SOB O CÉU AZUL
Quando nascemos entramos num
túnel que não sabemos aonde vai ter nem aonde nos leva. Esse túnel que
percorremos durante umas escassas dezenas de anos, para os que habitam neste
plano durante esse tempo, ao qual chamamos vida, também ele nos percorre e
desafia. O túnel, também precisa de nós para ser habitado. O habitante e o
habitado necessitam-se, precisam-se mutuamente, interagem, encontram-se.
O presente, que tantos rios de
tinta faz correr quando se fala de crise, valores, insegurança, corrupção, e
tantas outras coisas que nos estremecem, faz-nos sentir que a vida se relativiza perante um conjunto de
manobras cujo objectivo é fazer esquecer uma infinidade de coisas boas, sim,
coisas boas, que aconteceram em todas as épocas.
As grandes vozes defensoras do
sofrimento como a melhor e única forma de evolução, perigosas quão fanáticas, e
as primeiras a lutar com todas as forças contra o seu próprio sofrimento, o que
é muto natural, anti natura seria não o combater, mais não são que forças
negativas que retratam este planeta como exclusivamente um mar de dores sem fim
a partir do chavão “vivemos num mundo de
provas e de expiações.” Só que isso significa que há provas e expiações, não diz que só há provas e expiações; há sofrimento, mas não há só isso. O
túnel não é apenas um espaço limitado e longo, é também uma protecção face a
situações indesejáveis, e uma forma mais rápida e segura de chegar ao outro
lado, o do céu azul. Viver aqui também é uma forma de protecção face a outros
planos complicados, chamemos-lhes assim num português doce.
Sempre houve, anonimamente, e
não apenas aquelas figuras de referência mundial, que transformaram em figuras
de cartaz da fé, gente que, pelo muito amar, igualmente muito contribuiu para o
alívio do sofrimento do próximo. Há que perceber que dentro do túnel circulam
vidas de tantas etiologias que nem fazemos uma pequena ideia. É um lugar
pluralista onde se entrecruzam arqueologias e objectivos de tal forma que estar
lá dentro não retrata a natureza de todos como semelhante. Pelo contrário, o
que têm em comum é apenas habitar o mesmo espaço.
Lá dentro, a queda da
democracia, o seu fracasso e os falsos conceitos e falsos direitos que a ela
foram anexados, colocou a humanidade no caminho recto para a opressão como forma
única e exemplar de, hipotética e saudosistamente, repor uma suposta ordem plena
de virtude, tão virtuosa quão rígida. Só que o túnel não suporta a rigidez, precisamente pela sua natureza
própria. Ao longo dos tempos produziu ideias, lutou contra as opressões, gerou
valores, desenvolveu pedagogias, tudo
para minimizar a vulnerabilidade dos mais fracos, limitar a tendência para a
criação de super-poderosos. Com sucesso? Talvez não como o que desejaríamos,
mas com muitas vitórias pelo meio.
Não um dos maiores fracassos,
mas o maior de todos, é demolir a democracia.
O resultado está à vista desarmada. A eleição dos líderes políticos não
se baseia em alternativas a uma forma de governação, os eleitores já não votam
porque ouviram debates televisivos ou leram jornais, ou simplesmente porque são
fiéis a determinada corrente política que, historicamente, lhes diz alguma
coisa. O eleitorado vota naquele que prometer “endireitar isto tudo”, lhes garantir um trabalho, ainda que a preço
miserável, acabar com a corrupção, com a vagabundagem, os homicidas e os
incendiários. Só que isso não tem partido, nem devia fazer parte de programa
eleitoral algum. Como que querendo absolver-se,
ou representando o papel de quem está de fora, os políticos fazem
esquecer de que absolutamente todos, independentemente da cor política, devem
estar empenhados na construção de uma sociedade mais justa, com regras que
todos devem cumprir, independentemente de raças e etnias, e cujos exemplos têm
que vir de cima.
Como chegámos até este caos?
Foi muito fácil. Os cidadãos, já não se lhes chama povo, preocupados com a insegurança, descuram o papel das grandes
decisões políticas, laborais e sociais, remetendo-as para a classe política. A
insegurança tornou-se na maior arma do sistema, o crime convém à política e até
à religião: à primeira, porque lhe garante completa autonomia para agir como
quiser, implementando um sistema baseado na sobrevivência como uma alternativa
virtuosa, do tipo pobres mas seguros,
o que nem isso acontece; à segunda, porque garante templos cheios, donativos
generosos para agradar aos deuses, e garantir uma felicidade qualquer num reino
qualquer.
Os líderes honestos, políticos
e religiosos, porque os há, além de silenciados são vistos como indesejáveis,
os tais que não estão a perceber nada de nada, não alcançam que a vida está em
grandes mudanças e que, na sua teimosia, estão a ficar para trás porque
desactualizados. Lutar pelo bem nunca foi tão difícil como agora, é uma
aventura perigosa.
Neste beco sem saída, apesar do
túnel ter tantas saídas, triunfa a esperança de uma fé que supera montanhas,
ultrapassa fronteiras, se assume como a alternativa mais humana. Porém, neste
plano existencial onde, o que dá muito jeito aos corruptos políticos e
religiosos, lamentavelmente, ainda há os que defendem a pobreza como a forma
mais fácil e a mais elevada de atingir o céu. Assim torna-se quase impossível a
criação de melhores condições de vida. Ora, parece que Deus não tem nada a ver
com ricos e pobres, mais ou menos sofredores. Será mais acertivo pensar que,
talvez, a construção de modelos de vida libertadores, gerar formas de
felicidade, vivências pacíficas será mais o Seu género. Isto sem ter a ousadia
de falar dos gostos de Deus. É apenas uma prosa de túnel coberta pelo céu azul.
Margarida Azevedo