DA RELIGIÃO À LOUCURA
Nos bancos
da catequese aprendia-se que a religião não se discute. Este princípio
cohabitava com outro igualmente estranho, a saber, a nossa religião é a única verdadeira.
Em termos práticos, isto significava:
Deus não se põe em causa; o binómio fé e não fé eram impensáveis; dúvida e
descrença eram sinónimas; proibição da leitura da Bíblia por ser miisteriosa e
os seus textos não estarem ao alcance de todos; os ateus são gente do diabo; a
Ciência era vista com desconfiança, donde aderir às suas inovações era tido
como prática desviante da fé. Tudo era pesado numa balança tendenciosa de moral
versus imoral, de tal forma que a religião pensava pelos fiéis, criava normas
comportamentais verdadeiramente impraticáveis, excluindo os seus interessses
pessoais. O bom crente era aquele que abdicava de si, que pensava
exclusivamente no outro, ou quase, sem objectivos particulares.
Longe da felicidade, a religião era o
inferno deste mundo, o pecado que mortificava o desejo de progresso, de prazer,
de liberdade, que rebaixava a vida enquanto valor supremo, sacrificando-a em
nome de uma panóplia de príncipios criadores de tipos psicóticos perigosos,
neuroses que se sedimentaram progressivamente no inconsciente colectivo, facto
que, mediante os últimos acontecimentos, prolongou-se até aos nossos dias.
Assim, verificamos, sem a necessidade
de grandes reflexões, que religião e loucura têm sido sinónimas, para os
racionalistas, santidade para os seus mais altos dignatários. Iludindo os povos
de que em nome de Deus tudo é permitido, na defesa ideológica do grupo
religioso, porque transmissor de toda a verdade, inventaram a impunidade num
mundo qualquer a que cinicamente chamam reino de deus , onde crêem que vão
receber a gratificação pelos seus bons serviços: a desvaloração da vida humana.
Contra a alucinação (falar em nome de
outro, de um grupo, de Deus, imposição das suas próprias convicções e
princípios particulares como máximas universais, em casos mais graves,
cósmicas), a Razão impõe-se denunciando a estupidificação das mentes; a
Tecnologia o conforto, facilitando tarefas. Os povos, inevitavelmente, foram aderindo,
rendendo-se às facilidades, ao alívio da
força muscular; a Medicina evoluíu, as condições de sobrevivência melhoraram
com as vacinas, os antibióticos, a
melhoria das condições de higiene impõs-se, veemente. Por outras palavras, o Bem
cresceu pela mão da Razão, pelo livre pensamento, coisa que a Religião nunca
soube fazer. A Educação, ao alcance de todos, tornou-se objecto de consumo como
outra coisa qualquer.
Hoje, caminha-se para uma autonomia
do Estado, face ao religioso, porque a História também amadurece, os cidadãos
politizam-se, a laicização torna-se, consequentemmente, uma necesssidade
imperiosa, democratizadora do religioso. A Moral, lentamente, regressou às suas origens. É anterior à Religião.
Contudo, se a Religião teimar em permanecer
na intolerância, se continuar a confundir-se com a Fé, prevalecerá não como caminho para Deus, mas uma grotesca,
disforme e instável presença no mundo, isto é, está a mais. Infantilizando a fé
e remetendo-a para segundo plano, a Religião tem abafado a individualidade do
crente na infamante tentativa de o moldar a uma autoridade fictícia, criadora de teologias da
dominação, raíz de sofrimentos, de discriminação de toda a ordem, criadora de
morais desfasadas, descontextualizadas, imprudentes e mesquinhas. Ou muda e
adapta-se às novas vivências, ao emergente progresso do Espírito, grito
incessante da procura da Luz, abandonando a omnipotência de um saber que não
possui, ou tornar-se-à estéril, pueril, desnecessária porque contrária ao
grande objectivo dos homens e das mulheres, a Felicidade, bem como no encontro
de ambos rumo a vivências maiores. O mundo é masculino e feminino que, pela
sabedoria de um Criador supremo, se atraiem
mutuamente.
