A CRUELDADE DO PRESENTE DESENVOLVE A NOSTALGIA DE UM PASSADO A PRETO-E-BRANCO
“Os homens hesitam
menos em prejudicar um homem que se torna amado do que outro que se torna
temido, pois o amor mantém-se por um laço de obrigações que, em virtude de os homens
serem maus, se quebra quando surge ocasião
de melhor proveito. Mas o medo mantém-se por um temor do castigo que
nunca nos abandona”*
Maquiavel
A
dimensão temporal, desde sempre estruturante dos usos e costumes do ser humano,
da sua história como fio condutor rumo a um objectivo salvífico, está a revelar
que os seus feitos não podem continuar a ser os mesmos ad eterno. O que ontem fez sentido, o modus operandi dos nossos antepassados não pode ser o de hoje.
O ser humano, que agora se chama cidadão,
tem-se ocupado com a sua imposição à natureza, dando, no entanto, pouco relevo
às suas características interiores, definidoras de uma identidade sobre a qual
é urgente debruçar-se.
A
cidadania, ao invés de libertadora, revelou-se uma pertença total ao grupo sob
falsos conceitos de individualidade; em cada acção há sempre uma avaliação a
milhas do que são as intenções do agente da acção, (que expressão tão
interessante). Já ninguém faz, o verbo fazer caíu em desuso, agora age-se; já
não se trabalha, é-se colaborador. E para o justificar, até se diz que foi
sempre assim. Tudo para justificar que o que o indivíduo faz, pensa, ou se diz, está errado.
Para
melhor calar os que pensam, foi criada a cultura da empresa, que escolhe e fala
por todos. Já não se despede ninguém, diz-se que não atingiu os objectivos. O
bom colaborador é o que está na empresa como em família. A chefia é o pai e a
mãe, os colegas os irmãos. O marido, mulher e filhos não se sabe.
Nas
acções de formação inculca-se que não há trabalho igual salário igual. Cada
qual é um caso individual, particular, singular, uma célula, um ser muito
especial. Os métodos de persuasão são simpáticos, e o indivíduo começa a
inchar, a sentir-se cheio de
capacidades, transborda em conhecimento, é fabuloso. E tão especial é que
promove a indiferença entre colegas, pois a diferença salarial chega a ser
escandalosa, e segundo critérios nada claros.
Mergulhou-se de cabeça num caldo simplista,
aparentemente, de conceitos atabalhoados e não definidos, a tal ponto que já
ninguém sabe se vai para a esquerda ou para a direita, para cima ou para baixo,
nem táo pouco enviosado. Tombou-se na desilusão permanente. É que os ditos
colaboradores não o são entre colegas, mas da empresa, que os usa e deita fora.
Para os colegas fica reservada a cordialidade cínica em ambiente priclitante, e
a indiferença; o sindicato, quando o há, e se for operante, mas sem
politiquices partidárias, o que é um achado tipo agulha em palheiro, não passa
de um grupinho de gente muito empenhada, muito esclarecida, interveniente,
muito defensora do trabalhador-colaborador, mas que, no fundo, é um bandozinho
que está no escritório muito aconchegadinho, há um bom par de anos, já não
estando nem aí para o que diz defender, uma vez que ser representante sindical tornou-se
numa actividade vitalícia.
Mas as desilusões não se ficam por aqui. De repente, toda
a gente se tornou incoerente, xenófoba, racista, medíocre, insensata,
gastadora, mau pai, má mãe, má filha, mau filho, mau e má em tudo e mais alguma
coisa. Instalou-se a crítica social cruel, moralista e fria. Não contentes com
isso, acrecentou-se uma sexualização dos comportamentos. Um/a homem/mulher fora
da norma (que não se sabe o que é), deve-se ao facto de não ter sexo com
alguém, o que o/a torna perigoso/a. Porém, como se aprendeu que os opostos
atraem-se, então aquele que tem poder ou é porque tem os assuntos de cama
resolvidos, ou porque os tem por resolver. Mas é tudo uma questão de horizontalidade.
A
perdição já não é andar por maus caminhos, isso será, quando muito, um acto
rústico, etnográfico, coisa de folclore. Não. Modernamente, a perdição é acreditar
num político que diz mudar o estado caótico do país, (pescas, agricultura,
estabilidade social, saúde, educação, etc.); acreditar num partido político
como capaz de produzir ideias e ideais para o país; acreditar numa
religião/igreja como unicamente preocupada com questões salvíficas; acreditar
que a família é a célula fundamental da sociedade e da espiritualidade;
acreditar que pelos seus próprios meios e competências pode chegar a algum
lado, etc. Tudo isso revela-se uma
desilusão, mentira e alvo de chacota, ingenuidade, estupidez, fraqueza. Porque,
efectivamente, assim é. Há quem faça dos políticos messias.
Se
soubéssemos quantos, após as eleições, têm vontade de se esbofetear pela
ingenuidade em que caíram, e se efectivamente o fizessem, as ambulâncias
andariam num corrupio e as urgências hospitalares entupiriam ainda mais, pois
não temos dúvidas de se bateriam sem dó nem piedade.
É
o preço a pagar quando se luta pela dignidade, por ter uma casa equipada com
tudo a que tem direito, dar uma educação aos filhos que considera acertiva. Para os medíocres isso é ser
mal orientado e vaidoso, querer ir muito longe.
Os políticos, porque não têm ideais, seguem as linhas dos
cifrões. Todos têm o seu preço, tal como os futebolistas. Eles falam, mas o discurso passou para coisas
do género: combater a corrupção, garantir a paz social face aos assaltantes e
ao crime organizado, o tráfico crescente de droga, acrescentando a ecologia para
dar mais realce.
