domingo, outubro 20, 2019

A CRUELDADE DO PRESENTE DESENVOLVE A NOSTALGIA DE UM PASSADO A PRETO-E-BRANCO



“Os homens hesitam menos em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torna temido, pois o amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens serem maus, se quebra quando surge ocasião  de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um temor do castigo que nunca nos abandona”*

Maquiavel
 
A dimensão temporal, desde sempre estruturante dos usos e costumes do ser humano, da sua história como fio condutor rumo a um objectivo salvífico, está a revelar que os seus feitos não podem continuar a ser os mesmos ad eterno. O que ontem fez sentido, o modus operandi dos nossos antepassados não pode ser o de hoje.

 O ser humano, que agora se chama cidadão, tem-se ocupado com a sua imposição à natureza, dando, no entanto, pouco relevo às suas características interiores, definidoras de uma identidade sobre a qual é urgente debruçar-se.

A cidadania, ao invés de libertadora, revelou-se uma pertença total ao grupo sob falsos conceitos de individualidade; em cada acção há sempre uma avaliação a milhas do que são as intenções do agente da acção, (que expressão tão interessante). Já ninguém faz, o verbo fazer caíu em desuso, agora age-se; já não se trabalha, é-se colaborador. E para o justificar, até se diz que foi sempre assim. Tudo para justificar que o que o indivíduo  faz, pensa, ou se diz, está errado.

Para melhor calar os que pensam, foi criada a cultura da empresa, que escolhe e fala por todos. Já não se despede ninguém, diz-se que não atingiu os objectivos. O bom colaborador é o que está na empresa como em família. A chefia é o pai e a mãe, os colegas os irmãos. O marido, mulher e filhos não se sabe.

Nas acções de formação inculca-se que não há trabalho igual salário igual. Cada qual é um caso individual, particular, singular, uma célula, um ser muito especial. Os métodos de persuasão são simpáticos, e o indivíduo começa a inchar, a  sentir-se cheio de capacidades, transborda em conhecimento, é fabuloso. E tão especial é que promove a indiferença entre colegas, pois a diferença salarial chega a ser escandalosa, e segundo critérios nada claros.

 Mergulhou-se de cabeça num caldo simplista, aparentemente, de conceitos atabalhoados e não definidos, a tal ponto que já ninguém sabe se vai para a esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo, nem táo pouco enviosado. Tombou-se na desilusão permanente. É que os ditos colaboradores não o são entre colegas, mas da empresa, que os usa e deita fora. Para os colegas fica reservada a cordialidade cínica em ambiente priclitante, e a indiferença; o sindicato, quando o há, e se for operante, mas sem politiquices partidárias, o que é um achado tipo agulha em palheiro, não passa de um grupinho de gente muito empenhada, muito esclarecida, interveniente, muito defensora do trabalhador-colaborador, mas que, no fundo, é um bandozinho que está no escritório muito aconchegadinho, há um bom par de anos, já não estando nem aí para o que diz defender, uma vez que ser representante sindical tornou-se numa actividade vitalícia.

            Mas as desilusões não se ficam por aqui. De repente, toda a gente se tornou incoerente, xenófoba, racista, medíocre, insensata, gastadora, mau pai, má mãe, má filha, mau filho, mau e má em tudo e mais alguma coisa. Instalou-se a crítica social cruel, moralista e fria. Não contentes com isso, acrecentou-se uma sexualização dos comportamentos. Um/a homem/mulher fora da norma (que não se sabe o que é), deve-se ao facto de não ter sexo com alguém, o que o/a torna perigoso/a. Porém, como se aprendeu que os opostos atraem-se, então aquele que tem poder ou é porque tem os assuntos de cama resolvidos, ou porque os tem por resolver. Mas é tudo uma questão de horizontalidade.

A perdição já não é andar por maus caminhos, isso será, quando muito, um acto rústico, etnográfico, coisa de folclore. Não. Modernamente, a perdição é acreditar num político que diz mudar o estado caótico do país, (pescas, agricultura, estabilidade social, saúde, educação, etc.); acreditar num partido político como capaz de produzir ideias e ideais para o país; acreditar numa religião/igreja como unicamente preocupada com questões salvíficas; acreditar que a família é a célula fundamental da sociedade e da espiritualidade; acreditar que pelos seus próprios meios e competências pode chegar a algum lado, etc. Tudo isso  revela-se uma desilusão, mentira e alvo de chacota, ingenuidade, estupidez, fraqueza. Porque, efectivamente, assim é. Há quem faça dos políticos messias.

Se soubéssemos quantos, após as eleições, têm vontade de se esbofetear pela ingenuidade em que caíram, e se efectivamente o fizessem, as ambulâncias andariam num corrupio e as urgências hospitalares entupiriam ainda mais, pois não temos dúvidas de se bateriam sem dó nem piedade.

É o preço a pagar quando se luta pela dignidade, por ter uma casa equipada com tudo a que tem direito, dar uma educação aos filhos que considera acertiva. Para os medíocres isso é ser mal orientado e vaidoso, querer ir muito longe.

            Os políticos, porque não têm ideais, seguem as linhas dos cifrões. Todos têm o seu preço, tal como os futebolistas.  Eles falam, mas o discurso passou para coisas do género: combater a corrupção, garantir a paz social face aos assaltantes e ao crime organizado, o tráfico crescente de droga, acrescentando a ecologia para dar mais realce.

