JESUS E A DEFESA DA LEI - Mt 5:13-48
Quando abrimos os evangelhos, é
fundamental ter em consideração três aspectos importantíssimos: Jesus não
escreveu nada; os evangelhos não foram escritos por apóstolos, mas por
redactores que fizeram um longo trabalho de pesquisa; o cristianismo estava longe
de ser constituído como religião.
Jesus, como judeu, dedicou a sua vida
pública à reformulação do judaísmo, numa reinterpretação do passado. Este o
compromisso principal com o seu auditório.
O homem e a mulher surgem na sua
singularidade, o que se traduz por uma valoração da subjectividade. A lei e os
profetas são importantes na medida em que são reinterpretados. Por outras
palavras, a objectividade da lei concretiza-se na subjectividade de homens e
mulheres na trama da sua realidade histórica, acrescentando-lhe sentido.
Em Mt 5 aprendemos que é impossível
separar a conquista do reino dos céus da boa prática da lei. Sendo esta
portadora de comportamentos normativos, baseados em saberes acumulados ao longo
de quase mil anos de história, atravessando períodos uns mais conturbados do
que outros tais como revoluções, congestões sociais, revoltas, períodos de paz,
ela foi sedimentando um conjunto de códigos que retratam a vivência histórica
mediante usos e costumes que vão sendo alterados com o tempo. Revestindo-se de
tradições orais, folclóricas e proféticas, e litúrgicas, sacerdotais e
sapienciais, a lei impõe-se como um manancial hereditário representativo de um
povo que se vê a braços com a missão de transmitir a existência de um Deus sem
nome nem representável figurativamente, mas que se manifesta na História. Assim
a Lei é também caminho que conduz a uma transcendência, o reino dos céus.
Ao falar para os seus
contemporâneos, submetidos ao jugo do Império Romano, Jesus fê-lo de forma a
remetê-los para um reforço da confiança na lei e nos profetas, como
representativos objectivamente fiáveis de situações análogas. Podem passar os
céus e a terra mas lei jamais, o que lhe confere, e aos profetas, autoridade e
uma referência, ao povo judaico identidade. É nesta base que se torna possível
a reinterpretação de Jesus em 21-48.
O apelo à perfeição em 48 não exorta, à
angelitude. Ele impõe-se como a sinopse de tudo o que foi dito nos versículos
anteriores. Cumprir a lei não é uma transcendência nem uma purificação ou
catarse, mas um dever que denota a presença de uma imanência que cada homem e
cada mulher transporta consigo. Podemos ser perfeitos neste mundo na
legitimidade do mesmo, tal como poderemos sê-lo igualmente noutro na sua
natural legitimidade. Cada mundo transporta perfeição. Jesus nasceu neste, é
para ele que veio reinterpretar o que está escrito desde os antigos,
transformando a tradição mecanizada em nova vivência toda consciente. Séculos
antes da Psicologia, de Freud e da Psicanálise, a “anos-luz” da descoberta do
inconsciente, Jesus antecipou redundantemente a separação do cumprimento de uma
norma “porque sempre foi assim” em prol de um cumprimento “porque tem que ser
assim”.
Não estamos em presença de um sentido ou
ideal de perfeição angélica ou beatífica, transcendente, mas no apelo ao
cumprimento da lei e dos profetas num sentido de imanência de Deus. É Deus que
se manifesta na História, não somos nós que nos manifestamos no Seu reino. Temos
as nossas raízes na terra, e não podemos pensar Deus sem essas raízes. O reino
dos céus começa na terra à qual devemos o pó de que somos feitos, das tradições
que são a nossa seiva.
Neste mundo, a angelitude não é uma
teleologia, mas sermos perfeitos na directa proporção em que Deus o é no “mundo”
Dele. De 21 a 48 somos confrontados com essa impossibilidade que, porém, se
torna possível na medida em que conseguirmos valorar coisas tão importantes
como a reconciliação, o não matarás, a relativização do altar em prol do
perdão. È de uma nova justiça que se trata, uma nova visão do justo e do bem.
Nesta perspectiva, querermos ser anjos seria terrível, pois a angelitude dirige
o indivíduo para o imaginário, o irreal, uma fé fantasiosa. Não dispondo de
exemplos concretos, conduziria a caminhos escusos bem como a esquecer o mundo
real.
Podemos dizer que Mt 5 é uma pedagogia em
cuja temática interagem a esperança do reino dos céus para os deserdados na
terra (v. 3-12), para os cumpridores da lei e respeitadores da tradição
profética (v. 13-20), juntamente com as reformulações de Jesus à lei (v.21-48).
Porquê todos no mesmo capítulo? Porque interagem, sendo impossível separá-los.
Em 17-19, Jesus dá o exemplo
submetendo-se Ele próprio à lei e aos profetas. O “revolucionário” Jesus não é
um fora-da-lei defensor de um estado caótico, remetendo o ouvinte para as
limitações da lei, as suas inflexibilidades, numa linguagem de séc. XXI, mas
perfeitamente enquadrada nos tempos de então. Pelo contrário, ela é vista por Ele
como a base estruturante da sociedade, caminho civilizacional que remete os
homens e as mulheres para uma transcendência, um reino que não é definido, mas
do qual vem dar testemunho ao ensinar como entrar nele. Há uma escatologia na
própria natureza da lei.
A nova justiça, que surgirá em 21-48, com
base em 17-19, onde é feita a advertência de que a violação de um preceito,
ainda que dos mais pequenos, torna esse homem ou essa mulher menor no reino dos
céus (V 19), é a reflexão de Jesus sobre o conceito de lei que Ele transporta.
A tradição é dada, vivê-la é reflectir sobre ela, trabalho de re-interpretação
com base nos valores que são transmitidos. Isto não anatematiza, mas
engrandece. As sociedades crescem a partir dos seus núcleos estruturantes, que a
lei acompanha naturalmente.
O tempo de Jesus, caracterizado por um
forte desalento, um povo ansioso por libertar-se do jugo da potência invasora, por
revoltas contra o Império Romano, encabeçadas pelos zelotas, principalmente, punha
em causa muitos dos preceitos, dos valores, da moral e da ética herdados. Que
fazer? Como olhar para os estilhaços de um povo monoteísta curvado sob o jugo
pagão? Que importância tem esta herança que não confere liberdade, que não dá
resposta a uma realidade tão cruel, submergente em princípios quem não eram os
seus? Vale a pena esta herança, ser o povo escolhido?
A exortação de Jesus remete o
estudioso, inevitavelmente, para uma reflexão sobre a importância do herdado
como ponto de referência. O Seu discurso é estimulante, comprometedor,
desconcertante. Remete para uma impossibilidade: Como é que eu vou conseguir
fazer isto? Mateus cinco ensina que Deus não está a sortear ninguém, que o Seu
reino não é um prémio conquistado por Lhe agradar a Ele e só a
Ele. A salvação não é um prémio dado à virtude porque ela não é premiável nem salvífica. A conquista de Deus não se faz dessa forma.
Ele. A salvação não é um prémio dado à virtude porque ela não é premiável nem salvífica. A conquista de Deus não se faz dessa forma.
É a terra que, na sua dupla vertente
lei e profetas, conduz até Deus na directa proporção em que soubermos tornar o
impossível possível.
É importante ter presente que a doutrina
de Jesus não estabelece uma clivagem com o Antigo Testamento. Em Mt 5:17, é
posto na boca de Jesus que a lei é para se cumprir incondicionalmente; o seu
papel não é destruí-la, mas submeter-se a ela. Só assim se lhe pode impor. É
impossível separá-lo do Judaísmo a que pertencia
Margarida Azevedo