Com isto, é crescente o saudosismo de um passado
tenebroso, lembrando as ditaduras como regimes ideais de estabilidade e os
ditadores gente virtuosa; caminho aberto para os políticos se tornarem
ditadores. Cresce a intolerância face a um presente sem respostas e caótico, os
países perderam a independência porque já não têm povo mas cidadãos cujas
origens desconhecem, a escravatura está no seu auge, o número de refugiados, pelas mais diversas
razões, aumenta, os direitos humanos estão escritos, nada mais.
Em
suma, estão criadas as condições para o retorno, mais agressivo e violento,
feroz, do tribalismo. O motivo será a luta pelo direito à posse da terra e de
uma identidade geográfica, pelos recursos naturais, o primeiro será a água, os
víveres, imediatamente a seguir a energia, o acesso aos recursos do planeta,
enfim.
As
religiões e as igrejas estão neste quadro, pois foram as primeiras a
desenvolvê-lo ao criarem cidades, ou pequenos povoados só para si. Deus, os
pecados, o amor ao próximo, a modificação interior, tudo isso é um pacote que,
se vier, será para depois, muito depois.
Ser
religioso muda de objectivos e, consequentemente, de comportamentos. Se para
alguns, ainda que em número reduzido, foi a luta pela modificação interior e
pela conquista do reino de Deus, cujos exemplos são sobejamente conhecidos,
basta pensarmos em Jeremias e Jesus, para se tornar a batalha pela entrada triunfante
numa organização que, supostamente, garanta sobrevivência e protecção. A
conversão deixa de assentar em bases de fé, passa a ser a graça da pertença ao
grupo mais forte e mais coeso. Cai a fé em Deus e nos profetas como mestres
referenciais da reflexão humana, e passa a ser nos indivíduos que orientam o
grupo, o que há muito se vem a verificar. O que mais há são gurus salvadores,
amigos do dinheiro, sem qualquer respeito pelo ser humano nem pelo seu
sofrimento, carregados de discursos idolátricos. Só as oferendas se vão manter
iguais: aquele que dá quer agradar a Deus, o que recebe é uma organização que,
com isso, se torna poderosa e politicamente invencível. Acreditar será ainda
mais delirante do que o foi até hoje; atingirá picos que tocam a mais terrível das alucinações.
Que
fazer?Ainda vamos a tempo de mudar o rumo das coisas. Se pensarmos que não são
quimeras, utopias ou sonhos de crianças perceber que o dinheiro deve ser como o sal na comida,
nem a mais nem a menos, e que se for a menos faz melhor à saúde; se tivermos em
conta que, e La Palisse não diria melhor, não levamos nada para o outro lado da
vida; que os nossos projectos não passam, na sua maioria, de ilusões bem grandes;
que quando pensamos que tudo está bem tudo se desmorona; que as fortunas caiem
como castelos de cartas, que muitas foram conquistadas a sangue, suor e
lágrimas e são dinheiro sujo; qu, mediante os objectivos, os furtunosos nem
chegam a gosar-se delas porque surgem doenças espontâneas que os levam para o
outro lado da vida, e assistimos a isso todos os dias; que o caos cai primeiro
sobre aquele que o produziu; que as nossas vitórias terrenas são efémeras; que
a tenacidade com que muitos se empenham para derrotar tudo e todos cai sobre si
mais cedo do que pensam; que a detruição massiva do planeta, fauna e flora, não
atingirá só os pobres…Mas ainda que tudo isto seja um fartote de rir, ainda
subsiste a Educação, porque essa ninguém consegue destruir. Deve-se lutar por
ela com todas as forças, pois só por seu intermédio a Espiritualidade
conseguirá impôr-se. E quando se diz Espiritualidade não nos referimos a uma
doutrina em concreto, mas ao conjunto dos que, a viver neste planeta, nas mais
diversas áreas, se converteram à Vida e ao bem-fazer.
Mas
é urgente perceber que não estamos sós e que o que se está a passar também é o
resultado da convergência de forças espirituais pouco ou nada aceitáveis,
atraídas pelo nível de ambição a esvaziamento éticos. Este mundo é o Reino de
Deus, cada mundo o é de per si. Ora,
a Espiritualidade tem, forçosamente, que mudar, aqui e agora.
Em
suma, aprendemos nos bancos da escola que o Homem se impôs à Natureza; que pela
sua inteligência, superior à dos animais, é o rei da Criação. Porém, não foi
ensinado como é que isso foi feito, tendo em conta as implicações para o
futuro. Tal levou-nos, hoje, ao confronto com o grande problema de arrepiar
caminho e de saber como desfazer uma mentalidade e respectivo comportamento com
milhares de anos. Toda a vasta maquinaria nos transporta a dimensões que nem
nos sonhos mais elaborados se imaginaria, a ficção científica de há meia dúzia
de anos está obsuleta, mas os castelos de cartas continuam os mesmos. O
complexo de superioridade não é um bom princípio. Se o ser humano quiser
sobreviver tem que se curvar perante a Natureza, e religiosamente remeter-se à
prática do Bem. Nada mais. O passado não nos interessa, apenas tirar dele as
respectivas ilacções. Há que olhar para o futuro sem fantasmas; os principais
são os ditadores que ocupam muitas cabeças.
Margarida
Azevedo
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*MAQUIAVEL,
O Príncipe, Publicações
Europa-América, Mem Martins, 1976, pp.89-90.