JESUS E AS MÁSCARAS II
Retomemos
o assunto em questão e debrucemo-nos sobre os seguintes aspectos:
Jesus
não fora reconhecido por dois discípulos, a caminho de Emaús, já ao fim do dia.
Foi no partir do pão, quando estavam à mesa, que se lhes abriram o olhos (Lc 24:31) - não sabemos o que significa -,e,
efectivamente, o reconheceram. Não foi durante o longo diálogo enquanto
caminhavam para a referida povoação (vv. 15-24), os esclarecimentos que Jesus
lhes dera (vv. 25-27), o que nos leva a pensar que estamos perante uma nova
discursividade, uma linguagem nova, tão diferente que não tinha paralelo com o
que fora pregado antes da crucificação. Assim, parecce que a ressurreição impôs
uma nova linguagem, outras temáticas, outra atitude; trouxe nova contextualização.
Se assim é, pergunta-se: O que é que
complementou a pregação anterior? O que é que foi dito a caminho de Emaús? Não
sabemos. O texto remete-nos para uma desvaloração do diálogo.
Sabe-se
que o discurso não foi identificador, mas sim a nova forma de ver, ou seja, um
outro olhar sobre um facto, o partir o
pão. Ora, sabemos que a comunhão de mesa significava estar em intimidade com
alguém, entrar na sua casa, comer do mesmo prato. Naquele tempo, ninguém
partilhava a mesa com qualquer pessoa. Sendo assim, a mesa constituiu-se num
processo identitário mais forte que o próprio discurso, mais que a própria
presença física de Jerusalém para Emaús. Foi a comunhão de mesa que contribuíu
para o abrir de olhos e culminar na certeza de que era Jesus quem,
efectivamente, ali estava. A mesa tornou-se no móbil de uma experiência
mística.
Numa
posição diferente, temos o complexo episódio de Tomé, em João 20: 19-31, que dá
o mote para uma nova bem-aventurança: “bem-aventurados
os que não viram e creram.” Não estamos envolvidos na questão do que é ver,
se o que vemos é o que o objecto é ou se nos reflectimos nele; se vemos ou não
vemos, se há transposição do próprio ver
em si mesmo para aquilo que é visto. Não ver mas crer significa, neste contexto, que não precisamos dos olhos para a
certeza de que a morte foi vencida. O não ver e crer bem-aventura o fiel. A fé
não está na prova física, mas na certeza do cumprimento de uma promessa.
Neste
evangelho profundamente gnóstico, a questão da identificação não incide na
aparência física. A nova bem-aventurança está em assumir também uma nova forma
de ver. Dito de outro modo, reconhecer Jesus não faz parte de uma identificação
gestual, mas na certeza de que Jesus estará sempre no meio de nós, o Logos que
está presente em todos os momentos da vida
Anteriormente
a este episódio, Jesus tinha-se manifestado a Maria Madalena, que também não o
reconhecera (Jo 20: 15); só ao pronunciar o seu nome ela conseguiu
identificá-lo (v.16). Outra questão se
levanta: Dizer o nome faz parte de um processo cuja força ou intensidade toca
tão fundo que, ao ouvi-lo, a pessoa identifica imediatamente o falante. Porque
não aconteceu o mesmo com os restantes? Por
que não teve Jesus a mesma atitude para com os outros? Porquê processos
identificativos tão diferentes? Estes textos levantam a questão de que o
processo identificativo de Jesus não foi o mesmo para todos. Estamos em
presença de teologias diferentes, introduzindo-nos em cristologias diferentes.
Não é o mesmo identificar Jesus no partir do pão, na fé numa presença
incondicional ou no pronunciar do nome. Teologica e cristologicamente em qual
nos situamos?
Resumamos
o tema em epígrafe, lembrando que os textos foram escritos em grego, que esta
era a língua franca na altura e decorria uma profunda helenização:
Este
abrir de olhos não é a problemática helenista que opõe os que estão acordados,
os filósofos, aos que estão a dormir, os
demais. Esta questão nada tem a ver com as influências helenistas da época.
