MILAGRES E PSICOGRAFIAS
Nota
prévia: Há milagres? Ainda os há. Ter saúde, alguma, e estar relativamente
bom da cabeça, nos tempos que correm e como correm, é um “milagre”, e dos
grandes. Há psicografias? Há-as, ainda. Honestas e credíveis? Sim,
poucochinhas, mas essas estão escondidinhas, à poeira, pobrezinhas.
A não satisfação com o mundo material
tal como ele é, e a consequente procura de algo que o contrarie é, no mínimo, reflexo
de insensatez e de desordem mental e afectiva.”Um verdadeiro discurso alucinado”, diria o psicanalista.
Ora se entendermos por mundo material o
chão que pisamos, a Natureza, enfim, pergunta-se: O que é que lhe falta para que a nossa felicidade seja completa? ou
então: Que fundo de insaciedade é o
nosso, que exigência tão desmesurada, para que o espaço em que nos movemos e o
que temos sejam tão insuficientes para a fé em Deus? Além disso, não
estando estes devidamente explicados, a começar porque não sabemos porque
existe algo e vez de nada, parece que não haveria necessidade de acrescentar
mais uns quantos enigmas a juntar aos que já temos.
Alargar o conceito de mundo material a
um mundo invisível, denominado Espíritos, almas, ou designando-o de qualquer
outra forma, não resolve o problema. É que a nossa grande questão não é o
Espírito mas a Matéria, embora o Espírito também seja uma questão de relevância.
Somos capazes de pensar Espírito sem Matéria, mas não o podemos representar;
não podemos pensar a Matéria sem mais, a Matéria é sempre Matéria mais qualquer
coisa, por isso, de alguma forma, a representamos. Mas esta representação é
problemática.
Onde e como vamos buscar essa
representatividade? Como construímos a estrutura material? Existe em nós uma
monitorização com uma panóplia de apresentações que nos estabilizam e
simultaneamente nos insatisfazem. Imaginamos ou sonhamos com uma pluralidade
paralela à nossa, que nos observa e atrai. Movemo-nos perseguindo esse
imaginário, não mais que uma realidade com outras formas de fé.
Os milagres manifestam-se na matéria,
parecendo conferir-lhe, ainda que momentaneamente, outra natureza, outras leis,
outra rácio. Cairbar Schutel defende
que sem as manifestações, não lhes chama milagres, o Cristianismo não existiria,
nem tão pouco, num sentido mais abrangente, a própria Religião. Será? Simultaneamente
afirma que “A Verdadeira Religião desperta altas aspirações e torna-se um
liame entre as almas e Deus; por isso não pode deixar de ter caráter
permanente, no tempo e fora do tempo, na espaço e fora do espaço.” (1)
Mas os espíritas não acreditam em
milagres. Dizem que tudo faz parte da mesma natureza; que é a nossa ignorância
que lhes chama assim, milagres. De facto, podem ter razão os que assim pensam,
no entanto, parece-nos, o nível do milagroso foi substituído pela designação de
mediunidade, com todas as suas múltiplas apresentações, entre as quais
salientamos a psicografia.
O apreciar doentio e insano de
psicografias, a sua proliferação dentro do movimento espírita, entupindo as
livrarias dos Centros, têm-na absolutizado e dado dela uma péssima imagem. Porquê?
Porque, para muitos, são os Espíritos que estão ali, é o milagre da sua
comunicação, é a Graça de Deus na Sua manifestação aos simples e incorrectos
mortais; são as certezas para as incertezas, o certo para os errados, os
despertos para os que estão a dormir, o abrir dos olhos aos que estão cegos,
ainda que a própria Doutrina diga que não é, de todo, assim.
Mas porque prevalece e triunfa a
psicografia face às demais formas de mediunidade? Além de ser a que mais conduz
a erros grosseiros, outros subtis, e embora sendo do conhecimento de todos que
os Espíritos, na sua maioria, não sabem mais do que nós, e que o conhecimento
científico tem que ser trabalho nosso, e é explicado porquê, a psicografia é
uma manifestação que se impõe na medida em que diz o que se pretende ler, o que
se pensa que precisa de ler. E aqui é que está o erro. Parte das psicografias
não o são mas apenas desdobramentos da personalidade dos médiuns, outras nem
isso, são puras invenções; quanto às que são dos Espíritos, convém ter em
consideração que há que saber examinar “(…)os
Espíritos, para ver se são de Deus,(…)”.(1 Jo 4:1), e este é um dos pilares
fundamentais da Doutrina.
A psicografia não é uma mediunidade do
Evangelho, mas fora dele. Espalhar a Boa-Nova, curar os enfermos, falar
línguas, expulsar os demónios é que são mediunidades evangélicas. Todavia, não
falta quem diga que o Centro espírita não tem como função curar ninguém. Sem
cair em exageros, pergunta-se: Quem impõe a barreira? Quem pode dizer o que
cura e o que não cura? Quem sabe qual a natureza e intensidade de uma doença?
Quem pode afirmar com certeza que os problemas do espírito e do corpo não
interagem, quando todos sabemos que é o contrário que se verifica? Que dizer
das somatizações, da fé, das curas em pessoas que estavam desenganadas dos
médicos? Quantos passaram pela provação do estado de coma e que reanimaram e
fazem a sua vida normal?
Neste momento, à semelhança dos
milagres, as psicografias criaram regras de conduta. Os milagres despertam para
novas formas de vivência, novos comportamentos, modificam usos e costumes. As
psicografias também. São os milagres do Espiritismo.
Milagres e psicografias tornaram-se
praticamente sinónimos: pretendem dar outro aspecto à realidade, ao quotidiano
físico, desvalorando-o, passando-o ao estatuto de erro, insuficiência, um mal
que só se justifica e explica através de uma outra manifestação que se lhe
sobrepõe e, portanto, lhe dá sentido.
Com o passar dos anos, os milagres foram-se
desfazendo, perderam importância. Deixaram de ser manifestações de fé. Com a
valoração do papel do homem/mulher na manifestação do religioso, com o
assimilar a vida material à vontade, ou pelo menos, à permissão de Deus, os
milagres perderam carisma. A partir do momento em que o ser humano começou a
perceber que ele é o portador de Deus na justa medida em que o seu pensamento
esteja com Ele, tudo se modificou. Os milagres tornaram-se, felizmente, uma
forma de não fé, tal como, em Espiritismo, quem ainda precisa de um suposto
texto vindo do além para sedimentar a sua fé é porque ainda coloca Deus em
segundo plano.
Uma Entidade pode ditar um texto, mas,
para nós, será sempre o texto de uma Entidade, tal como aquele que escapa de um
perigo tem aí o seu milagre. De facto, quem realmente crê em Deus tem na sua
própria existência uma prova, não precisa de mais nada.
Margarida Azevedo
Referência
Bibliográfica
(1 (1) SCHUTEL,
C., Parábolas e Ensinos de Jesus, O
Clarim, S.P. 1979, Preâmbulo, s/nº
de pág.
1 Jo 4, Bíblia de Jerusalém, Paulus, S.P., 2002