MASCARE-SE
Porque a vida não é só desfiar o rosário dos pobrezinhos, nem cantar o fado da
desgraçadinha, aproveite a quadra carnavalesca ou o Entrudo para se mascarar.
A máscara é uma riqueza importada do Paganismo e que
significa esconder o rosto. Com isso muda o aspecto, encarnando outro ser,
desempenhando um papel teatralizado numa representação apelativa às forças da
Natureza para que manifestem outras realidades, pretendendo-se uma sobreposição ao
quotidiano, exorcizando-o.
O
gesto, a palavra e os ritmos são o seu material nobre, em ritos alucinantes,
onde o imaginário é caricaturado e o onírico o seu fundamento. O mascarado
fica desapossado de si e torna-se outro; a personagem que representa transmite-lhe
a experiência de sentir-se portador de outras vivências. Por exemplo, vestir-se
de dragão é, não só, ser dragão mas impor-se-lhe na fantasia da cor que lhe é imprimida.
De animal assustador, embora mitológico, torna-se dócil e obediente na
representação. O dragão é domável, logo todas as forças desmesuradas para os
humanos são passíveis de serem domadas por eles. Mas o dragão exige, por seu
turno, espampanância, brilho e exuberância na sua representação; quanto maiores
as suas dimensões, maior a sua acção junto dos humanos. Há, assim, uma troca de direitos e deveres: “Eu deixo-me domar e tu fazes-me brilhar; tu mascaras-te
de mim se me exibires.”
Do
lado do mascarado há o desejo de que o seu corpo deixe de ser seu, os gestos, o
discurso; é o fenómeno da transformação que vem quebrar a monotonia de ser
sempre o mesmo.
Portugal
possui um Entrudo muito rico, grande diversidade de máscaras em ritos de uma riqueza
etnográfica a não perder. Devemos ao Entrudo parte considerável da História
Pagã, e fazemos votos de que não se percam os Cabeçudos, as Matrafonas, os
Ensaiados (nada tem a ver com a figura do travesti), os Caretos e o Galo, o
Enterro do Bacalhau na 4ª Feira de Cinzas, e todas as demais figuras.
Porém,
se você é muito religioso, muito cumpridor dos preceitos da sua congregação,
brinque no Carnaval/Entrudo como achar melhor, mas não deixe de o fazer. Também
é importante viver o momento da não-prece, da não-oração, do não-culto. É muito
importante viver o momento dos opostos. Teatralize, represente uma qualquer
realidade; seja humano, porque um gato não tem Carnaval/Entrudo; um papagaio
não se veste de burro, nem um peixe de amor-perfeito. A nossa humanidade é
capaz de, impecavelmente, se “des-humanizar” por uns dias, criando outras humanidades,
desconhecidas, e brincar ao outro sem as fronteiras naturais da sua condição.
Experimentar ser um deus, forças quaisquer e indefiníveis e fantasiar é, de
facto, extraordinário. Este des-humano é o que mais humano existe na medida em
que muito bem o define.
Mas,
por favor, jamais se mascare de benfeitor, santo ou anjo; não exorcize a pureza
ou a virtude; não se dê ao trabalho de mascarar a Luz ou as Trevas. A nossa
vivência ética é, por si só, quantas vezes um postiço, um remendo mal cosido à
nossa natureza tão deficitária de verdade e transparência. Não confunda o
Carnaval/Entrudo com essas máscaras tão infames. No quotidiano, esse outro que
se mostra é a infelicidade de muitos, e não é isso que se quer protagonizar no
Carnaval/Entrudo.
Não
se confunda a riqueza de uma transmissão histórica e etnográfica, nem a nudez
do inconsciente que se manifesta por estes dias, com um fato opaco e escuro que
recalca esse mesmo inconsciente, querendo à viva força matá-lo, ou, que mais
não seja, conferir-lhe um aspecto moribundo.
Margarida
Azevedo
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Nota:
O Entrudo, o Carnaval português, nada
tem a ver com os excessos, droga, álcool, sexo, loucura, que se tornaram
prática comum nos nossos dias.
Estão
de parabéns os Srs. Presidentes de
Câmara que se empenharam em fazer reviver as tradicionais práticas do Entrudo.
Bem hajam.