O CARÁCTER TRANSITÓRIO E PRECÁRIO DAS NOSSAS DOUTRINAS
O humano caracteriza-se
essencialmente por estar em trânsito num pluriverso no qual é movido pelas
coordenadas espaço/tempo. Para uns, tal é motivo de desconforto pois vivem à
procura de uma eternidade ideológica, porque assentes em conceitos tais como valores, verdade, ética,
moral, tradição, etc. Outros, pelo contrário, crêem que a ideologia permanece,
mas com potencial ou capacidade para se adaptar às novas realidades sociais,
novas necessidades e novas exigências. Para estes, a ideologia é elástica, pois
é sempre possível acrescentar/retirar-lhe sentido quando o anterior se torna
obsoleto. Depois há ainda um grupo, assaz pequeno, para quem a ideologia é
totalmente transitória, aceite porque responde, de alguma forma, às necessidades
da vida aqui e agora.
Nas ideologias religiosas, ou por medo
dos infernos ou de se expor aos maus Espíritos, ou por desafiar a força dos
deuses ou de cair em desgraça para sempre, longe de serem libertadoras são, na
realidade, mecanismos aprisionadores que impedem o ser humano de viver em pleno
a sua fé numa relação de felicidade com Deus e com a Natureza.
Podem ler-se os mesmos textos a vida
toda, e séculos após séculos, mas se não se tiver em linha de conta a
historicidade, as vivências religiosas de então, e não for feita uma leitura aberta
dos mesmos, isso significa matar o texto. A vida de um texto está precisamente
na constante releitura, conferindo ao leitor a liberdade da análise, a sua adaptação
individual ou colectiva ao presente. Há que perceber que a ideologia do texto
pode não ser a do leitor, ainda que partilhem religiosa e historicamente
idênticos ideais. O que têm em comum as igrejas cristãs de hoje com as casas-igrejas
dos primeiros cristãos? Para não dizer nada, dizemos muito pouco.
É motivo de excomunhão dizer que as
doutrinas são tão precárias, tão débeis, tão frágeis como o vento que passa. Mas
isso é a grande verdade. Elas podem durar centenas ou até milhares de anos, mas
isso não significa que sejam imortais ou eternas. Um dia, inevitavelmente,
chegará o seu fim e novas doutrinas surgirão. Por isso a História nos lembra
esses momentos fugazes de milhares de anos, tornando-os episódios a reter na memória
individual e colectiva. A religião egípcia é um bom exemplo; os cultos do deus
Apolo e do deus Dionísio, na Grécia, também.
Porém, fazer da memória elemento justificativo de práticas
inaceitáveis porque desfazadas no tempo, é inverter-lhe o papel. O factor tempo
é determinante para a compreensão e aceitação de todo e qualquer comportamento.
Vão longe os tempos em que o rei ou chefe da tribo era um deus; vão longe os
tempos da crença na imortalidade mediante a oferta sacrificial de bens, e de pessoas
em holocausto, aos deuses; vão longe os tempos dos cultos dos mistérios do deus
Dionísino e do deus Apolo.
A perigosa crença na estabilidade
doutrinária, na sua verdade incriticável, da sua capacidade de resposta para
tudo, da sua perfeição total, enfim, é a porta escancarada para
o
fundamentalismo, fanatismo, intransigência, ateísmo, luxúria, exploração do
próximo, manutenção da ignorância, resistência à mudança, medo que o outro
ensine, denuncie, esclareça, faça de alguma forma abanar as estruturas muito
aconchegadas e muito arrumadinhas do cinismo e da arrogância.
Não há doutrinas libertadoras, há-as
momentaneamente responsáveis por algum equilíbrio, alguma resposta muito fugaz,
muito sub-reptícia, uma mezinha para algum problema de momento qual remédio
para um mal do presente. Passado o mal, o remédio deixa de ser necessário.
