NÃO LER KARDEC ESTÁ A CONDUZIR O MOVIMENTO ESPÍRITA AO DESCALABRO.
”Por outro lado, creiam que se a verdade nem
sempre é apreciada pelos indivíduos, ela é-o sempre pelo bom senso das massas,
o que também é um critério. (…) repilam impiedosamente todos esses Espíritos
que se apresentam como conselheiros exclusivos e pregam a divisão e o
isolamento. São quase sempe Espíritos vaidosos e medíocres, que tentam impor-se
às pessoas fracas e crédulas,
prodigalizando-lhes louvores exagerados, a fim de os fascinar e manter sob o
seu domínio.(…) Por outro lado, tenham presente que quando uma verdade tem que
ser revelada à humanidade, ela é, digamos, instantaneamente comunicada em todos
os grupos sérios que possuam médiuns sérios, e não a este ou àquele, por exclusão dos outros. (…)
há claramente obsessão quando um médium só recebe comunicações de um
determinado Espírito, por mais elevado que este pretenda colocar-se. Assim,
todo o médium e todo o grupo que se tenham como privilegiados pelas
comunicações que só eles podem receber, e que, por outro lado, estão sujeitos a
práticas que tocam a superstição, estão, indubitavelmente, sob o efeito de uma
obsessão bem evidente, (…).”(1)
Foram-se
os tempos áureos do movimento espírita em Portugal. Instaurou-se um clima de
desentendimento e desconfiança, totalmente antagónico às belas palavras das sessões
de evangelização. Os clássicos da Doutrina são letra morta. Os tempos agora são
outros. São aceites psicografias cheias de erros, tornando inquestionáveis os
seus textos, desenvolveu-se um clima de anti-criticismo incompatível com o
convite à razão como fundamento da fé, o qual Kardec não se cansou de advertir:
“A fé inabalável é somente aquela que
pode encarar a razão, face a face, em todas as épocas da humanidade.” (2).
Com isto, cresce o número dos que têm medo de falar, os que, à boca pequena,
rejeitam o que outros aceitam e tentam impor.
Por
outro lado, há uma subversão das leituras de outros autores, para quem as faz,
procurando nelas um elo de continuidadade, e mesmo justificação, do que é dito
no Espiritismo. Veja-se, por exemplo, a avaliação depreciativa das correntes
filosóficas e da Teologia, o desconhecimento total de Exegese e Cristologia, rejeitando
tais assuntos simplesmente porque não são de autores espíritas ou porque, o que
é pior, nada têm a acrescentar à Doutrina.
Desconhecendo o que seja honestidade intelectual,
subvertem conhecimentos fundamentais a qualquer crente, independentemente da
sua fé, remetendo-os para o baú das inutilidades. Assim, consideram o
Espiritismo auto-suficiente, as demais doutrinas como descabidas e, muito
embora a Codificação diga que todos somos médiuns, só é verdadeiro o que
acontece no Centro espírita. Nem o próprio Kardec o afirmou. Ao considerar o
Espiritismo uma doutrina evolucionista, que se corrigirá onde estiver errada,
defendeu humildemente que não estamos sós, quanto ao outro lado da vida, nem deste,
entenda-se. Urge perceber que a sujeição de um texto a uma ideologia subverte, o
que significa não ler o texto, no sentido de aprender com ele, mas esmagá-lo.
Ora, fazer da nossa ideologia a única verdadeira é cair na armadilha do “já me encontrei; esta doutrina diz tudo.” É
incompatível com o mundo pluralista de contágios ideológicos. O isolamento
doutrinal e exclusivista conduz, inevitavelmente, à cegueira, remetendo o leitor
para a mediocridade.
Há quem tenha dificuldade
em perceber que: todas as doutrinas são feitas por Espíritos, deste e/ou do
outro lado da vida; “ Os Espíritos do
Senhor, que são as virtudes dos céus, como um imenso exército que se movimenta,
ao receber a ordem de comando, espalham-se por toda a superfície da Terra.”(3). Não são as doutrinas que estão em
causa, mas a Terra; o Paganismo foi a base espiritual dessas comunicações e, assim, a Dourina Espírita tem raízes no
Paganismo (importância dada a Sócrates e Platão, por exemplo) tal como o
Cristianismo (o Cristianismo das origens debate-se com a articulação entre
judeo-cristãos e pagano-cristãos) e o Judaísmo (a Bíblia Hebraica articula
sabiamente as práticas pagãs com os ensinamentos da Tora/Lei); os problemas da
humanidade não são pagãos, nem cristãos, nem de outra congregação qualquer, mas
inerentes à natureza humana.; uma doutrina não se forma a partir do nada, tem
que ter uma base sólida, e o Espiritismo não foge à regra (O Espiritismo encontra-se por toda a parte, na antiguidadde, e em todas
as épocas da humanidade.”) (4), entende-se
a manifestação dos Espíritos (a sua base); a “novidade” do Espiritismo está
na sua codificação, não nos fenómenos
que lhe dão o mote para a mesma. Uma vidência será sempre uma vidência, seja
qual for a fé do crente; os fenómenos são da humanidade e as doutrinas de
grupos em particular. Qualquer médium, espírita ou não, tem na Codificação um
códice bastante útil que o ajudará na sua prática mediúnica, mais, na sua
vivência de fé… se assim o entender.
