UM 25 DE DEZEMBRO QUE NUNCA ACONTECEU, MAIS UM NATAL ADIADO
Não
é fácil falar de Jesus. O vasto quão complexo processo de mitologização em que
foi envolvido é de tal modo labiríntico, que fazer uma abordagem isenta desses condicionalismos
é quase impossível.
Mitologizar
Jesus foi o maior erro do Cristianismo. Na tentativa de o impor aos outros
profetas, do Antigo Israel ou de outras culturas, caíu-se na intransigência e
no fanatismo. Foi confundir a natureza do mito com a de um homem virado para o Divino. O mito consiste
numa explicação do mundo, necessária, tão válida como qualquer outra; Jesus, o
Cristo, é o portador de uma esperança de Vida Eterna, baseada no comportamento
terreno no qual o outro desempenha um papel fundamental. Jesus não é uma
explicação do Mito das Origens, nem de como surgiu a vida na terra, mas uma referência
para a fé como força salvífica a qual só é possível na união com o Deus único.
É
estranho que se saiba tanto sobre dinossauros, factos passados há milhões de
anos, que se fale tanto de Sócrates, que também não escreveu nada, de Buda, até
do Big-Bang, mas de Jesus, há apenas 2000 anos, confusão, estranheza,
secretismo, desconhecimento quase total e, pior que isso, gerou-se a dúvida
sobre o que se escreve.
Essa
construção mitológica de Jesus, que o representa com uma personalidade estranha
e um curandeiro, gira em torno de dois
aspectos fundamentais: o homem e a sua fé.
No
primeiro aspecto, porque foi desenvolvida uma teologia em torno de pressupostos
refractários à sua vivência enquanto ser humano, a começar pela sua concepção
fantasiosa, à semelhança dos deuses pagãos: uma virgem que engravida por
influência sobrenatural, cuja virgindade vai manter-se após o parto, num dia 25
de Dezembro; um ambiente hóstil e uma encenação infantilizada, o presépio, completam
o quadro, desempenhando um papel que oscila entre um misto de pobreza e
rejeição social, protagonizada pelos pastores, e a magia, numa simbólica
ancestral (ouro, incenso e mirra), promonitória, envolvida em riqueza e humildade,
protagonizada pelos Reis Magos.
No
segundo aspecto, porque os cristãos confundiram a sua crítica a algumas
práticas do Judaísmo com rejeição do mesmo,
ensinaram nas catequeses que Jesus era cristão. A forma crítica como os
evangelhos nos apresentam o modo como enfrentava o trabalho de memória que
compreende a vivência da Tradição, e também pela estranheza das suas afirmações
face ao modo como abordava a Fé, bem como a problemática em torno do
cumprimento da Lei, foram, principalmente, o móbil de grandes deturpações.
Tudo
isto porque há quem não perceba que qualquer ser humano pode ser agente de
Deus; que a superioridade de Jesus advém do muito amar e que tudo aquilo a que o senso comum chama milagre
ou actos sobrenaturais é muito pouco para definir a natureza de um homem
superior. Foi através dos chamados milagres que o confundiram com Deus. Ora
Jesus não é Cristo pelos milagres, Jesus é Cristo pela Doutrina.
Este
é um dos aspectos cruciais, entre outros, que divide os cristãos de grupos “conservadores”dos
de grupos fora do “convencional”. Dito de outro modo, há que libertar Jesus de
Deus e deixá-lo ser homem. Precisamos da humanidade de Jesus para nos
compreendermos como homens e mulheres. Este homem como qualquer outro, que
comia e bebia como nós, amou como nós, mais do que nós, a avaliar pelo
evangelhos e Paulo, com uma sexualidade como a nossa, um homem do mundo.
Ao
debruçarmo-nos sobre o ambiente profético do Antigo Israel, damo-nos conta de
que os profetas são vozes de homens e mulheres ao serviço de Deus. Por seu
intermédio aprendemos que é o muito humano que fala de Deus. É isso que define
a nossa humanidade. O homem pode dizer que não prova a existência de Deus, mas
não pode tirá-lo da sua natureza. Ora o profeta é o portador de uma pedagogia
que ultrapassa a mera dicibilidade de Deus; ele é um sentido de fé, uma ponte entre duas margens de um
rio, opostas mas parceiras na corrente: o lado visível da vida e o invisível.
Falamos
de homens e mulheres que nos confrontam com a nossa finitude, protagonizando a
nossa natureza, os nossos problemas enquanto humanidade, remetidos para um novo
Deus, que não tem nome nem figura, que não cabe na nossa linguagem, mas que
julgamos dizer quando O pensamos, que
não é passível de ser representado pela Arte. Com os profetas do antigo Israel,
de que Jesus faz parte, o futuro passa a estar no modo como construímos o reino
de Deus na terra, ou seja, dentro de nós, e como o espalhamos à nossa volta. Descobrimo-nos
nesta dupla prática existencial: o modo como vivemos com os homens e as
mulheres; o modo como vivemos com Deus, protagonizado num palco comum: a
História.
