domingo, outubro 26, 2014

JESUS E A DEFESA DA LEI - Mt 5:13-48


            Quando abrimos os evangelhos, é fundamental ter em consideração três aspectos importantíssimos: Jesus não escreveu nada; os evangelhos não foram escritos por apóstolos, mas por redactores que fizeram um longo trabalho de pesquisa; o cristianismo estava longe de ser constituído como religião.
            Jesus, como judeu, dedicou a sua vida pública à reformulação do judaísmo, numa reinterpretação do passado. Este o compromisso principal com o seu auditório.
O homem e a mulher surgem na sua singularidade, o que se traduz por uma valoração da subjectividade. A lei e os profetas são importantes na medida em que são reinterpretados. Por outras palavras, a objectividade da lei concretiza-se na subjectividade de homens e mulheres na trama da sua realidade histórica, acrescentando-lhe sentido.
            Em Mt 5 aprendemos que é impossível separar a conquista do reino dos céus da boa prática da lei. Sendo esta portadora de comportamentos normativos, baseados em saberes acumulados ao longo de quase mil anos de história, atravessando períodos uns mais conturbados do que outros tais como revoluções, congestões sociais, revoltas, períodos de paz, ela foi sedimentando um conjunto de códigos que retratam a vivência histórica mediante usos e costumes que vão sendo alterados com o tempo. Revestindo-se de tradições orais, folclóricas e proféticas, e litúrgicas, sacerdotais e sapienciais, a lei impõe-se como um manancial hereditário representativo de um povo que se vê a braços com a missão de transmitir a existência de um Deus sem nome nem representável figurativamente, mas que se manifesta na História. Assim a Lei é também caminho que conduz a uma transcendência, o reino dos céus.
            Ao falar para os seus contemporâneos, submetidos ao jugo do Império Romano, Jesus fê-lo de forma a remetê-los para um reforço da confiança na lei e nos profetas, como representativos objectivamente fiáveis de situações análogas. Podem passar os céus e a terra mas lei jamais, o que lhe confere, e aos profetas, autoridade e uma referência, ao povo judaico identidade. É nesta base que se torna possível a reinterpretação de Jesus em 21-48.
O apelo à perfeição em 48 não exorta, à angelitude. Ele impõe-se como a sinopse de tudo o que foi dito nos versículos anteriores. Cumprir a lei não é uma transcendência nem uma purificação ou catarse, mas um dever que denota a presença de uma imanência que cada homem e cada mulher transporta consigo. Podemos ser perfeitos neste mundo na legitimidade do mesmo, tal como poderemos sê-lo igualmente noutro na sua natural legitimidade. Cada mundo transporta perfeição. Jesus nasceu neste, é para ele que veio reinterpretar o que está escrito desde os antigos, transformando a tradição mecanizada em nova vivência toda consciente. Séculos antes da Psicologia, de Freud e da Psicanálise, a “anos-luz” da descoberta do inconsciente, Jesus antecipou redundantemente a separação do cumprimento de uma norma “porque sempre foi assim” em prol de um cumprimento “porque tem que ser assim”.
Não estamos em presença de um sentido ou ideal de perfeição angélica ou beatífica, transcendente, mas no apelo ao cumprimento da lei e dos profetas num sentido de imanência de Deus. É Deus que se manifesta na História, não somos nós que nos manifestamos no Seu reino. Temos as nossas raízes na terra, e não podemos pensar Deus sem essas raízes. O reino dos céus começa na terra à qual devemos o pó de que somos feitos, das tradições que são a nossa seiva.