Mas outra
questão mais incisiva se levanta. A confusão entre o Espírito de Verdade e os
que comunicaram com os médiuns da Codificação. Vejamos: “(…) o Espiritismo não tem nacionalidade; está fora de todos os cultos
particulares; não é imposto por nenhuma classe social, porque cada qual pode receber instruções dos seus
familiares e amigos de além-túmulo.”
(5), fantástico. Isto é, para lá de tudo o que se possa codificar, há um
resíduo, sempre, de particularidades, subtilezas da nossa passagem por esta
vida, que não são contempladas mas que são tão importantes como as outras. Por
outras palavras, a Doutrina não é uma ditadura, mas, pelo contrário, um códice
pleno de tolerância que não encara o não codificável como inaceitável. O
individual e o particular têm lugar, voz, marcam presença.
Por outro lado, se há diferentes categorias de
mundos habitados, se o planeta terra está num dos mais elementares, provas e
expiações, se não temos acesso aos Espíritos superiores, dada a nossa ignorância
e natureza tão densa, então a Doutrina Espírita não é feita por altas
potestades, directamente, como, aliás, nenhuma outra doutrina à face da terra. O
Espírito de Verdade, essa falange grandiosa, presidiu e preside a toda e
qualquer doutrina desde que para isso possua médiuns receptivos à prática do
Bem. Se virmos atentamente quem são os Espíritos que comunicaram para a feitura
da Codificação, temos, só para lembrar alguns, S. Luís e Sto. Agostinho;
rainhas, por exemplo, uma rainha de França; Espíritos protectores, por exemplo,
José; a condessa Paula, e tantos outros, basta passar os olhos pelo índice de O Céu e o Inferno (de Allan Kardec). Se
fossem de uma elevação muito superior à nossa jamais poderiam comunicar com os
médiuns e a própria Doutrina contradizer-se-ia a si mesma. Perceber isto passa
por perceber o que é o fenómeno religioso e espiritual. Além disso, tomemos o
seguinte exemplo: Uma pessoa desencarna. Porque a Espiritualidade assim o
entende, seja qual for a razão, facto que nos escapa, é conduzida a um
plano/planeta primitivo a fim de, juntamente com outros trabalhadores, ajudar
os seus habitantes no progresso espiritual. Para estes, essa pessoa é
considerada como uma Entidade de luz porque, comparativamente, possui algum
esclarecimento que eles ainda não têm. Mas ele não é de luz, obedece a uma
força superior que supervisiona o grupo. A pessoa que foi daqui pertence apenas
a um grau acima, nada mais. Não é por acaso que aprendemos que “Não farás para ti imagem esculpida de nada
que se assemelhe ao que existe lá em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas
águas que estão embaixo da terra. Não te prostarás diante desses deuses e não
os servirás(…)”. (Bíblia de
Jerusalém, Êx 20: 3-5). Ou seja, libertos de ídolos, não caímos na
falsidade e na escravização da fé, prostrando-nos perante seres em tudo
semelhantes a nós. A fé em Deus não é degradante nem esclavagista nem
submissora.
Aprendemos na Bíblia Hebraica que Deus
manifesta-se onde, quando e através de quem muito bem entende. Deus não procura
os que, do ponto de vista humano, são os melhores. Somos a par e passo
confrontados com a ilogicidade dos nossos raciocínios. A liberdade da fé é a
antítese da idolatria (os profetas não são ídolos), e os nossos erros não nos
vedam a Deus, conduzem-nos a Ele, tal como a doença ao médico (por isso Jesus disse
que não são os sãos que precisam de médico - Mt 9:12; Mc 2:17; Lc 5:31). Os
Espíritos que presidiram à Codificação, tal todos os que na humanidade se
manifestaram ao longo da história, são em tudo iguais a nós. Eles viveram no
mundo, são do mundo e compreendem o mundo; vieram dar testemunho de como algumas
coisas funcionam do outro lado da vida, mas dentro da sua humanidade,
obedecendo a ordens precisas. E nisto consiste a grande riqueza de ser humano:
na nossa tão grande ignorância temos momentos em que somos capazes de altruísmo,
partilha de experiências e, com isso, evoluir.
