O NASCIMENTO DE UM JUDEU
“Não se sabe exactamente qual o ano do nascimento de
Jesus.” *
E.P.Sanders
Jesus nasceu no judaísmo do segundo
Templo, aquele que irá ser destruído no ano 70 d.C., pelas tropas do Império
Romano. Na altura, o mediterrâneo oriental era dominado por Roma: Herodes
Antipas – tetrarca da Galileia e Pereia; Pôncio Pilatos – prefeito da Judeia e
Idumeia. José Caifás era o sumo-sacerdote em Jerusalém (Sanders **).
É neste contexto, deveras complexo, que
o profeta Jesus veio pregar o Reino de Deus, dentro do Judaísmo, defendendo que
o mesmo só é atingível através de um sentimento divino, o Amor. Já não basta
cumprir os preceitos que foram transmitidos de geração em geração; é no coração
de cada ser humano que podemos encontrar Deus, através do Amor, o sentimento
universal. É pelo Amor que o humano se transcende encontrando-se com Deus, e,
simultaneamente, que Deus se torna imanente no coração do humano.
Para tal, os conceitos de próximo e de
outro vão tornar-se decisivos para a temática da nova pregação. Serão pontos de
charneira para Quem o primeiro mandamento já não é somente o não curvar-se
perante qualquer figura, nem adorar outros deuses além do Deus Único (Deut 6:4);
impõe-se, agora, o amá-Lo acima de todas as coisas, primeiro mandamento, e ao
próximo como a si mesmo, segundo mandamento (Mt 22:37-40; Mc 12:32.
O outro já não é um ser espartilhado
pela classe social ou pelo comportamento na vida, mas pessoa no caminho para
Deus, excluindo o que socialmente representa. Há uma mudança de paradigma, os
valores mudam e Deus, através de Jesus, é o Deus da misericórdia. Isto não
significa anulação da Lei/profetas, mas pensar Deus como esperança, refúgio e
das coisas sem sentido até então, tais como o óbulo da viúva.
Assim, pode-se afirmar que surge uma
democratização do modo de estar na religião do Deus Único, mas não segundo os
parâmetros da retórica helénica, tão em voga na altura, objectivanto a
necessidade de bem discursar, mas segundo o pluralismo característico do
Judaísmo, fazendo-o sair dos debates intelectuais, transpondo-o para a
singularidade do coração humano. Dito de outro modo, não se trata de sentir-se
como parte integrante do Judaísmo pela via da Lei/profetas/Tradição, mas da
humanidade inteira pelo sentimento maior, o Amor. O Deus-Lei passa a Deus-Amor,
numa maior abrangência.
Isto significa que a importação do helenismo,
com o seu vasto aparelho conceptual, nomeadamente, o Bem, o Belo, a Virtude,
etc, são manifestamente insuficientes face a um Judaísmo que cresce através do
Amor universal. No entanto, esses conceitos sofrem, também, uma teologização -
acresce-se ao sentido filosófico a temática
Deus - . A dificuldade em aceitar a nova doutrina (jamais uma nova religião),
deve-se ao facto de que o Amor ultrapassa escolhidos, puros e impuros, sábios e
ignorantes, pobres e ricos, pecadores e santos, judeus e gentios, samaritanos,
idumeus, etc. Não é um amor intelectual,
ou dentro da mesma congregação, mas à escala universal.
Lembremos que o Judaísmo da Sinagoga era
tolerante face às outras crenças. Hayoun afirma que “(…) o exclusivismo religioso nunca foi apanágio da Sinagoga, e esta
jamais pretendeu que extra Synagogum non es salus.” (p.57).***
Ninguém melhor que Paulo percebeu a
dimensão espiritual do Amor a que Jesus aludia, como refere no complexo texto
de 1Cor 13:1-13. Os nossos actos, por muito belos a assertivos que sejam podem
não ser representativos de uma vivência interior de Amor pleno de gratuitidade.
Aqui temos uma feliz aplicação do helenismo: a separação entre a aparência e a
realidade, sendo a realidade o fundamento do acto, invisível, mas aplicada à reflexão teológica. Na parábola
do homem caído á beira da estrada (Lc 10:25-37), temos um excelente exemplo do
amor ao próximo, além da própria noção de próximo, tão cara ao Cristianismo, e de
puro/impuro, tão caros ao Judaísmo, numa reflexão ímpar. A linguagem do Amor
sobrepõe-se fazendo-nos reflectir que estamos no mundo com uma missão: não
deixar de ajudar quem precisa, quando precisa, seja ele quem for. O próximo não
é o homem caído à beira da estrada, mas o benfeitor que acorreu em seu auxílio.
Quem é esse próximo? Donde vem? Para onde vai? Não importa. Sabemos que é
alguém que se compadece.
Podemos pensar que, segundo Jesus,
há uma relativização do religioso em detrimento do social (Mt 5:23-24). Pode
ser. Mas a questão é mais abrangente. O próprio social é religioso na medida em
que apresenta o outro como um elemento de re-ligação. Trata-se de olhá-lo todo
filho, todo companheiro, todo irmão. A questão do puro/impuro torna-se, agora, uma
questão a ser revista. Podemos dizer que, no judaísmo jesuânico, não há impuros,
mas os de corações disponíveis versus os de corações indiferentes.
