UM DEUS VERDE
O
homem do séc.XXI, confrontado com as vantagens da tecnologia, que não só lhe
torna a vida mais fácil como está ao serviço de todos, isto é, não é
propriedade de uma classe privilegiada (o telemóvel do presidente da república
é igual ao do motorista), leva, inevitavelmente, à reflexão de que se o homem
atingiu este patamar de conforto pelos seus próprios meios, se foi capaz de
através da tecnologia aproximar classes sociais, qual a dádiva de Deus para o
homem? Dito de outro modo, qual o bem em nós que é, exclusivamente, proveniente
de Deus? Ou o que é que Deus nos dá que seja superior a isto?
Por
outro lado, talvez ao arrepio do que era de
esperar, a tecnologia não conseguiu afastar o homem de Deus. Pelo
contrário, há um resíduo de insatisfação que não é possível colmatar
tecnologicamente. As dores da alma são idênticas desde sempre e vão muito para
além da luta pela sobrevivência, a defesa de pertences, as lutas pela melhoria
das condições de vida. O ser humano é, por natureza, insaciável, problemático,
detesta sentir-se só no mundo, muito embora esse mundo o assuste. O olhar para
o céu e admirá-lo, deliciar-se com o incomensurável, ou passear o olhar pelos
campos e assistir ao acontecer da natureza sempre foram o móbil para êxtases,
sensações estranhas, delírios ou visitas a outras realidades. É o fenoménico a
fazer despertar para outros sentidos da vida, fazendo-o curvar-se na ânsia de
superar o “medo do escuro”.
Assim,
aquilo que denominamos fé, cuja natureza desconhecemos, é absoluto, a
priorista, ou pelo contrário, existe porque há um delírio ou uma tontura
provocados pelas forças da vida natural e cósmica, na sucessão infinita de fenómenos
a que estamos inevitavelmente submetidos? Parece que a explicação da primeira
não está propriamente ao nosso alcance, porque vivemos o desajuste ou a
impossibilidade de puro pensamento; a segunda retrata-nos como portadores de
uma fé como ímpeto de espanto. Porém, quer num caso quer noutro há fé, fé sobre
a qual é de capital importância reflectir.
Vejamos.
Perdeu sentido, tornou-se uma incoerência, a conquista do reino de Deus segundo
parâmetros de austeridade, sacrifícios, abstinências; hoje, isso toca as raias
do fanatismo, retrata mesquinhez espiritual, apouca a presença do Divino no
homem, consequentemente, prática inglória e estéril; por outro lado, longe vão os
tempos da extensão dos rituais e cultos dos templos ao lar, em estreita
contiguidade, com fim à pureza e recíprocas vantagens no céu. Tal uso ficou
reduzido a alguns resistentes mais ortodoxos, e às religiões da natureza cuja
teologia ganha terreno. E porquê?
Porque
o conceito de natureza como terra, planeta, vida, casa, lar, família, enfim,
subiu ao podium. Ele estende o sentido de crime vs castigo a tudo quanto existe:
queimar uma floresta ou tratar mal um animal está tão sujeito a castigo divino
como um crime contra os haveres do
outro, a violência doméstica, etc. “Deus
não gosta que atentem contra a Sua obra.”, é o que mais se ouve.
Fé
e ecologia é um binómio que as Religiões do Livro têm que levar a sério. A
ecologia sobrepôs-se a tudo e a todos. O lar já não é uma casa da família, é
também um lugar ecológico; o templo é um espaço onde se ensina e amar a Deus, o
próximo e a nautreza, e, por isso, tem o dever pedagógico de sensibilizar para
a vida espiritual num sentido abrangente. Hoje, toda a gente critica quem muito
bate com a mão no peito, mas não sabe tratar do cão. Já não é possível amar a
Deus sem amar a natureza por Ele criada, donde a boa prática ecológica faz
parte do estatuto do humano como ser religioso. Lembra-te, Israel, que te tirei
da terra do Egipto, da terra da servidão, não adorarás outros deuses além de
Mim, não farás nem adorarás figuras, já não chega; amar a Deus acima de todas
as coisas e ao próximo como a si mesmo, já não basta. Hoje, dir-se-ia: “Lembra-te, que além de Mim e do teu próximo,
tens que amar a Natureza magnífica, os rios e os oceanos, tudo o que existe no
fundo do mar, na terra e tudo o que voa pelos céus. Quando orares, agradece em
primeiro lugar o ar que respiras, a água que bebes, os alimentos que te saciam.”
A
crise da história e da racionalidade do homem moderno, provocadas pelo desgaste
social, traça um caminho para Deus baseado na desolação, não já no pecado
enquanto uma falta moral. De tanto querer impôr-se à natureza, o homem sente
que lhe perdeu o pulso, assume os desastres naturais como responsabilidade sua,
em resultado de más práticas, e teme o desmoronar da vida. Mais temível do que
a pena moral de Deus, o castigo divino pelas intrigas palacianas que tantas
guerras fizeram, por interesses energéticos, pelos mais cínicos interesses que
tantas mortes causaram, o que o homem mais teme é a reacção dos Elementos, as
catástrofes naturais, ainda que possa dizer que, no fundo, ambas tenham a mesma
origem, divina, a segunda é bem mais temida.