Podemos guardar o frasco, mas o problema seguinte, ainda que recorra ao mesmo remédio, já não
será o mesmo nem o remédio terá o mesmo desempenho.
Rir de nós mesmos, dos nossos fracassos
ou de algumas virtudes, é sinal de
maturidade política, religiosa, cívica, é quebrar os muros. A estabilidade não
é uma característica do humano; é querer à viva força que os filhos sigam tudo
exactamente como os pais, transformando-os em seres castrados, agarrados a vida
inteira aos pais como se estes fossem a única voz a ouvir e a totalidade do mundo.
Progredir
é emancipar-se, é amar a vida, e aos progenitores na medida em que os
compreende na sua vivência e experiências de vida. Progredir não é rejeitar,
mas querer ser sempre mais, ir mais alto, aprender sem cessar. O pão pode ser sempre pão, mas os
processos de fabrico acompanham o progresso tecnológico. Quem diria, há um
punhado de anos, que o pão deixaria de ser fabricado à mão e seria
confeccionado por máquinas? Então o pão não é sagrado? Não é o corpo de Jesus,
o Cristo? Muito bem. E o que é que isso tem a ver com o processo de fabrico?
Pode continuar com essa fé, quem assim o entender, que em nada é beliscada com
a substituição das mãos, no difícil trabalho quão árduo de amassar quilos e
quilos de farinha, por uma máquina aliviadora. Até lhe deixa tempo para ler a
Bíblia…
Os libertadores e messias de hoje,
tal como os de outrora, mentirosos e
arrogantes, apoiam as suas doutrinas no passado histórico, num mundo que foi
essencialmente nómada, reivindicando direitos de propriedade por razões
ancestrais; falam contra a colonização e a escravatura, a xenofobia e o racismo,
em jeito de vítimas, como se tais realidades não fossem transversais ao ser
humano, mas apenas características de um grupo; abordam os direitos das
minorias e o direito à terra, com pompa e circunstância, excluindo ou retirando
a outros o direito a um lugar para viver; referem-se aos direitos humanos com altivez,
quais grandes defensores, mas tudo isto é como o sino que tine porque o que os
move não é o bem ao serviço de todos, mas apenas de alguns que, nas suas
ideologias e mentalidades, são os verdadeiros merecedores da liberdade ou da
salvação de Deus. Sementes da discórdia, do terror e da desilusão, os falsos
libertadores são excelentes cozinheiros da desgraça alheia.
Vivemos uma nova era apocalíptica,
um segundo zelotismo, novos profissionais da virtude. Ora, o apocalipse não é
um fim trágico, mas um recomeço em grandiosidade porque é o desocultar, revelar
de algo que estava escondido; o zelotismo o fim de uma perspectiva religiosa intransigente;
os profissionais da virtude um bando de indivíduos espartilhados para quem os
bons prazeres da vida são pecado.
Sim, vivemos entre dois infinitos, o
do bem e o do mal. Pretende-se a redução de menos um ao segundo e a adição de
mais um a o primeiro, a cada momento que passa, momento esse que tanto pode ser
de um segundo como de milhões de anos, aqui ou em qualquer outro lugar. Viver é
exercer essas duas acções numa constância sem cessar, numa insatisfação e num desejo
ávido que esta noção de lonjura nos perpetua. Mas, no fundo, é tudo tão ténue,
tão frágil e tão transitório.
A vida é uma passagem fugaz por qualquer
coisa que vem de uma fundura temporal e espacial entre os infinitos mais e
menos. Onde estamos? O que é pensar em algo? Porque reflectimos Deus segundo
ideias que julgamos sempre tão assertivas mas que, na verdade, são
insatisfatórias?! Chegar a Deus no desconforto social, numa dialéctica de subjugação e libertação é
cultivar a esperança de que um dia haverá o acerto do pensamento e da fé, do
desejo e do fim real de todos os desentendimentos. A transitoriedade das nossas
doutrinas é reveladora de um caminho…
Margarida Azevedo