Não estamos em presença do amor dos
filósofos, pela sabedoria e grandes temáticas afins, de longas discussões e
retóricas, pertença de uma classe de sábios, mas do Amor que não se discute e
que habita no coração de toda a gente. Não são incompatíveis, complementam-se
se para tanto tiverem a sabedoria de bem se harmonizarem.
O que é que não faz parte destas
temáticas e que lhes foi sobreposto?
A concepção virginal de Maria; o
pecado original; Deus Uno e Trino; Jesus, encarnação de Deus (o Judaísmo,
Jesus, os Doze, Paulo ignoravam semelhantes temáticas). Ora estes dogmas não
são representativos de todos os grupos cristãos, nomeadamente do Espiritismo.
Por outro lado, o que significa dizer
que Jesus é o Salvador? Dentro de uma perspectiva histórica, Jesus é salvador
na medida em que a sua pregação procede a uma inevitável desfatalização da
História. O Natal de Jesus é o da esperança de uma vivência fraterna em que o
ser humano não está condenado a uma vida de sofrimento. A felicidade, o
Banquete celestial que nos espera, o festim espiritual são o corolário de um
trabalho em prol do Bem. Vivendo em amor, o Reino de Deus é na terra e não fora
dela. Há cristãos que vivem à espera de um golpe de Deus sobre uma fatia
considerável da humanidade, com fim a uma limpeza espiritual radical e, dessa
forma,implantando um novo reino para um punhado de escolhidos. Esses cristãos
ainda não entenderam que é cada um de per si que tem que trabalhar para a
implementação do reino de Deus, na medida em que ame o próximo como a si mesmo
e a Deus acima de todas as coisas.
O Paganismo, uma das riquezas do
Cristianismo, não significa fé num deus mágico. Deus não tira coelhos da
cartola nem é um herói. O Paganismo é, sobretudo, o respeito pelas forças da
Natureza como manifestação de Deus.
Assim, lembrar o Natal significa
entrar num momento único de espiritualidade num momento histórico preciso;
Jesus não veio contradizer a Lei e os profetas, pois são inúmeras as
referências aos mesmos, sendo que os dois primeiros mandamentos resumem “toda a
Lei os profetas” (Mt 22:37-40; Mc 12:32). O Natal é entrar no universo de uma
memória que lembra simultaneamente a irrupção do helenismo no pensamento
judaico, que vinha a acontecer muito antes de Jesus, e a tomada do território
de Israel pelo Império Romano, com consequências histórico-religiosas importantíssimas.
Se o primeiro impõe a intelectualidade da retórica com o objectivo de melhor
expor a pregação teológica, o que os judeus não viam com bons olhos, o segundo
irrompe pela força. Ambos conduzem à necessidade de duas novas páscoas: 1. Não
já geográfico-teológica (do Egipto para a Terra Prometida), mas para a
liberdade de crer segundo os seus mesmos conceitos. O messias político e
salvador coincidentes na mesma pessoa, tão criticado por alguns cristãos, faz
todo o sentido para um povo que estava a viver a irrupção da cultura helénica, que
se impunha com toda a sua punjança. Pretendia-se a continuidade de uma fé sem
interferências avassaladoras de intelectuais gentílicos. 2. O Natal de Jesus conduz
a uma passagem súbtil na medida em que há uma observação da Lei e da Tradição,
é certo, as práticas exteriores, para a interioridade do coração humano. Além
de uma vivência, o Judaísmo é algo que se transporta na fé.
Com o Natal é uma nova humanidade que se
pretende construir. Nascer numa cabana, ser visitado por impuros, os pastores,
por Magos vindos do Oriente, é uma novidade, principalmente se essa criança for
o Messias. Esta Natividade impõe-se como uma esperança: o sofrimento terá um
fim.
Por
isso, não é apenas Jesus que nasce, mas a humanidade inteira porque, tal como
se encontra, está de passagem.
Margarida
Azevedo
Bibliografia
*E.P.
SANDERS, A Verdadeira História de Jesus, Editorial
Notícias, Cruz Quebrada, 1993, p. 26.
**idem,
p.51.
*** HAYOUN, M-R, O Judaísmo, Teorema, Lisboa, 2007, 2 – Face ao Mundo, 2. Judeus e
Cristãos, pp. 57-60.
Bibliografia consultada
NEVES,
Pe. C. das, As Grandes Figuras da Bíblia,
Editorial Presença, Barcarena, 2010, Jesus,
pp.222-339.
PUIG,
A., Jesus uma Biografia, Paulus,
Lisboa, 2010, 4. A Personagem, pp.
147- 155.
VIDAL,
César, Jesus, o Judeu, A Esfera dos
Livros, Lisboa, 2011, I O Nascimento e a
Família de Jesus, pp.197-204.
Referências
bíblicas
Trad.
de Frederico Lourenço, vols I e II.