Esta concepção esverdeada de pecado, inevitável
face ao estado degradante a que o planeta chegou, pela mão do homem e pela
ambição doentia, é ponto de charneira para a emergência de uma nova relação com
Deus. Pensar o futuro é reflectir numa nova forma de vida, um novo conceito de
felicidade baseado na partilha, não apenas com o próximo, mas também em
conformidade com os rios e os oceanos, as florestas e a fauna, respeitando-os e
amando-os enquanto autónomos e como fazendo parte do mesmo planeta e de nós
mesmos.
Assim
sendo, o pecado é alteridade do bem, da paz, do respeito e do amor; voz, não já
da nossa natural ignorância, mas a ousadia do querer sobrepor-se à Criação (que
é tudo, humano e não humano). O homem continua
a ser o grande desconhecido para si mesmo, não há dúvida. Falar de Deus e de si
próprio perde-se. Mas isso não significa que faça do bem uma quimera, uma
construção longe da vida terreal. Não pode destruir e destruir-se, alegando que
só no outro mundo e mum momento fora da História é que é possível ser feliz. Pelo
contrário, o bem é o conjunto de acções e pensamentos conduzentes à felicidade
individual e colectiva. O bem é sempre viável não impossível. Felicidade e bem
são parceiros na conquista do inefável, quem sabe, dos salutares delírios. São caminhos, não o próprio Deus. Deus é
inqualificável. O pecado conduziu-nos até aqui. A tomadade consciência da desolação
dá lugar à esperança.
A
nossa vivência religiosa problematiza esta concepção de bem: ou porque o homem
está a pagar uma dívida muito cara a Deus, contraída sabe-se lá onde e quando
(ou “quandos”), pouco se importando com as implicações espirituais e religiosas
de uma tal posição que, espremida, é vaga,
inespecífica e uma resultante da subversão da fé a um passado nebuloso; ou
porque vivemos tempos apocalípticos, (todas as épocas tiveram os seus
apocalipses, a de Jesus foi uma delas), com a consequente esperança de um líder
messiânico libertador e justiceiro. São disso exemplo os novos grupos
religiosos que vão surgindo diariamente, ou por dissidência dos já existentes
ou novos de raíz, de políticos quais salvadores da pátria e exemplos de fé, com
grande moral e cheios de bons costumes, de boa vontade e munidos de belos
discursos, que prometem pôr tudo na ordem enquanto o diabo esfrega um olho. Não
faltam por aí messias: grupos, indivíduos, partidos políticos, religiões,
máximas, preceitos, enfim. Apetece perguntar: qual é o líder que, hoje, não é
messias?
O
homem moderno mais crítico e mais atento, obviamente opõe-se-lhe, porque está numa relação de proximidade com Deus do tipo
“tu cá, tu lá”; o “Pai Nosso” já não
diz “vós”, mas “tu”. Para Deus está reservada uma conversa de alma aberta. Deus
está aqui e agora, trespassa os pensamentos; não está longe nem se esconde, não quer ser
desconhecido, relativiza-se na nossa humanidade; cultua-se não somente no
templo, mas na natureza porque Ele é Vida. O culto é um encontro social da fé e uma teatralização
de um tempo longínquo, gerador de um sentido que é sempre novo. Cultuar é
curvar-se em oração numa ritualística toda memória. A noção de eterno começa
aí: a perpetuação de um acontecimento marcante na história, ponto de charneira
de uma viragem que mudou o rumo de um povo ou uma nação. Todos os povos são
portadores de algo que jamais poderá morrer: um conjunto de factos onde se encontram
a História e a Fé.
A
memória é uma força da fé na medida em que o apresenta facto histórico como uma
vontade de Deus como Ser libertador. Por ela, Deus continua tão participativo
como outrora. Por isso, o homem moderno dispensa o passado culpabilizador, seja
ele qual for, como for, onde for. É do futuro que ele se ocupa. O que está
morto, destruído, disso já não passa. Agora interessa saber o que pode
construir, ou melhor, co-construir com o seu Criador. Para quê pensar em culpa,
destruição, falta, erro? Já não se trata apenas da nossa História Humana,
também da História Natural.
Quanto
à fé, transfigurou-se, porque o homem é ele mesmo um ser transfigurado, uma
caricatura do que já foi. A palavra da oração é outra, amadureceu, mantendo-se,
no entanto, manifestação da transcendência na imanência. A mesma palavra diz e
desdiz, chora e sorri, é de cá e de lá, tem força e fraqueza, tem pecado e …,
tem natureza e história.
É
facto que a fé assumiu, mais do que nunca, o seu duplo papel: religioso e
cultural. Mas ainda é mais verdade que se tornou tripla: religiosa, cultural e
natural. O reino de Deus já não está num céu azul, mas aqui e agora,
ecologicamente.
Por
meio da fé, todas as coisas são novas todos os dias, porque todos os dias são
novos, singulares e únicos. A natureza, no seu aparente eterno retorno, é uma
novidade constante; uma força renovadora qual horizonte de esperança e de
liberdade. O homem moderno não pode perder esse horizonte: amar a Deus, o Próximo
como a si mesmo e à Natureza, acima de
todas as coisas, bem, já não vale a pena dizê-lo porque isso é todas as
coisas (o que há mais além de Deus, o outro e todas as coisas?). A grande fé é
amor.
Margarida
Azevedo