NATAL OU A FESTA DA ENCARNAÇÃO LIBERTADORA
A liturgia diz-nos que o Natal
celebra o nascimento de um messias, ou um salvador, anunciado há muito nas
Escrituras. Numa linguagem actual, ele seria o líder espiritual enviado por
Deus, o ser superior que viria consolidar a promessa de libertar o seu povo da
opressão, um ser acima de todos os seres, o super-homem.
Outrora, com Moisés, houvera uma
primeira libertação que consistiu em deslocar as doze tribos, que ainda não são
propriamente um povo, para o Monte Sinai, uma terra inóspita.
Essas tribos, porque movidas por um natural
sentimento de esperança, certamente sonharam com um novo paraíso, uma terra de
abundância. O que aconteceu, porém, foi o contrário, e a esperança depressa se
desmoronou, a ponto de surgirem revoltas entre as tribos e no seio das mesmas. Alguns
chegaram a pensar que a escravatura era preferível à liberdade, pois com fome
dificilmente a liberdade faz sentido, e no Egipto, embora escravos, não lhes
faltava o alimento indispensável à vida.
Esta questão, interessante, tem-nos acompanhado
ao longo dos séculos: escravatura de estômago aconchegado ou liberdade com fome!
Como equilibrar o prato da balança de ambos os valores, a liberdade e os bens
materiais, no complexo agir do quotidiano!? Se faltar a esperança, o grande
móbil das acções, caímos perdidos na desilusão e tornamo-nos construtores de
maus pendores, donde o pior é, sem sombra de dúvidas, a subjugação ao opressor
- os Hebreus duvidaram do seu Deus libertador, construíram um bezerro de ouro, ao
qual se submeteram na fé e adoraram em orgias.
Todavia, o novo libertador não
precisaria de transportar o seu povo para outra região, separar as águas,
realojá-los noutra montanha, adaptá-lo a outra geografia mediante outros fenómenos.
Agora, era esperado que libertasse o seu povo do invasor, o Império Romano. Seria
rei, seria líder político e seria líder espiritual. Já não é o libertador à
semelhança do êxodo, da condução de uma massa gigante de gente para uma terra
identitária.
Contrariamente, este novo libertador, o
Messias, toma o seu povo como exemplo da humanidade, conduzindo-o a uma viagem
introspectiva, e com ela a uma nova forma de se pensar a si próprio. O povo
escolhido não pode esperar que caia do céu um novo maná. Ele precisa de
repensar a sua fé, no sentido da universalização da máxima de que Deus é Pai da
Humanidade.
Ora, se nos ativermos no complexo e
trivial mundanismo da política, complexo porque é nela que se jogam os dados
dos interesses, trivial porque, em face da complexidade do espírito que nos
define, ela constitui-se em curriculum onde construímos leis que nos vão
emancipando da força do mais forte, aspecto ainda tão vergonhosamente elementar
da nossa existência, a Encarnação de Jesus veio despertar para um novo conceito
que viria a elevar a humanidade a um expoente jamais ultrapassado: o conceito
de Pessoa.
Assim, quando falamos de Natal, a que é
que nos referimos? A um grande profeta? É incontestável. Mas só isso? O profeta
veio elevar a humanidade ao conjunto das pessoas de todo o mundo: judeus e
pagãos, gregos e romanos, homens e mulheres, adultos e crianças. Todos são pessoa na medida em que são igualmente caminheiros
nos trilhos que conduzem a Deus, sujeitos a semelhantes vicissitudes. Mas não
só. A pessoa sobrepõe-se ao magro conceito de religião, não lhe é submissa.
A pessoa, o ser que muito ama, ou esta
humanidade, é capaz de ascender a Deus mediante a sua história e apesar da mesma.
Há na Encarnação uma mudança radical desse conceito. Isto é, se Deus se
manifesta na História, nós podemos mudar o seu rumo, pois compete-nos a tarefa
de conduzir os seus desígnios, porque temos a nossa quota-parte de
responsabilidade, não somos marionetas.
Isto poderia acontecer sem a Encarnação?
Numa humanidade que se procura a si própria, que reclama por um sinal,
certamente que não. Entre valores ainda periclitantes, enquanto valores e
enquanto vivência dos mesmos, as cristologias que os evangelhos nos despertam
são reveladoras de um Messias que, também Ele, precisa de experimentar a
humanidade ou a finitude, para através dela mostrar o caminho para uma nova
possibilidade: o Reino de Deus.
Assim, o Cristo também se mostra, também
tem corpo, um rosto, é tangível e conhecido. Por seu intermédio, mansuetude
impõe-se como valor.
Se existe a incontestável necessidade de
ascendermos a Deus, também o Seu filho superior nos mostrou a necessidade desse
Deus se nos revelar por seu intermédio, a fim de sermos conduzidos por uma
Encarnação superior. Não é Jesus em carne e osso que tal nos revela, mas o
divino que nele se manifesta, na revelação de que a natureza humana é capaz de
ascender a Deus e, simultaneamente, ser Sua testemunha.
Assim, a humanidade não mais será o
conjunto dos condenados, fatalmente submetidos a um sofrimento inato,
manipulado na trama dos interesses da política inescrupulosa, nem na tensão
permanente entre classes, mas das pessoas, na medida em que todos e todas
transportam em si a chama do Deus libertador. Não é o Império Romano da
História que nos interessa, embora alguns oficiais do Império tivessem fé a
ponto de maravilhar Jesus. A libertação não vem pelas armas, mas pela paz.
O Natal não é uma mensagem do outro
mundo, do astral ou do além; o Natal não faz parte do pensamento mágico onde
tudo se transforma, sem intervenção do humano ou em contraste com as Leis da
Natureza. Também não é um discurso aprisionado num templo, numa confissão ou em
qualquer discursividade fora do nosso comum raciocínio. O Natal não é um transe
mediúnico.
O Natal é a maior libertação jamais
concedida por Deus à humanidade, porque este profeta é o profeta do amor por
excelência, e maior que o amor não há.
Por isso Jesus teve a autoridade única
para afirmar a relatividade, a inconsequência, a opacidade do nosso pensamento.
Mas também nos mostrou como o mesmo, exactamente o mesmo, movido em outra
direcção, no móbil de outros interesses, pode conduzir ao maior expoente de
liberdade jamais imaginado.
Já não somos nós que queremos ser deuses
a partir de imperadores inesquecidos na imortalidade terrena que a História se
encarrega de perpectuar, ou portadores de grandes capacidades espirituais; já
não queremos ser deuses dos impérios ou da sabedoria, quais magos do Egipto. Agora
é este Jesus quem nos convida a outra realidade infinitamente mais sublime:
sermos protagonistas do amor de Deus.
A vida não é uma tragédia. Ela é caminho
para um horizonte de esperança, não saudosista de um paraíso perdido, mas de
Pessoas perdidas na alegria da certeza de um paraíso por encontrar.
A simplicidade da manjedoura coincide
com a necessidade emergente de um amor universal que, com este profeta,
ultrapassa as fronteiras de Israel, mas é com a sua pré-história que esta
história maravilhosa começa. Vivemos o encanto de um conto que ainda não vai a
meio. E este judeu ainda tem muito que contar…
Margarida Azevedo