NÃO QUEIRA COMPORTAR-SE COMO UM ANJO
Não
queira comportar-se como um anjo, seria o mesmo que um cavador querer dançar
ballet, ou então um minúsculo pirilampo armar-se em candeeiro de pé alto.
Podemos ser alvo das mais diversas tentações, a de querer ser rico é a mais
comum, mas a de querer comportar-se como os anjos é a pior de todas.
A
imaginação, na sua fértil epopeia, cria a fantasia, não raro o delírio de supor
que aqueles que estão muito acima de nós são como os imaginam. É certo que
temos que ser compreensivos para com a natureza humana, mas fazer do delírio a
realidade é, além de exagerado, perigoso.
Tal
atitude cria máscaras, remetendo o factor religioso para a fantasia do “não eu”,
isto é, uma procura incessante da identificação com algo que não é mais do que
fruto da imaginação. De um ponto de
vista sociológico e psicanalítico, chamamos a isto tão simplesmente o ridículo
da crença, porque fora do contexto social em que se encontra, sem viabilidade
porque inacessível ao outro, que vulgarmente encara como uma ameaça, e com um
discurso que toca o alucinado; muitos usam roupas voláteis e claras, fazem jejuns prolongados, os rostos revestem-se de
candura e tornam-se amarelados, os corpos magricelas, sorrisos contidos porque
supõem que os anjos não riem a bandeiras despregadas, ingenuidades bucólicas
defensoras da paradisíaca e sã vida selvagem, etc.
Viver
o que se não é significa excluir-se a si mesmo das suas responsabilidades, a
todos os níveis, estar fora da realidade, no fundo, uma vida que não passa de
um projecto, deixando o presente passar ao lado com toda a sua riqueza.
A
preocupação em ser útil faz de cada um o próximo do outro. Sentir-se implicado
no crescimento e no progressso do meio, ser solícito e saber que contam consigo
é, pensamos, a melhor forma de seguir o caminho que conduzirá, um dia, à
angelitude. Porém, fazê-lo sempre enquanto humano e muito humano, porque é o
que isso efectivamente se é, e não nos é possível ser de outro modo.
O
ímpeto de angelitude significa a loucura de uma exigência de espiritualidade
que ainda não é para nós. Criando o marasmo, torna insignificantes as complexas
exigências da sociedade moderna, culpabiliza os homens e as mulheres por serem
simplesmente humanidade em todas as suas acções diárias.
É
bom não esquecer que, cá neste mundo, ainda há tanto por fazer… Já pensou que o
progresso científico e tecnológico tem conduzido as sociedades a índices de
violência jamais alcançados? A racionalidade exagerada tem precipitado o
planeta na insustentabilidade? O que é mais importante: defender o humano, a
sua integridade, ou construir projectos de anjos, moldes de pureza formatados à
míope medida de quem despreza a Natureza, os Animais, a Cultura, a Ciência, na
sua verdadeira acepção, a saber, a melhoria das condições de vida para todos?
Mais,
como crentes, o que é que tem mais peso: provar a existência de Deus, dos
anjos, como estes vivem, se têm sexo ou são assexuados, que há algo que
sobrevive à morte, ou o modo como nos comportamos num mundo criado com tudo
para sermos minimamente funcionais e felizes, onde consigamos, com sucesso,
fazer escala num dos muitos patamares evolutivos? Não responda, pense primeiro.
Com
os evangelhos, aprendemos que conquistamos o Reino de Deus mediante o modo como
vivemos a nossa espiritualidade e o modo como estamos no mundo. O Sermão da
Montanha (Mt 5-7) e o Sermão da Planície (Lc 6: 20-26) abrem-nos o entendimento
desconcertando-nos, indiciando o modo como entrar numa humanidade em que ricos
e pobres têm lugar idêntico no Reino de Deus, mediante um universo de esperança
apoiado no modo como é vivenciada a relação com a riqueza, a pobreza, a alegria
e a tristeza, mas muito especialmente na projecção em horizontes mais vastos
que não os da nossa casa. São textos de um forte apelo existencial que visitam
a nossa vida onde todos cabem, isto é, não aprisionam sob um contexto ético
determinado, mas que superam todas as éticas. Não interessa ler o texto, mas
relê-lo se, como tal, nos projectarmos para uma vivência que faz da felicidade
o seu maior objectivo.
Deus
nos livre de querermos comportar-nos como anjos, daríamos uma má imagem de tais
mercês e perderíamos o comboio da humanidade.
Margarida
Azevedo