A Fé tem poderes e forças que a
Religião jamais terá; a Fé transporta montanhas, perdoa, é inerente a todo o
ser humano; a Religião é para alguns, aqueles que se lhe subjugam, fracos,
acríticos; a Fé é libertadora, remete para a Divindade, a Religião desconhece
os caminhos da individualidade.
Os povos crescem em valores,
enfatizam-nos na complexidade histórica das épocas charneira para as suas
mudanças; com tudo o que os caracteriza, fez deles lições. Por todo o lado,
impõem-se os símbolos, as lutas que os envolveram. Podemos dizer que o mundo é
mesmo assim? O tic-tac do relógio existêncial, que nos faz lembrar que o
passado vai-se enterrando, dá novos tempos ao tempo. A Religião tem que
enterrar as velharias. Já não há herdeiros e tradições porque a Democracia
impõe-se como modernidade na partilha de valores em que a cidadania é o mais
importante. Religião nâo pode significar colisão.
A Religião discute-se, quando
desvalora a Vida, quando pretende sobrepor-se aos Direitos
Humanos, desvalorando-os; quando combate a Liberdade em todos os seus
aspectos; quando prega o impraticável; quando os seus representantes não dão
exemplo aos fiéis. A Fé é uma graça suprema, é uma força que emana da alma e
faz ter coragem para enfrentar o dia que nasce, mas ela é, principal e
inevitavelmente, um sopro de Amor para com todo o ser-vivo.
Um valor supremo, porém, nos era
transmitido na catequese: se Deus nos deu a vida, só Ele no-la pode tirar,
porque a Vida é o Divino dentro de nós. As religiões não podem manipular a fé,
rumando contra a vida. Somos todos irmãos e é como irmãos que temos que
aprender a viver, num mundo que chega e sobra para todos. Quando a Religião
perceber isto, confundir-se-à com a Fé, e nessa altura será outra coisa, não
importa o quê porque será, com toda certeza, uma coisa muito boa.
A grande questão, a saber, o que é a
salvação, vamos salvar-nos do quê, de que devemos fugir para entrar no Reino de
Deus, o que é assim tão temeroso e forte que nos pode barrar a sua entrada, não
é aflorado.
Todas são
correntes pedagógicas, o que é de revelar, mas ensinaram mediante uma adesão
cega aos seus princípios subjugadores. É louvável ensinar a ler e a escrever,
se com isso se ensinar a pensar; ensinar Ciências Naturais é extraordinário,
desde que seja feita a destrinça entre a Criação segundo o Génesis e a Criação
segundo a Ciência; a Arca de Noé e a Evolução das Espécies; a natural extinção
de espécies e o surgimento de outras; o tempo de existência da Terra, etc.; ensinar
a diferença entre a explicação científica e a proclamação bíblica.
O sabe tudo religioso não pode ser um
substituto do pouco saber da Ciência, que rejeita o não provado, nem o colocar de
alguma questão fora do ram-ram estupificador dos bonzinhos, dos pobrezinhos e
dos aleijadinhos ser uma tentação do demónio, o a riqueza fonte de vícios, o
conforto luxo pecador.
Tudo isto
perdurou, numa sociedade que cresce tecnologicamente a um ritmo avassalador,
com a Ciência a impor a força da Razão, num ambiente de liberdade sexual, onde
o prazer é partilhado e não mais a subjugação de um sexo perante o outro, numa
luta sem tréguas, ainda, pela laicização do Estado, o grande cavalo de batalha
das democracias ocidentais.
Se o religioso
não arrepiar caminho, não abandonar a
arrogância, não se empenhar na modernidade, se rejeitar que vivemos num mundo
de diferentes, pluralista, multicor, iremos todos desaparecer absorvidos pela
opressão, pelo terror e pelo impulso dos instintos; mas antes, porém, seremos
levados, inevitavelmente, à loucura, na luta instintiva pela sobrevivência em
vez de na procura da santidade na prática virtuosa do Bem. Somos todos hindus,
muçulmanos, judeus e cristãos. Ora nascemos num lado, ora no outro do planeta,
porque a Fé é transversal a todos. Se a Religião não começar a ensinar a amar, e
rapidamente, estaremos perdidos. Que Deus tenha piedade de nós.
Margarida
Azevedo