sábado, janeiro 30, 2016

NÃO QUEIRA COMPORTAR-SE COMO UM ANJO


 

Não queira comportar-se como um anjo, seria o mesmo que um cavador querer dançar ballet, ou então um minúsculo pirilampo armar-se em candeeiro de pé alto. Podemos ser alvo das mais diversas tentações, a de querer ser rico é a mais comum, mas a de querer comportar-se como os anjos é a pior de todas.

A imaginação, na sua fértil epopeia, cria a fantasia, não raro o delírio de supor que aqueles que estão muito acima de nós são como os imaginam. É certo que temos que ser compreensivos para com a natureza humana, mas fazer do delírio a realidade é, além de exagerado, perigoso.

Tal atitude cria máscaras, remetendo o factor religioso para a fantasia do “não eu”, isto é, uma procura incessante da identificação com algo que não é mais do que fruto da imaginação.  De um ponto de vista sociológico e psicanalítico, chamamos a isto tão simplesmente o ridículo da crença, porque fora do contexto social em que se encontra, sem viabilidade porque inacessível ao outro, que vulgarmente encara como uma ameaça, e com um discurso que toca o alucinado; muitos usam roupas voláteis e claras, fazem  jejuns prolongados, os rostos revestem-se de candura e tornam-se amarelados, os corpos magricelas, sorrisos contidos porque supõem que os anjos não riem a bandeiras despregadas, ingenuidades bucólicas defensoras da paradisíaca e sã vida selvagem, etc.

Viver o que se não é significa excluir-se a si mesmo das suas responsabilidades, a todos os níveis, estar fora da realidade, no fundo, uma vida que não passa de um projecto, deixando o presente passar ao lado com toda a sua riqueza.

A preocupação em ser útil faz de cada um o próximo do outro. Sentir-se implicado no crescimento e no progressso do meio, ser solícito e saber que contam consigo é, pensamos, a melhor forma de seguir o caminho que conduzirá, um dia, à angelitude. Porém, fazê-lo sempre enquanto humano e muito humano, porque é o que isso efectivamente se é, e não nos é possível ser de outro modo.

O ímpeto de angelitude significa a loucura de uma exigência de espiritualidade que ainda não é para nós. Criando o marasmo, torna insignificantes as complexas exigências da sociedade moderna, culpabiliza os homens e as mulheres por serem simplesmente humanidade em todas as suas acções diárias.

É bom não esquecer que, cá neste mundo, ainda há tanto por fazer… Já pensou que o progresso científico e tecnológico tem conduzido as sociedades a índices de violência jamais alcançados? A racionalidade exagerada tem precipitado o planeta na insustentabilidade? O que é mais importante: defender o humano, a sua integridade, ou construir projectos de anjos, moldes de pureza formatados à míope medida de quem despreza a Natureza, os Animais, a Cultura, a Ciência, na sua verdadeira acepção, a saber, a melhoria das condições de vida para todos?

Mais, como crentes, o que é que tem mais peso: provar a existência de Deus, dos anjos, como estes vivem, se têm sexo ou são assexuados, que há algo que sobrevive à morte, ou o modo como nos comportamos num mundo criado com tudo para sermos minimamente funcionais e felizes, onde consigamos, com sucesso, fazer escala num dos muitos patamares evolutivos? Não responda, pense primeiro.

Com os evangelhos, aprendemos que conquistamos o Reino de Deus mediante o modo como vivemos a nossa espiritualidade e o modo como estamos no mundo. O Sermão da Montanha (Mt 5-7) e o Sermão da Planície (Lc 6: 20-26) abrem-nos o entendimento desconcertando-nos, indiciando o modo como entrar numa humanidade em que ricos e pobres têm lugar idêntico no Reino de Deus, mediante um universo de esperança apoiado no modo como é vivenciada a relação com a riqueza, a pobreza, a alegria e a tristeza, mas muito especialmente na projecção em horizontes mais vastos que não os da nossa casa. São textos de um forte apelo existencial que visitam a nossa vida onde todos cabem, isto é, não aprisionam sob um contexto ético determinado, mas que superam todas as éticas. Não interessa ler o texto, mas relê-lo se, como tal, nos projectarmos para uma vivência que faz da felicidade o seu maior objectivo.

Deus nos livre de querermos comportar-nos como anjos, daríamos uma má imagem de tais mercês e perderíamos o comboio da humanidade.