Neste mundo, a angelitude não é uma teleologia, mas sermos perfeitos na directa proporção em que Deus o é no “mundo” Dele. De 21 a 48 somos confrontados com essa impossibilidade que, porém, se torna possível na medida em que conseguirmos valorar coisas tão importantes como a reconciliação, o não matarás, a relativização do altar em prol do perdão. È de uma nova justiça que se trata, uma nova visão do justo e do bem. Nesta perspectiva, querermos ser anjos seria terrível, pois a angelitude dirige o indivíduo para o imaginário, o irreal, uma fé fantasiosa. Não dispondo de exemplos concretos, conduziria a caminhos escusos bem como a esquecer o mundo real.
Podemos dizer que Mt 5 é uma pedagogia em cuja temática interagem a esperança do reino dos céus para os deserdados na terra (v. 3-12), para os cumpridores da lei e respeitadores da tradição profética (v. 13-20), juntamente com as reformulações de Jesus à lei (v.21-48). Porquê todos no mesmo capítulo? Porque interagem, sendo impossível separá-los.
Em 17-19, Jesus dá o exemplo submetendo-se Ele próprio à lei e aos profetas. O “revolucionário” Jesus não é um fora-da-lei defensor de um estado caótico, remetendo o ouvinte para as limitações da lei, as suas inflexibilidades, numa linguagem de séc. XXI, mas perfeitamente enquadrada nos tempos de então. Pelo contrário, ela é vista por Ele como a base estruturante da sociedade, caminho civilizacional que remete os homens e as mulheres para uma transcendência, um reino que não é definido, mas do qual vem dar testemunho ao ensinar como entrar nele. Há uma escatologia na própria natureza da lei.
A nova justiça, que surgirá em 21-48, com base em 17-19, onde é feita a advertência de que a violação de um preceito, ainda que dos mais pequenos, torna esse homem ou essa mulher menor no reino dos céus (V 19), é a reflexão de Jesus sobre o conceito de lei que Ele transporta. A tradição é dada, vivê-la é reflectir sobre ela, trabalho de re-interpretação com base nos valores que são transmitidos. Isto não anatematiza, mas engrandece. As sociedades crescem a partir dos seus núcleos estruturantes, que a lei acompanha naturalmente.
O tempo de Jesus, caracterizado por um forte desalento, um povo ansioso por libertar-se do jugo da potência invasora, por revoltas contra o Império Romano, encabeçadas pelos zelotas, principalmente, punha em causa muitos dos preceitos, dos valores, da moral e da ética herdados. Que fazer? Como olhar para os estilhaços de um povo monoteísta curvado sob o jugo pagão? Que importância tem esta herança que não confere liberdade, que não dá resposta a uma realidade tão cruel, submergente em princípios quem não eram os seus? Vale a pena esta herança, ser o povo escolhido?   
            A exortação de Jesus remete o estudioso, inevitavelmente, para uma reflexão sobre a importância do herdado como ponto de referência. O Seu discurso é estimulante, comprometedor, desconcertante. Remete para uma impossibilidade: Como é que eu vou conseguir fazer isto? Mateus cinco ensina que Deus não está a sortear ninguém, que o Seu reino não é um prémio conquistado por Lhe agradar a Ele e só a
Ele. A salvação não é um prémio dado à virtude porque ela não é premiável nem salvífica. A conquista de Deus não se faz dessa forma.
            É a terra que, na sua dupla vertente lei e profetas, conduz até Deus na directa proporção em que soubermos tornar o impossível possível.
É importante ter presente que a doutrina de Jesus não estabelece uma clivagem com o Antigo Testamento. Em Mt 5:17, é posto na boca de Jesus que a lei é para se cumprir incondicionalmente; o seu papel não é destruí-la, mas submeter-se a ela. Só assim se lhe pode impor. É impossível separá-lo do Judaísmo a que pertencia