Trata-se, isso sim, da tomada de consciência de que mudaremos radicalmente a
nossa forma de olhar pela força da fé, agora tornada a certeza de que a vida
continua para lá do túmulo; a nova imagem de Jesus, após a ressurreição, impôs-se para delimitar os contornos do aqui
e agora carnais e dar testemunho da nova realidade. Contrariamente, a diferença
entre acordados/a dormir, do pensamento grego, não é uma questão de fé; pretende-se saber o
que é que separa um ser consciente de que nada sabe, de um outro para quem tal
problema lhe passa ao lado; de que naturezas humanas estamos a falar. Porém, vida
versus morte tornada vida, representada através de um crucificado, é a grande
alavanca propulsora de uma transformação impensável para os Gregos (daí o
chumbo de Paulo na Grécia). Ocupados com as filosofias existencialistas e as
questões ontológicas, a Ética e a Estética, pregar um ressuscitado pareceu-lhes
uma loucura. Porém, o modo como encaramos a problemática vida/morte/vida abre
novos horizontes, inevitavelmente, aos modos de abordagem das problemáticas da
filosofia grega, que muito enriqueceram com a nova doutrina salvífica, baseada
na nova forma de fé: a ressurreição. Desde essa realidade, o mundo jamais seria
visto da mesma forma, irremediavelmente. Fica-nos, todavia, a questão: Qual é o
verdadeiro rosto de Jesus? E a resposta possível: O da nossa fé.
A
nossa perceptibilidade, a nossa verdadeira natureza, o nosso eu interior e
recôndito, desse só Deus tem a chave. Talvez não esteja no mundo das ideias,
como em Platão, talvez resida nesse Deus, e as ideias, de cá ou de lá,
obedecerão aos mesmos atavismos, apenas em mundos diferentes. Não nos vemos, há
o que pensamos ver, há o que se deixa aparecer, há o que é, há o que
simplesmente tem o aspecto compreensível por nós, e há que não sabemos onde nos
situarmos.
Acrescente-se
ainda que não consta que Jesus, a avaliar pelos evangelhos e Paulo, tenha
manifestado qualquer animusidade contra as práticas dos pagãos. As multidões de
seguidores e simpatizantes eram
compostas por gente muito diferente, não apenas por judeus. Elas arrastavam
consigo as suas crenças, que, aliás, muito influiram no movimento dos primeiros
cristãos e cujas práticas se mantêm até aos nossos dias. Tenhamos em conta que
a grande questão que opunha judeo-cristãos a pagano-cristãos não se situava ao
nível das suas vivências religiosas, não consta que houvesse um confronto ao
nível das máscaras rituais, mas em torno da prática da circuncisão e do cumprimento
da Lei. É aqui que se insurgiam os
conflitos, que não são de Jesus. Talvez
esta temática tenha constituído o primeiro erro dos primeiros cristãos: para lá
da máscara, para lá da Lei e da circuncisão está o humano, a pessoa, que muito
acima de tudo isso. Sendo assim, que opinião teria Jesus acerca das máscaras utilizadas pelos pagãos? A questão não parece
colocar-se. Jesus trouxe um discurso novo: aceitarmos os nossos limites, as
nossas referências. A desmascarização é um longo processo que só o amor poderá
transpor, um dia, quando amarmos o próximo como a nós mesmos, e isso não tem
mundo, sabemos que, em Jesus, começa aqui e agora. É para já.
Contudo,
não se confunda essa ausência de referência aos pagãos por oposição a uma
sobrevaloração das longas vestes dos farizeus. Jesus menosprezou as suas preces
porque demasiado longas, numa autêntica exuberância discursiva, isto é, a
procura dos belos discursos. Mais uma vez os evangelhos delimitam as
influências helenistaas da época. Orar não é um acto de retórica, um momento
literário com recurso a técnicas rebuscadas. Jesus alude ao discurso proferido
com o coração. Os trajes não estão errados, mas o envergá-los para orar como
para fazer justiça ou política é que não era compatível.
