UM DEUS DE ALIANÇA
Protagonistas de uma vivência da história em que somos
confrontados com a nossa natureza densa, paradoxalmente ou não, a mesma
torna-se mote para a transcendência na procura incessante do súbtil, do
silêncio de uma voz que, poderosa, apela ao lado belo de nós mesmos. Assim se
define o nosso viver como uma revelação constante, imparável, rumo a um outro
mundo dentro deste mundo.
Com isso nos identificamos com o Invisível que, mediante
os nossos desconfortos de crentes cheios de dúvidas, nos faz reflectir sobre
Deus como aquele Ser cujo mundo não pode ser outro senão o nosso; nos eleva à
condição do humano como o outro ser que, de tão feito de pó, é simultaneamente
tão ar, tão força, tão presença de Deus lembrando que se o filho tráz a marca
do pai, logo não seria possível ao humano não transportar a marca do seu
Criador.
As crises da fé não são o descreditar na existência de
Deus, antes as nossas zangas, à semelhança de Job que, caído em desgraça, revolta-se
contra Deus perante Deus - talvez se assim não fosse estivéssemos a negar a existência
do próprio humano. Mas não, estamos em crise aquando do espanto da nossa
semelhança com Ele; o desconcerto da Sua presença num mundo tão ignóbil; a
existência de uma Aliança com seres como nós. Na nossa finitude, poderíamos
afirmar que Deus se enganou ao aliar-se ao humano, que provavelmente teve
pressa, que podia ter aguardado que nos purificássemos, previamente, ou pelo
menos sermos um pouco bonzinhos.
Se assim fosse, qual a natureza desses hipotéticos
escolhidos? Certamente não seriam tão humanos como nós, e Deus seria o criador para
alguns, não para todos; manifestar-se-ia a escolhidos tão subtis que não
caberiam nos nossos padrões de humanidade. As organizações cristãs têm-se
dedicado a criar dessas superioridades como galináceos, esquecendo-se de que
uma igreja não é um aviário, nem os seus dirigentes ou pregadores criadores de gente
com pedigree.
Ora, a Aliança é uma revelação desconcertante. Não
pretende diferenciar o humano a partir
de qualidades que lhe nâo são próprias; não é uma escolha pela superioridade, o
que iria abafar o ideal de humildade e o simples que é ter fé. Pelo contrário,
é dentro da insansatez, do comezinho, do banal que Deus se manifesta, porque
eles são a nossa natureza, a nossa identidade e porque sem eles não
precisaríamos da fé. A Aliança confere sentido, outro sentido, talvez, à nossa
existência, reforça a nossa humanidade. Dizemos outro porque não sabemos se o
nosso sentido é mesmo nosso, construção existencial da nossa experiência, e ao
qual se sobrepõe outro, o divino; ou então se identificam, apenas com momentos
peculiares, acções diferenciadas no palco vivencial humano. De qualquer forma,
há uma presença que nos aceita como somos, ou então, salvífica, pretende
libertar-nos de nós mesmos, em parceria connosco. É que nós somos o outro lado
da Aliança
Em Camões, humanos e deuses confundem-se, trocam de
naturezas. A vontade de vencer dos humanos não conhece limites, e os deuses
invejam-lhes a natureza por isso. Possuídos por forças sobrenaturais, não mais
que humanas e sem limites exaltadas, enfrentam as forças do Mal com mais coragem e
destrezado do que o fazem as forças do Bem. É que o sobrenatural camoniano
significa o que escapa à natureza dos deuses, não o que escapa à natureza
humana; é o que está fora do comum dos mortais, pertença única daqueles que da
morte se libertam.
Mas
também é uma demonstração de até onde o poder do sonho conduz o sonhador. Assim,
porque os deuses não sonham, senão não eram deuses, espantam-se com a
heroicidade dos humanos desmesurada, movida pelo engenho e arte da fé, que também é sonhadora. A ocidental praia lusitana revelou-se-lhes,
assim, mostrando ao mundo, mediante o seu exemplo, que a vontade de vencer o
medo do desconhecido se sobrepõe a todas as vontades. Descobrem os deuses,
mesmo os do Bem, que o humano possui uma coragem, uma força de querer capaz de
enfrentar até os feros mares e os seus mostrengos, traça objectivos que persegue
com todas a suas forças, nem que para isso faça perigar a sua própria vida,
sacrificando-a no altar da coragem sem fim.
Mas o Deus da Aliança dispensa corajosos para enfrentaar os oceanos. Navegantes da fé,
somos a Sua obra promissora, aqueles que não precisam de trocar de identidade
com Ele para mostrarem quem verdadeiraamente são. Apenas mudamos de nome sempre
que um passo em frente damos na luta contra os nossos monstros internos.
Somos aliados de Deus na medida em que, com a nossa
finitude e apesar dela, somos capazes de
enfrentar todas as vicissitudes. E, tal como em Camões, o Mal é vencido; só
que, para este, ele continua lá, rebaixado, na Aliança será para sempre aniquilado,
porque o Bem não se compadece com aqueles que o rejeitam.
Como nos contos de fadas, o Bem não é uma transformação
do Mal. O Bem é bem por ele mesmo, é de outra natureza. A fada má, a bruxa má,
enfim, serão definitivamente aniquiladas pelas suas congéneres do Bem; o herói
sai vitorioso na medida em que lutou sempre, humildemente, sendo recompensado com a felicidade sem fim.
É isso a Aliança, a certeza da felicidade sem fim, neste
mundo quando o amarmos como a um filho; ou no outro quando ambos se fundirem no
mesmo ideal de paz, apesar das suas naturais diferenças. Crentes em Deus, não
nos sentimos projectados para o desconhecido. Há quem viva a loucura de uma
vida terrena à procura de benefícios no outro mundo, traçado à sua imagem e
semaelhança mesquinhas. São os insensatos que nem conseguem perceber que não é com
ideologias que Deus estabelece a Sua Aliança, mas com quem está apaixonado pela
vida.
As nossas crises, que tão banalizadas são, as nossas
angústias, o desespero, o sofrimento, numa palavra, são desafios para a fé, são
materiais para a construção de um outro tempo, uma realidade que há de vir. Mas
há tanto por viver hoje, o dia ainda não acabou, ainda temos tantas coisas a
realizar, aqui e agora. A noção de Deus que transportamos é a que espelhamos na
história que vamos construindo num presente contínuo.
A Aliança é a certeza de que há um Ser que vive connosco
a tempo inteiro. Deus não é uma presença em part-time.
Quanto a nós, basta dizer: “Senhor,
habita na minha casa, hoje e sempre!” Ou, como Francisco
de Assis: “Senhor, faz de mim um instrumento
da Tua paz…” ou, como diz o salmista:
“ Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a Tua benignidade; apaga as minhas
transgresssões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Cria em mim, ó Deus,
um coração puro e renova em mim um espírito recto.” (Sl 51:1; 10) *.
Margarida Azevedo
·
Bíblia consultada, trad. de J. F. de
Almeida, 1991.