Margarida Azevedo

sexta-feira, outubro 17, 2014

CURSOS, UMA PRAGA SEM FIM À VISTA


            De há uns anos a esta parte, o Espiritismo tem vindo a ser invadido por uma epidemia de cursos. Há-os para médiuns, para dirigir grupos, para falar em público, para evangelizar… Tudo baseado na respeitável base do muito amor e carinho, sem olvidar o muito fraternal.
            Porém, e é o que temos constactado, esses cursos só têm validade dentro dos Centros onde são leccionados, salvo raríssimas excepções, tão raras que as não conhecemos, mas como não é possível ter informação sobre tudo, pomos a hipótese remota de alguma existir algures.
            Isto prova que este é mais um dos aspectos em que os Centros não têm qualquer articulação entre si. Se é certo que devem ter a sua autonomia, o que não significa isolamento, não é menos verdade que devem partilhar experiências e conhecimentos.
            Ensinar não é propriamente uma brincadeira. Trata-se de uma actividade direccionada ao âmago da pessoa. Um trabalhador pode ter dezenas de anos na Doutrina, mas não ter capacidade para ensinar, nem mesmo conhecimentos. Além disso, uma coisa é saber para si, outra é saber transmitir o que sabe.
O que estamos a verificar, lamentavelmente, é o repentino entupimento dos Centros com cursos de tudo e mais alguma coisa, na sua maioria baseados em psicografias cheias de erros. Esta onda, que rejeita as bases científicas como nunca se viu, tem como alvo abater todos os que não vão em conversa de pseudo-professores, que respeitam a Doutrina e apelam a sessões mais kardecistas.
Ao abandonarem as obras da codificação, porque não têm conhecimentos para as adaptarem aos tempos que correm, os Centros viraram-se para os cursos baseados noutras obras que qualificam de espíritas, só porque são psicografias, sujeitando a Codificação ás mesmas, tornando-as obras de referência. Rejeitando os escritos de estudiosos reconhecidos que, no seu conjunto, se debruçaram sobre os grandes temas bíblicos, como Cairbar Schutel, ética e espiritualidades, como Pietro Ubaldi ou Léon Denis etc., transmitem os que lhes parece sob o pretexto charlatão de que a Doutrina se vale a si mesma, tem pés para andar sozinha. Nada mais aberrante.
Desconhecem, esses falsos professores, que não existem doutrinas isoladas, que há contágios sociológicos, ideais políticos comuns; que o ser humano é, por natureza, o mais imitador de todos os animais, já o dizia Aristóteles e, portanto, o seu aprendizado só é possível com o outro, isto é, na partilha de ideias.
            Quem dá esses cursos? Qualquer trabalhador? Não seria correcto, pois nem todos estarão à altura de tão íngreme tarefa. Quem é aluno? Qualquer pessoa? De forma alguma, pois tem que haver uma base doutrinária, um esclarecimento mínimo.          Vejamos: uma pessoa que irrompe pelo Centro num Sábado à tarde, cheia de problemas ou não, não pode, de forma alguma, ingressar num grupo de estudos. Seria o mesmo que um doente ter que ingressar num curso de Medicina para ser tratado. Essa pessoa tem que assistir aos trabalhos de evangelização durante o tempo que lhe for necessário a fim de se inteirar do que é o Espiritismo. Ademais, há que ter em consideração que os próprios trabalhadores da Casa não estão totalmente imunes a contágios, não possuem um escudo invisível, a toda a prova, que os torne isentos de caírem em desaire. Quanto mais e melhor preparado estiver o futuro aluno, melhor e mais fácil será o trabalho dentro dos cursos.
            Por outro lado, as sessões de evangelização já são, por si só, lições grandiosas, quando razoavelmente feitas, é claro. Mas este é outro problema que, sequencialmente, arrasta consigo todos os outros. Ao faltar o estudo doutrinário, como anteriormente referimos, as sessões de evangelização empobrecem.
            Há muitos anos atrás, as sessões eram autênticos bálsamos espiritualizantes, passes de limpeza psico-magnética, palavras reconfortantes. O discurso era tão eloquente, na sua simplicidade e na sua veracidade doutrinária, era tão coração e razão, que os Guias dos trabalhos conseguiam utilizar os médiuns, nos subsequentes trabalhos de desobsessão, realizando o que podemos chamar de milagres. O maior apelo era ao da nossa modificação intrínseca, pois ninguém ensina ninguém a ser médium, nem lhe põe a verdade no coração se não estiver receptivo. O Espiritismo não é uma colagem, mas uma luta constante contra as nossas próprias fraquezas, dúvidas, pensamentos deturpados.
            Eram outros tempos, os dos grandes tribunos que, sem saudosismos fúteis e sem desqualificar quem nestes tempos bem trabalha, temos de referenciar. A eles devemos um reconhecido “Obrigado!”.        
Assim, neste efeito bola de neve, desconhecendo as bases da Doutrina, recorrem aos autores do seu agrado duvidoso, transmitindo a sua ignorância doutorada, espalhando-a, sem qualquer respeito nem dignidade. Cursos de modificação interior ainda não vimos, nem de anti-maledicência, nem de fraternidade, nem de propósitos ecuménicos.
O resultado é o que se vê. Pegam em meia dúzia de conceitos, utilizam-nos a seu bel-prazer, e arrogam-se pomposamente em professores. Instalou-se a ignorância, quando o Espiritismo tem a nobre missão de a combater, e, assim, é de mau astral quem diz o que por ora foi dito.



            Margarida Azevedo