IDENTIDADES DO UNIVERSO ORANTE
Ao
tempo de Jesus, o Judaísmo não tinha um centro de ortodoxia. O próprio Templo
não era um centro unificador ideológico. A ele convergiam os grupos mais
diversos, tais como baptistas, zelotas, farizeus, aos quais se juntou um novo
grupo, os cristãos.
Para
além das abordagens teológicas que caracterizavam cada grupo, face à Lei e aos
profetas, bem como as singularidas ritualísticas entre si (os banhos rituais
entre os essénios, por exemplo), o modo de orar era um elemento identitário
característico. Orar com os essénios não era o mesmo que com os zelotas.
Este
elemento, porém, não caracteriza o orante quanto ao “quem é”, mas quanto ao “como
é”. “Diz-me com quem oras, dir-te-ei como és”, isto significa que
o modo de orar é identitário da espiritualidade do orador. Dito de outro modo,
“Com quem oro é como eu sou”:
essénio, zelota, cristão, etc.
Ao
“quem é” responde-se: “É X, o filho de Y;
“É A, mulher dos filhos de C”; “É D, da localidade Z”. Há o recurso ao
exterior a si para identificar uma identidade parcial, tal como tribo, família,
nacionalidade e naturalidade.
Ora,
o ”como é” é mais complexo do que o “quem é”. O “quem é” pertence ao nome, ao que
é discriminável no espaço e no tempo; o “como é” fala de uma natureza que
ultrapassa as questões do nome, é uma identificação fora da impressão digital
familiar, tribal ou religiosa.
Pergunta-se:
O que é orar? É sentir estadios de consciência; sensações inefáveis,
desapossar-se de si; é acreditar que algo vai acontecer e que se gosta; é estar
espectante; é, basicamente, mudar o sentido às palavras por meio de uma vontade.
Orar é sentir forças e esperar que elas ajam sem barreiras.
Por
meio dessa vontade, o orante apela simultaneamente à transformação do mundo. Por
isso, a oração é tanto mais sublime quanto mais se espalha, transpondo o débil e
limitado horizonte do orante. Como é que se dá esta passagem? De que forma o “como
é” se transcende e se ulrapassa? Na oraçâo, há uma possessão característica,
pois aquele que ora sente-se possuído por forças. Ao expor-se-lhes, surgem
revelações donde a maior é tomar consciência de que algo infinitamente grande
se minimiza descendo ao muito pequeno, num momento de uma intimidade que se não
expressapor palavras, fazendo-as surgir, num sem sentido, o mesmo é dizer, num
sentido que não lhes pertence, num ímpeto de dizer o indizível. O ”como é” une-se ao universo de tal forma que este toma
as dimensões do seu coração.
Não
se pense que isto tem a ver com o universo mágico. Não se trata de uma coisa
passar a ser outra, mas de se manter a mesma, porém com outro modus operandi. Isto é, os afectos
exortam o “como é” a que, fervorosamente e por meio de práticas que agradem ao
Absoluto, suplique a Sua presença junto de si e do mundo. O material e o
imaterial encontram-se no sem sentido das palavras do “como é”.
Este
sente-se, por isso, interprete no universo discursivo do outro/novo sentido das
palavras, o que para ele significa poder. A palavra pode curar, libertar,
purificar, apoucar o mundo à palma da sua mão.
Será
o universo “como é” um mundo de fantasias, criador de super-poderes, paradigma
de inconscientes perturbados ansiosos de liderança? Para bem das nossas
consciências, entende-se por oração um discurso para o bem. Se com Jesus temos
o Pai Nosso, oração identitária dos cristãos, que põe em cheque a dimensão
hipócrita da vida, e acaba radicalmente com o sistema religioso da troca, temos,
por outro lado, como complemento, o cosmopolitivismo da força da palavra, pois
o Pai Nosso é uma oração cósmica e passível por ser dita em qualquer credo.
Isto é, a cordialidade e o bom entendimento entre todos os que vivem debaixo do
Sol é elemento purificador tão forte que dá sentido e força à oração. É
identitária para os cristãos, mas é universal na boca do seu profeta. Como ela
aprendemos que orar e estar de mal com alguém é anular a força da oração e,
reciprocamente, o que é pretendido atingir.
Daqui
se infere o quanto ainda estamos longe de tais vivências. A nossa fragilidade
leva-nos a cair numa lógica implacável: Dar a Deus para que Deus dê. Logo, quem
mais dá mais recebe; o outro é mau, não posso aproximar-me dele. Erro puro.
Não
somos fatalmente infelizes, somos cruelmente hipócritas. As longas preces são
uma teatralização. A oração em grupo transformou-se num espectáculo para atrair
fiéis. Para não se tornarem enfadonhas e despropositadamente repetitivas, o
ministrante faz-se auxiliar de equipamentos apelativos.
Além disso, o universo orante não é compatível com o negócio.
Ninguém paga a ninguém para orar porque todos nascem preparados para o fazer. Isto
significa que a oração é o discurso de um particular que se transcende. Esta
força inata impõe-se por uma espiritualidade centrada na misericórdia da
Divindade, que a todos dá os meios salvíficos. Assim, Aquele a Quem se ora não
nos ama por muito orarmos, nem por muito lhe ofertarmos sacrifícios e outras oferendas.
Ele ama-nos antes de nós O amarmos, e porque somos amados conseguimos amar.
Temo-Lo dentro de nós.
É
este o apontamento a registar no nosso coração. Estamos perante um novo registo
existencial que consiste numa mudança radical, de tal forma que corta pela raíz
com a lógica negocial.
Com
Jesus, inaugura-se o dom do amor como a transcendência da palavra que, na oração,
tem o poder ilimitável do Bem.
Margarida
Azevedo
Consultar: Mt 6: 9-13; Lc 11: 2-4.
A fim
de uma maior inteligibilidade do Pai Nosso, aconselhamos as leituras de Mt,
caps. 5-7; de Lc, cap. 11.
Por fim, se o desejar, faça um estudo
comparativo de ambos. Sugerimos que atente, entre outros aspectos, nas diferenças
vocabulares; enquadramento sociológico; importãncia do grupo de João Baptista e
dos discípulos de Jesus; o ambiente teológico.