.” (p.332).
Quanto à seriedade dos Espíritos, que
muitos espíritas endeusam, a partir da simpatia que nutrem pelos respectivos
médiuns, até as comunicações tidas como sérias não são uma escritura sagrada,
muito pelo contrário. Tornamos a quem sabe:
“Os Espíritos sérios não são todos igualmente esclarecidos. Há muitas coisas
que eles ignoram e sobre as quais se podem enganar de boa fé. É por isso que os
Espíritos verdadeiramente superiores nos recomendam sem cessar que submetamos
todas as comunicações ao controlo da razão e da lógica mais severa.
É,
pois, necessário distinguir as comunicações verdadeiramente sérias das comunicações falsamente sérias, o que nem
sempre é fácil.” (Idem, p. 149). Mais claro é impossível.
Ora, para quem a psicografia diz tudo,
sabe tudo, vale tudo, impõe-se como um discurso que diz a suprema verdade, que
desvenda os mistérios de Deus, que enche o indivíduo de certezas, chavões,
frases feitas, verdades e afirmações intransponíveis, isto não interessa saber.
E se adicionarmos a isso o endeusamento do médium, então estamos perante uma
epidemia que facilmente se espalhará. Nada mais perigoso, nada mais
aprisionante.
O que se verifica neste circo é o ódio a
pegar fogo, pois os incautos espalham-no por meio da maledicência, da
intolerância, da intransigência, do decoro e do ridículo das ideias sem nexo, a
que aderem cegamente. A decência, a nobreza, a ética, a educação, a compostura,
a dignidade, a honra, o crédito onde estão? Alguém os encontra nesses
textos?
Ora, os espíritas e o Espiritismo não
precisam deste marasmo de psicografias, nem de outros fenómenos abruptos
quaisquer. Precisam de burilar-se, empenhar-se no bem-fazer; gente de oração, e
empenhada no seu progresso e crescimento espirituais, é nisso que os espíritas
têm de empenhar-se. Não deve exercer-se a mediunidade? Deve, mas com outros
fins: oração, esclarecimento e cura.
Com isto, as psicografias sérias, raras,
acrescente-se, estão a perder a sua utilidade, a cair no esquecimento. É
lamentável. Se não houver um travão no que se está a passar, em breve teremos
uma doutrina de falácias, remetendo o trabalhador sério para o sótão das
velharias, isto é, o silêncio.
Os espíritas devem debruçar-se mais
atentamente sobre o Divino Mestre e não sobre os Espíritos. É o Evangelho, e só
ele, que tem a resposta para os nossos problemas, donde tudo o que se disser
tem que ser em conformidade.
Para os que gostam de liberdade, que
amam o livre pensamento, aqui deixamos algo para reflectir, da obra O Consolador:
“Devo
o pequeno equívoco observado, concedendo à matéria certos ascendentes que só
pertencem ao espírito, a perturbações do método de “filtragem mediúnica”, onde
o nosso pensamento foi prejudicado.” (p. 233) (nota explicativa)
A polémica sobre esta obra, que tentaram
infrutiferamente calar mas que aos mais atentos não passou despercebida, tem
como referência um erro, que não é um
pequeno equívoco, e que a Entidade tenta colmatar desta forma,
justificando-se. Ao ler a justificação somos induzidos a pensar que a Entidade jamais
se engana, e como tal não precisa de se desculpar. Parece-nos um
pretensiosismo. É facto que todos erramos, não o aceitar é demais, apontar a
razão a outro, não há palavras; neste caso, culpar o médium, pensamos que é, no
mínimo, uma falta de ética.
Quando nos enganamos nos nossos
raciocínios não podemos culpar os outros. Temos que ter tolerância para
connosco mesmos, humildade para com todos. “Enganei-me!”, e pronto.
Esclarece-se o equívoco.
Para nós, as comunicações desta
Entidade tiveram o impacto que tiveram, face à respeitabilidade do médium,
Francisco Cândido Xavier. Se a mesma tivesse dito o que disse através de outro psicógrafo,
estamos certos de que não teria tido a pujança nem a projecção que teve.
Emmanuel é o que é na Doutrina graças ao trabalho de Xavier, mas o contrário
não se verifica. Xavier não foi Xavier à custa nem à sombra de Emmanuel. Basta,
para tanto, passar o olhar pelas obras das outras Entidades que por meio dele
se comunicaram. Dá que pensar.
Margarida Azevedo
Referências bibliográficas
Nota: Para melhor compreensão da
temática em epígrafe, aconselhamos a leitura, na íntegra, dos capítulos das
obras de Kardec abaixo referenciados.
KARDEC,
A., O Evangelho Segundo o Espiritismo, FEB,
RJ, 1979, cap.XXV, pp.372-373.
____________,
O Livro dos Médiuns, CEPC, Lisboa,
2001, caps, XXVI, p. 332 e X, p. 149.
XAVIER,
F. C., (Emmanuel, Espírito.), O
Consolador, FEB, RJ, 1998, p.233.