QUANDO A FÉ É UM PROBLEMA
Quando
abordamos qualquer texto religioso dividimos a temática em dois grandes grupos,
a saber, verdades de fé e verdades históricas. Por exemplo, que Jesus era um
pregador itinerante é de um facto histórico, que subiu ao céu em corpo é um
facto de fé. O primeiro é incontestável, o segundo já não. Com isso, estamos, à
partida, a afirmar que fé e História
giram em polos opostos.
A
fé não começou com com uma revolução no dia tal, no ano tal; não amadureceu a
partir de determinado acontecimento histórico. A História pode narrar actos de
fé, mas jamais terá acesso à interioridade da fé de cada homem/mulher. Fé é
fonte, facto histórico é a água que dela jorra. A primeira é o invisível, a
segunda o que se vê, ainda que distorcido, permeabilizado, perigosamente, pelos
pressupostos. Todavia, importantíssimos, pois servem para tomarmos consciência das
posições em que nos fomos colocando ao analisar os factos, ao longo do tempo,
Etimologicamente,
o pressuposto existe antes da observação, é um pré-suposto. Ele agrupa
informações segundo critérios e mediante objectivos precisos, visando fins
pré-determinados. Os factos objecto da História não foram observados pelo
historiador, e ainda que o fossem a objectividade deste como observador estaria
sempre permeabilizada pelos seus pressupostos, tais como a cultura. Por isso, a
honestidade intelectual é a pergunta que se faz ao outro, resultante da preocupação
ética em descobrir a verdade.
Por
exemplo, há quem pense que se vivessemos no tempo de Jesus percebe-lo-íamos de
forma mais objectiva e seríamos melhores cristãos. Puro engano. A nossa
observação não significa reflexão. Um profeta não se impõe pelo facto de ser
observado nos seus actos milagrosos, nem no seu comportamento social, mas na
mensagem que transporta e que, naturalmente, exterioriza. O comportamento
social de Jesus foi aceite por bem poucos, e mesmo por estes, com relutância,
já o seu discurso revolucionário, crítico, arrastou multidões das quais somos
herdeiros.
A
mensagem dos profetas só atinge um valor pedagógico e ético quando amadurecida
no coração dos discípulos. Ora, pensar Jesus hoje, passados dois mil anos, é
mais objectivo do que ouvi-lo. A humanidade amadureceu na sua experiência de
fé. Já correram rios de tinta de interpretações dos evangelhos, Podemos colocar as mesmas questões, a nossa
existência pode continuar a girar em torno da procura da eternidade, dos dois
grandes vértices amor e morte, mas a nossa capacidade de interiorização está
carregada de vivências espirituais que fomos acomulando ao longo de séculos.
Não esqueçamos que podemos ter milhares de encarnações, mas apenas dois mil
anos de cristianismo, o que, no contexto geral, é pouquíssimo. Quando dizemos
que a fé está a dar os primeiros passos, proferimos uma grande verdade, pois
que a liberdade de fé tem a idade de Jesus, na terra. Lembremo-nos de que o que
uma criança pensa do pai aos cinco anos de idade não é o mesmo que aos trinta; depois
do seu falecimento o filho lembra-o naquilo que lhe transmitiu e, não raro,
afirma: “Hoje é que eu compreendo o meu pai, quando me dizia aquelas coisas!”
A
fé é sempre o móbil, pois não tem a ver com aspectos religiosos, apenas. Para o
Espiritismo, por exemplo, a fé tanto pode ser humana como divina. Crer que se é
capaz de conduzir uma nação a determinado estado civilizacional, mediante a
melhoria das condições do trabalho, não é a mesma coisa que incutir nos fiéis a
necessidade de orar para agradar a Deus. Ainda que ambas possam estar
implicadas, a luta sindical pela melhoria salarial não é do âmbito da prece,
onde é solicitado a Deus que tudo na vida corra bem. O coração bombeia sangue,
sem o sangue o coração não tem nada para bombear.
Há
quem pense que o sofrimento tráz mais fé, ou que os problemas comuns da vida
são responsáveis por um amadurecimento da fé. Se assim fosse, não havia
revoltas contra Deus, descrenças associadas a situações problemáticas; não
haveria desilusões religiosas nem ninguém punha em causa aquilo em que sempre
acreditou. Sofrimento e fé, um binómio perigoso. Dito de outro modo, o
sofrimento gera a crise da fé cujo desenlace é um tiro no escuro, de tal forma
que se se aceitar que o primeiro desenvolve a segunda, então esta converte o
ser humano no cínico da criação. Ter fé porque sofre, ou não ter fé pelo mesmo
motivo são ambas indesejáveis.