Margarida Azevedo

segunda-feira, janeiro 11, 2016

O FIM DO NATAL NOS CONTENTORES


 
            Jamais alguém, no seu perfeito juízo, terá pensado que os contentores do lixo pudessem tornar-se em locais de romaria. Mas a vida dá tantas voltas! Ir ao contentor é o ritual anual do Natal. Depositar embalagens nesses recipientes fedorentos é uma alegria, uma felicidade. E que felicidade! Eles transbordam com tantas embalagens de cartão, toneladas de papel couché colorido, laços e fitas reluzentes, envólucros de todos os tamanhos, garrafas … Ao lado destes, em regime de boa vizinhança, jazem os dos ossos, espinhas e cascas de tudo o que é descascável. Em suma, ir ao contentor é chique porque mostra riqueza natalícia.

            Há que perceber que o Natal é a festa do Pai Natal, aquele homem muito feliz e gordo, que vem sabe-se lá de onde, carregado de prendas num trenó puxado por renas que tanto andam no ar como em terra.

Entre as prendas vêm brinquedos pedagógicos por engano, perdidos entre os outros, a maioria, sem utilidade, como os de som estridente e irritante, que põem a cabeça em alvoroço e que, se não levarem uma marretada a tempo e horas, conduzem uma família inteira ao psiquiatra, com sintomas de quem levou choques eléctricos.

Em casa, o cenário é frenético; todos tropeçam nas geringonças que para nada servem, sujeitos a partirem uma perna, ou a escorregarem no chão que as crianças irrequietas e os adultos descuidados sujaram, tornando-os alvos fáceis da parede mais próxima onde o mais provável é esmurrarem-se.

Depois, muito para lá da meia-noite ou uma  e tal da madugada, naturalmente, a barriga dá de si. Convém ter sais de fruto ou Água das Pedras, não vá o diabo tecê-las. A euforia das prendas, a refeição abastada, as misturas incompatíveis, os excessos misturados com os perfumes embriagantes ofertados por alguém e que todos queriam cheirar, provocou uma overdose colectiva do tipo drogas duras ou, na melhor das hipóteses, cogumelos venenosos.

As luzes intermitentes da gambiarra da árvore de natal, os castiçais de velas meio-derretidas, os pais-natal espalhados pela casa, os pinheiros das paredes, os arbustos artificiais nas ombreiras das portas, os risos largos e vagos, as conversas de nada, enfim, são depressivos para os que não puderam ter um Natal semelhante, e julgam que tudo isto é felicidade, hilariantes para os que dele fizeram parte e se julgam privilegiados. 

Entretanto, se à pergunta despropositada e descontextualizada de quem era Jesus a criança não responder que era um treinador de futebol ou um surfista, ou até um cantor de rap, já é ter muita sorte; se responder “ não sei” é muito bom, antes isso!

Porque não depositável nos contentores, Jesus é o grande esquecido no Natal. Jesus não deixa restos, não vem da Lapónia nem distingue ricos e pobres. Ele apenas nasceu, filho de uma mulher, debaixo da Lei ( Gl 4:4), como nós. Alguns ainda celebram o seu nascimento, em festa; alguns ainda se lembrarm da alegria da Revelação.

Este momento de caducidade humana, de nihilismo, tem transformado o Natal num absurdo. É o natal dos ímpios ou da impiedade. Mas ele interpela-nos, leva-nos irremediavelmente à reflexão sobre como retirar a máscara que nos envolve, a qual não permite que sejamos autênticos. O Natal não é um episódio do passado e que se comemora anualmente. O Natal é um eterno presente, uma festa de renovação na qual o humano é capaz de atingir Deus se, para tanto, for um/uma bom/boa homem/mulher em sociedade.

O Natal não é um acontecimento religioso, mas histórico e sociológico. Antes e depois de Jesus a sociedade teve, forçosamente, que alterar-se; os movimentos religiosos continuaram os mesmos, os primeiros cristãos surgiram desses grupos.

É impossível pensar o Cristianismo sem uma doutrina social; ele espraia-se nas cidades, aldeias, vilas, campos, lugarejos. É no concreto com o outro que ele tem sentido. Precisamos de tocar na terra para percebermos a vinda de Jesus; uma manjedoura não é um palácio, os arredores não são a Baixa, o campo não é a cidade, os pastores não são os sacerdotes.

Vamos festejar o Natal de Jesus. Uma refeição melhor, sim; um ambiente festivo, concerteza; troca de prendas, porque não? Porém, uma festa des-mascarada, celebrante da alegria da vida, do renascimento de um universo de esperança, de um fim e de um princípio.
O Natal é a festa da eternidade num tempo fugaz, que é sempre o nosso; uma imagem, sempre a nossa; um espaço, o lugar em que habitamos.

Margarida Azevedo