            Com isto, é crescente o saudosismo de um passado tenebroso, lembrando as ditaduras como regimes ideais de estabilidade e os ditadores gente virtuosa; caminho aberto para os políticos se tornarem ditadores. Cresce a intolerância face a um presente sem respostas e caótico, os países perderam a independência porque já não têm povo mas cidadãos cujas origens desconhecem, a escravatura está no seu auge,  o número de refugiados, pelas mais diversas razões, aumenta, os direitos humanos estão escritos, nada mais.

Em suma, estão criadas as condições para o retorno, mais agressivo e violento, feroz, do tribalismo. O motivo será a luta pelo direito à posse da terra e de uma identidade geográfica, pelos recursos naturais, o primeiro será a água, os víveres, imediatamente a seguir a energia, o acesso aos recursos do planeta, enfim.

As religiões e as igrejas estão neste quadro, pois foram as primeiras a desenvolvê-lo ao criarem cidades, ou pequenos povoados só para si. Deus, os pecados, o amor ao próximo, a modificação interior, tudo isso é um pacote que, se vier, será para depois, muito depois.

Ser religioso muda de objectivos e, consequentemente, de comportamentos. Se para alguns, ainda que em número reduzido, foi a luta pela modificação interior e pela conquista do reino de Deus, cujos exemplos são sobejamente conhecidos, basta pensarmos em Jeremias e Jesus, para se tornar a batalha pela entrada triunfante numa organização que, supostamente, garanta sobrevivência e protecção. A conversão deixa de assentar em bases de fé, passa a ser a graça da pertença ao grupo mais forte e mais coeso. Cai a fé em Deus e nos profetas como mestres referenciais da reflexão humana, e passa a ser nos indivíduos que orientam o grupo, o que há muito se vem a verificar. O que mais há são gurus salvadores, amigos do dinheiro, sem qualquer respeito pelo ser humano nem pelo seu sofrimento, carregados de discursos idolátricos. Só as oferendas se vão manter iguais: aquele que dá quer agradar a Deus, o que recebe é uma organização que, com isso, se torna poderosa e politicamente invencível. Acreditar será ainda mais delirante do que o foi até hoje; atingirá picos que tocam  a mais terrível das alucinações.

Que fazer?Ainda vamos a tempo de mudar o rumo das coisas. Se pensarmos que não são quimeras, utopias ou sonhos de crianças perceber  que o dinheiro deve ser como o sal na comida, nem a mais nem a menos, e que se for a menos faz melhor à saúde; se tivermos em conta que, e La Palisse não diria melhor, não levamos nada para o outro lado da vida; que os nossos projectos não passam, na sua maioria, de ilusões bem grandes; que quando pensamos que tudo está bem tudo se desmorona; que as fortunas caiem como castelos de cartas, que muitas foram conquistadas a sangue, suor e lágrimas e são dinheiro sujo; qu, mediante os objectivos, os furtunosos nem chegam a gosar-se delas porque surgem doenças espontâneas que os levam para o outro lado da vida, e assistimos a isso todos os dias; que o caos cai primeiro sobre aquele que o produziu; que as nossas vitórias terrenas são efémeras; que a tenacidade com que muitos se empenham para derrotar tudo e todos cai sobre si mais cedo do que pensam; que a detruição massiva do planeta, fauna e flora, não atingirá só os pobres…Mas ainda que tudo isto seja um fartote de rir, ainda subsiste a Educação, porque essa ninguém consegue destruir. Deve-se lutar por ela com todas as forças, pois só por seu intermédio a Espiritualidade conseguirá impôr-se. E quando se diz Espiritualidade não nos referimos a uma doutrina em concreto, mas ao conjunto dos que, a viver neste planeta, nas mais diversas áreas, se converteram à Vida e ao bem-fazer.

Mas é urgente perceber que não estamos sós e que o que se está a passar também é o resultado da convergência de forças espirituais pouco ou nada aceitáveis, atraídas pelo nível de ambição a esvaziamento éticos. Este mundo é o Reino de Deus, cada mundo o é de per si. Ora, a Espiritualidade tem, forçosamente, que mudar, aqui e agora.

Em suma, aprendemos nos bancos da escola que o Homem se impôs à Natureza; que pela sua inteligência, superior à dos animais, é o rei da Criação. Porém, não foi ensinado como é que isso foi feito, tendo em conta as implicações para o futuro. Tal levou-nos, hoje, ao confronto com o grande problema de arrepiar caminho e de saber como desfazer uma mentalidade e respectivo comportamento com milhares de anos. Toda a vasta maquinaria nos transporta a dimensões que nem nos sonhos mais elaborados se imaginaria, a ficção científica de há meia dúzia de anos está obsuleta, mas os castelos de cartas continuam os mesmos. O complexo de superioridade não é um bom princípio. Se o ser humano quiser sobreviver tem que se curvar perante a Natureza, e religiosamente remeter-se à prática do Bem. Nada mais. O passado não nos interessa, apenas tirar dele as respectivas ilacções. Há que olhar para o futuro sem fantasmas; os principais são os ditadores que ocupam muitas cabeças.

Margarida Azevedo

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*MAQUIAVEL, O Príncipe, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1976, pp.89-90.