A
fé baseia-se sempre num encontro de contas com o deus. Quem é que tem fé se tal
nâo se traduzir num universo de esperança, que é sempre uma benesse? Jesus
falou de um reino reservado aos bem-comportados na terra. A esperança do
cristão é a de entrar num reino de suprema felicidade onde o espera um
banquete. Qual o móbil? O amor. Para a Psicanálise, estamos perante uma
situação erótica: felicidade eterna num banquete em alta festança é o mesmo que
uma eternidade onde existe um prazer sem limites numa abastança sem fim.
Assim sendo, por mais voltas que se lhe dê, a
fé, sem um sistema de trocas, perde-se. Não há mesmo nada que se lhe iguale.
Pode-se perdoar a ingratidão de alguém que não retribuiu uma benesse, mas muito
dificilmente ao deus que não deu a protecção esperada. Na fé religiosa não há
mãos vazias, não é perdoável a dívida proteccionista do deus, e não nos parece que os deuses durmam
descansados sem o perdão dos humanos. “ Eu
dou-te e tu dás-me.”, e estamos conversados! Por isso, um deus que não retribui não é digno de ser adorado, “Já não acredito em ti!”, e a fé,
intransigentemente, parte para outro.
Ora,
chegados ao Deus único, o Supremo, o que é que mudou? Nada. Continuamos a pedir
a este Deus o mesmo que aos anteriores: a imortalidade, o amor, a felicidade, a
abundância, a riqueza, tudo o que traduzimos por protecção. O que é que
esperamos deste Deus? Tudo, ou seja, uma resposta favorável a esses pedidos. Se
os outros não deram, então este dará, de certeza, caso contrário onde está a
sua superioridade?!
Só que este Deus não é conquistável pelo ouro,
o que tem levado séculos a perceber, a fé para com os outros deuses deixou
marcas profundas.
Seja
num caso ou noutro, a experiência da fé transcende o espaço/tempo. Ela é
sintomática de uma angústia inerente à condição humana e da qual emergem grandes
questões: “Nascemos convertidos?A quê?”
Por outras palavras: Qual é o nosso
universo religioso e qual a sua raíz? Preciso
de alienar-me da História para viver uma realidade salvífica que, por seu lado,
pode estar desajustada com os meus anseios, os meus pressupostos escatológicos?
Os últimos tempos serão os tempos do fim
da História, ou, contrariamente, o fim de uma soteriologia (teoria da salvação)
e ingresso numa bem-aventurança em que já não haverá nada para bem-aventurar,
uma vez que são atingidos os tempos que a História não abrange, um tempo fora
do tempo? Será que, uma vez atingido
o alvo da fé, teremos a consagração da História? Que sentido terá a fé, ou em
que moldes esta se manifestará quando ou se atingirmos um ponto que seja da tão
almejada felicidade? Por outras palavras, a fé só faz sentido numa espécie de
contrato com o invisível?
Quando
dizemos que cremos em Deus, a que é que nos referimos? A um Ser que não tem
história? Karen Armstrong escreveu a obra monumental “História de Deus”, um Deus mas mais próximo de nós do que os
outros. Aquele de que Jesus apenas nos informou de como entrar no Seu reino;
Aquele que fez silêncio às nossas palavras e aos nossos discursos. Os outros
podem ser caminhos para Este, mas sentimos que Este nos interroga na
consciência, que por sua vez é bastante turbulenta.
Assim,
perante os acontecimentos da História, precisamos de decidir sem demora como
orientar a nossa fé; precisamos de traçar novas vias. A História é aqui e
agora, a salvação é hoje, o Reino de Deus está na terra, a cada passo, a cada
gesto, em cada palavra. O banquete de que falava Jesus começa agora, aqui,
já.
O
acto de fé confere ao humano a sua dignidade. Não crer significa conhecer sem
objectivo. De que vale um conhecimento qualquer, de que serve ser competente em
determinada área se não há um seguimento de fé concomitante? Só pela fé rumamos
ao Apocalipse, a revelação divina.
Margarida
Azevedo
Consultar: ARMSTRONG,
K., Uma
História de Deus, Temas e Debates, Lisboa, 1999.