Não é de heróis que a espiritualidade se
faz, nem adorar a Deus é um acto heróico. A procura de superioridades neste
mundo já é, por si só, obsessiva. Temos direito às nossas opiniões, temos
direito de seguir o nosso caminho, mas não temos o direito de excluir ninguém
simplesmente porque nos faz pensar no que ainda não tínhamos pensado, veste
outra roupagem, fala outra línguagem.
Quanto a nós, o Espírito de Verdade não
se define. Assim, baseando-nos exclusivamente na Codificação, para os que
defendem que é Jesus, o Cristo, dizer que se manifestou directamente aos
médiuns é uma anedota; para os que dizem que é uma plêiade superior, a mesma
coisa. Para nós, porque a História tal nos ensina, e fazendo jus à tradição, os
Espíritos enviados falaram em nome de quem os enviou, tal como na Antiguidade
os discípulos falavam/redigiam tomando o nome dos seus mestres. Na feitura da
Codificação, alguém falou em nome de Alguém, não o próprio. Isto em nada Lhe retira
mérito, pelo contrário, coloca-O no seu devido lugar: muito acima de nós. Grande
é a Graça se conseguirmos fazer parte dos servos de Deus, aqui, neste planeta
de… alguma humanidade. Kardec é um desafio para todos aqueles que querem
humanizar-se na directa medida em que se sentem habitantes do cosmos em
expansão, o multiverso incomensurável acima a para além das nossas cabeças. E
de expansão permanente Allan Kardec aprendeu e transmitiu: “Há, entretanto, uma coisa que a vossa razão
deve indicar: é que Deus, modelo de amor e de caridade, jamais esteve
inactivo.” (6) Estude Kardec. Olhe que vale a pena.
Margarida
Azevedo
(1)“D´un autre côté, croyez bien que si la
vérité n´est pas toujours apprécié pas les individus, elle l´est toujours par
le bom sens des massses, et c´est encore là un critérium. (…) Repoussez
impitoyablement tous les Esprits qui se donnent comme conseils exclusifs, en
prêchan la division et l´isolement. Ce sont presque toujours des Esprits
vaniteux et médiocres, qui tendent à s´imposer aux homes faibles et crédules,
en leur prodiguant des louanges exagerées, afin de les fasciner et de les tenir
sous leur domination. (…) D´un autre côté, croyez bien que lorsqu´une vérité
doit être révélée à l´humanité, elle est pour ainsi dire instantanément
communiquée dans tous les groupes sérieux qui possèdent de sérieux médiuns, et
non pas à tels tels, à l´exclusion des autres. (…)
et il y a obsession manifeste lorsqu´un medium n´est apte qu´à recevoir les
communications d´un Esprit special, si
haut que celui-ci cherche à se placer lui-même. En conséquence,
tout médium, tout group qui se croient privilégiés par des communications que
seuls ils peuvent recevoir, et qui, d´autre part, sont assugettis à des
pratiques qui frisent la superstition,
sont indubitablement sous le coup d´une obsession des mieux caractérisées,
(…).” KARDEC, A., L´Evangile selon le Spiritisme, cap. 21,
10.
Les faux prophètes de l´erraticité, pp. 320-321. (1)
(2)”Il n´y a de foi inébranlable que celle qui
peut regarder la raison face à face, à tous les ages de l´humnité.” Idem, p.0
(3)” Les Esprits du Seigneur, qui sont les
vertus des cieux, comme una immense armée qui s´ébranle dès qu´elle en areçu le
commandement, se répandent sur toute la surface
de la terr;” idem, Préface.
(4)” Le Spiritisme se retrouve partout, dans
l´antiquité et à tous les âges de l´humanité, idem,“Introdution, I. But de
cet ouvrage, p. 15
(5)“(…) le Spiritisme n´a pas de nationalité;
il est en dehors de tous les cultes particuliers; il n´est pas imposé par
aucune classe de la société, puisque chacun peut recevoir des instructions de
ses parents et de ses amis d´outre-tombe.”,
idem, Introduction, II. Autorité de la
doctrine spirite, Contrôle universel de l´enseignement des Esprits, p. 17.
(6) “Cependant, il est une chose que votre raison
doit vous indiquer, c´est que Dieu, type d´amour et de chrité, n´a jamais été
inactif.” KARDEC, A., Le
Livre des Esprits, Les Editions Philman, Saint-Amand-Montrond, 2002, cap. II, perg. 21, p.
71.
Nota: Tradução do
texto em francês por Margarida Azevedo.