Nada
disto é comparável com as lutas mitológicas entre titãs, epopeias
épico-narrativas dos feitos heróicos de homens que lutam contra a força
desmedida de deuses interesseiros. É a partir das nossas acções que vamos
sedimentando, com o passar dos séculos, o consequente amadurecimento da fé.
Jesus
é um profeta judeu que conduz a uma reflexão, um repensar a Promessa de Deus
com o seu povo, não num pressuposto de que temos que nos converter a alguma
coisa, mas na medida em que temos que reformular o modo como estamos na vida.
Em Jesus não há conversões, mas entregas ao outro e a Deus pelo muito amar. Por
isso, viver é a alegria de estar sempre com alguém, isto é, a nossa vivência
externa é representativa de uma interioridade, e é sobre essa interioridade que
temos que reflectir, facto a que Jesus alude, metaforicamente, ao fazer alusão
aos sepulcros caiados por fora.
Pela
primeira vez há uma promesssa de um deus para com um povo. Uma Promessa que se envolve
com a liberdade de fé, e não com a subjugação a figuras ou modelos arquetípicos.
Nasceu a liberdade da interioridade. A fé já não é dirigida para uma estátua,
um arbusto sagrado num jardim. A Promessa libertadora fez os homens e as
mulheres olharem para o céu, cheio de sol ou estrelado. E se alguma semelhança
houve entre práticas pagãs e judaicas/cristãs deve-se apenas ao facto de a
nossa conversão ao Deus único ser lenta na medida em que lentamente aprendemos
a ser livres; mas também porque o Paganismo não isenta a nossa quota parte de
responsabilidade para com a natureza. Pisamos solo sagrado.
A
liberdade responsabiliza, ela torna perigosas as nossas acções pois conduz ao
susto do erro, à culpabilidade; remete para o castigo intransigente e
intransponível, no pensar medíocre do insensato, no gesto alucinado de quem
pretende colocar-se no lugar do Supremo. Mas com Jesus aprendemos a perdoar. O
perdão torna-se figura, rosto de Deus no coração dos bons. Com Jesus, ser livre
é caminhar, a não liberdade abafa e pasma.
Lembremo-nos de que os apóstolos e Paulo não se
converteram a Jesus, mas aceitaram-no como Messias dentro do Judaísmo. Todos
desconheciam a concepção virginal de Maria e a Natividade a 25 de Dezembro, tal
como Jesus ser a encarnação de Deus. Os cristãos devem perceber que seguir um
profeta não significa estar convertido a ele, mas a Deus, segundo os
ensinamentos do profeta de eleição, o que é totalmente diferente.
Jesus
foi mais uma voz, com muitas novidades: a laicização do Estado, no dai a César
o que é de César; a crítica às longas preces, como belos textos de retórica, e
com longas vestes; a alusão à fé, que está em todos os corações, quando se
refere ao oficial romano; etc. De todos estes dizeres, o Natal de Jesus é
missionário. Mas mais importante ainda foi a sobrevaloração do Amor como a
fonte onde devem ir beber todos os que querem ser felizes em qualquer dos
mundos, vivam onde viverem. Que o digam os Espíritos bem feitores que trabalham
em zonas onde o sofrimento não tem palavras.
Os
Cristãos ainda não trouxeram o natal ao mundo. Ainda não criaram o contágio da
paz universal, o amor sem fronteiras. As igrejas estão fechadas em si mesmas, amesquinhadas
nas suas ideologias; todas dizem ter a verdade, testemunhando total ignorância
sobre Jesus. Precisamos de um natal fora de horas, fora de portas, fora de
tempo, fora de todo o espaço, sem religião. Um natal aqui e agora e eterno. Imagine-se
um mundo no qual os natais dos profetas eram celebrados conjuntamente! Vindos
do Oriente e do Ocidente, do Norte e do Sul! Imagine-se festejar um profeta qualquer,
só porque é profeta, porque os profetas não são daqui ou dali; imagine-se
lembrar os profetas que se não conhecem, de que se não fala, apenas que se sabe
que existem enquanto tais, como quem lembra o Soldado Desconhecido; esquecer
datas que não aconteceram e inventar-se uma data universal, consensual, e
cantar, cantar até não poder mais, a glória de Deus! Deixarmo-nos introduzir
num rito universal, numa dança sem fim. Imagine-se que o acontecimento marcante
fosse a lembrança de todos num só dia! E que dia!
Quanto
à bandeira, já a temos, é branca, simplesmente; a cidade é magnífica, Jerusalém,
ou Roma, ou Nova Deli, ou…; o coração não falta, continua a bater. Temos o
principal, a Promessa. Só falta o rito natalício. Vamos trabalhar para isso
numa oração universal num tempo sem fim.
Margarida
Azevedo