Além
disso, Jesus não defendeu a fé em Deus por oposição às crenças pagãs, tipo cultos domésticos versus cultos da
cidade-estado (ver SÓFOCLES, Antígona,),
mas que amor é sempre amor. Esta liberdade da fé, primorosamente descrita na
Carta aos Gálatas, ainda hoje é um dos “calcanhares de Aquiles” dos cristãos.
Em Jesus, a vida não é marcada pelo trágico; amar a Deus e o próximo não é uma
tragédia. Ninguém deixa de cultuar os
seus mortos ou os seus deuses. O amor é o móbil de todas as formas de fé. Essa herança é universal e, como tal, abrange
todas as singularidades.
Esta
crítica, deu o mote para a importância de grandes máximas, novos valores: o
perdão incondicional, o óbulo da viúva, a reconciliação... Estar reconciliado
com o seu irmão é mais importante que a crença. A relativização do papel da
religião é absolutamente extraordinária, em Jesus. Universaliza o sentimento do
amor, transversal a todos os corações, deixando a cada um a liberdade de
escolher o modo como se coloca perante ele.;transmite-nos a importância da
dimensão da herança espiritual, não se impôs contra ela; não é possível a
colisão entre as práticas de cada grupo e o testemunho da presença de um Deus
Criador e Senhor do universo.
Quanto
às máscaras da nossa vivência, símbolo do nosso demorado crescimento
espiritual, estamos a anos-luz de nos despojarmos delas, nem sabemos se isso é
de todo possível. Por seu intermédio, o natural e o humano fundem-se. Na Era
Axial, na China, por exemplo, “O mundo
natural e a sociedade humana estavam indissoluvelmente ligados.”
(ARMSTRONG, K., 2009, p. 80). E, se dantes esta fusão era religiosa, hoje faz
parte das vivências chamadas laicas. No infantário, vestir uma criança de
girassol para a festa da Primavera é ensinar-lhe que as estações do ano e a Natureza têm
ciclos, e que estes irão fazer parte de si ao longo da vida (não é um rito de fé). Sem a máscara, a
criança dificilmente o entenderia. Quando pinta ou desenha, a criança é levada
a inspirar-se na natureza e deseja “vestir-se” como ela. Ela quer ser como um
girassol, ainda que saiba que o não pode ser.
A
máscara é de tal forma identitária, possui contornos tão definidos, que podemos dizer:” Diz-me
como te mascaras, eu dir-te-ei de onde vens.”
O
onírico tem, igualmente, uma palavra a dizer. A representação do tempo, o antes
e o depois, após uma ocorrência marcante como um cataclismo natural, uma revolução
ou um facto milagroso; qualquer coisa que veio alterar o agir rotineiro de um
grupo, rapidamente mascara, desenvolvendo preceitos folclóricos, linguagens e gestos.
Lembrar esse acontecimento é transportá-lo para dentro de si, armazená-lo na
memória, fazendo despertar danças, cantares, dizeres, numa dramatização
exuberante do facto singular. A máscara impõe-se numa simbólica arquetípica de
um mundo invisível que, só por seu intermédio, se torna visível e participativo
no mundo humano. O sonho é factor dinamizador desse colorido.
O
religioso está em íntima co-relação com o maravilhoso dessa realidade
estrondosa. Sem máscara não há religião porque ela precisa do mundo natural e
onírico paraa se afirmar.
Que
máscara tomou Jesus após a ressurreição, qual o seu verdadeiro aspecto? Tudo o
que se passou é muito estranho, talvez não tenha sido bem assim. Por vezes, o desejo
de enfatizar algo ou alguém conduz-nos a devaneios que podem deixar marcas
irreversíveis. Por isso fizeram de Jesus um milagreiro desconhecido, da sua
mensagem de caminho para o reino de Deus uma caminhada incompreensivelmente
fechada nas alucinações de um punhado que pretende impor-se.
Margarida
Azevedo
Bibliografia
ARMSTRONG,
K., Grandes Tradições Religiosas, Círculo
de Leitores, Rio de Mouro, 2009, p. 80.
Bíblias
consultadas:
Bíblia de Jerusalém, Paulus, São Paulo, 2002.
Bíblia Sagrada, Trad. J. F. de Almeida, Lisboa, 1968.