QUANDO O DESESPERO FALA MAIS ALTO
“Eu só quero ir para um lugar
onde não haja nem armas, nem política, nem religião.”
Uma mulher de Beirute
O sofrimento torna órfãos de fé os
que sempre foram fiéis segundo uma qualquer forma de perspectivar o alcance de
Deus. Crentes que foram construindo um curriculum espiritual e religioso
segundo parâmetros herdados, ou não, mas que lhes diziam alguma coisa no seu
entendimento, que llhes respondiam às necessidades mais básicas enquanto seres
espirituais em transição neste planeta.
Sentiam que a organização religiosa os
projectava para uma vivência interior que lhes conferia a certeza de um bem-estar definitivo na tranquilidade de um
caminho que, ainda que não fosse o melhor, era, no entanto, o seu caminho.
Não se trata, apenas, como facilmente se
depreende, de combater os problemas do quotidiano, a trama ou o enredo de
situações que se justapõem, que desencadeiam o aguçar do engenho e da arte para
as combater. A fé acompannhava a natureza no seu eterno retorno: quem não
conhece, ao sul de Portugal, as festas em honra de S. João Baptista, celebradas
em Junho, em que eram ofertadas laranjas, as tão doces laranjas de Junho,
amadorecidas pelo sol escaldante, ou então as décadas de azeite ofertadas às
igrejas para alumiar durante todo o ano? Em toda parte, a ofetta das primícias
dos produtos da terra aos doentes, por serem mais puras, quem não se lembra?
Mas é mais forte do que isso. Era a celebração da fé, Natureza e Deus, era a
espiritualidade no seu melhor.
Hoje, o crescente impulso para a
destruição da vida, entenda-se, do planeta, está a arrastar para o cadafalso a
capacidade de luta por uma vida melhor, e a fé, na medida em que estas se
tornam impotentes para se imporem contra uma corrente destrutiva imparável.
Num momento inigualável de desespero,
aprende-se que a dor também tem o seu limite e, faltando essa componente, força
e fé, cai por terra a coragem para o crente se reerguer e retomar o caminho. A
fé não está presente no vácuo, mas no concreto de uma vida que ruma a um Deus
que está em toda a parte e cujo reino é aqui e agora.
Tome-se o exemplo desta mulher, ainda
jovem e junto da cama do seu filho menor, no hospital, ferido pelos estilhaços
provocados pelo rebentamento dos explosivos, já só quer viver num mundo vazio.
Seremos capazes de pensar um mundo
vazio? Um mundo despojado dos destroços das armas, da política e da religião?
Um mundo onde ninguém se protege pelas armas, onde não há interesses, entenda-se,
nem política, nem religiões, mas não se entenda, fé? É possível, quando se vive
em determinado contexto, quando se está à cabeceira de um filho ferido pela
chuva repentina de materiais projectados pelos ares, resultante de interesses
económicos que falaram mais alto.
Neste planeta tornado numa lixeira de
detritos de toda a ordem, vive-se um luto simbólico, plástico. Há um olhar para
o vivo como se estivesse já morto ou prestes a morrer; há um número crescente
de vivos que se sentem excedentários, que vivem por esmolinha, que sabem que
estão vivos porque alguém poderoso assim os mantém (=retém). É a clausura de
uma vida condenada ao nada, para muitos, na expectativa do céu eterno onde,
algures, os poderosos não têm lugar.
Mas são precisamente os poderosos que
implementam e alimentam essa fé sádica, que não é fé, que confundem conceitos e
dignidade com vidas passadas, que excluem a suprema bondade divina como a única
força para a igualdade, para a construção da humanidade inteira como uma
catedral à bondade, santidade e luz.
É urgente repensar Deus, a História, a
Vida, a Natureza. Urge conferir um sentido novo, traçar uma nova direcção à fé,
voltar a acreditar no humano e nas suas potencialidades. Precisamos de outras
palavras, santificadas pelo sentido do amor divino, precisamos de uma nova
semântica.
Dispensamos as profecias e todos os
discursos redutores dos factos históricos a previsões mirabulantes. Não é
preciso ser um profeta engenhoso para dizer que teremos esta e outras
epidemias; tal como dispensamos futurologias que prevêm guerras e catástrofes
naturais. Precisa-se urgentemente de mudar o quadro das profecias: um diaos
homens e mulheres serão felizes, inteligentes para perceberem que ninguém é
superior a ninguém, que não há caixas de Pandora, golpes de mágica para
resolver problemas. Temos a maravilhosa capacidade de sonhar. Os sonhos,
supramente poderosos e que comandam a vida, pincelam os caminhos para Deus. É
tempo de profetizar, sim, mas aquilo que parece uma impossibilidade. A profecia
impõe-se pelo imprevisto, por um impulso de uma fundura que supera a comum
razão.
É
preciso reflectir e pensar num deus que não esteja insatisfeito, que seja
insaciável, que nada lhe agrada. É preciso pensar Deus como uma elevação do
espírito a uma necesssidade sem fim, a transformação de um planeta.egoísta numa
terra de partilha.
Não é na intransigência de um deus mesquinho,
limitado e reduzido ao humano, parcial, cheio de complexos, moralista
implacável, intolerante, de machado em punho, ignorante do humano, abominável,
fero e medonho… que chegamos a algum lado.
Que mundo é que nós vemos? Como o
habitamos?
É tempo de pensar Deus na materialidade e
a materialidade como caminho libertador. Deus fora da matéria não é exemplo
para a humanidade, mas um deus confinado aos anjinhos, prisioneiro num mundo
terrível em que o bem é uma superioridade tal que não quer nada com a matéria.
A descida das Entidades ao nosso mundo
não pode continuar a ser a descida aos desgraçadinhos, mas a pedagogia sublime
de todos aquele que já viveram no nosso plano e que, pela força da sabedoria e
do amor divinos, vêm dar uma mãozinha aos que estão a dar os primeiros passos. Há
que perccebê-los como Espíritos ao serviço de Deus plenitude, Deus benção, Deus
perdão.
Jesus veio dar o exemplo de que há
Alguém, que está aí alguém. Que não há cortinas físicas, mas que a maior das
barreiras é a falta de amor.
Estas linhas vão, sem excluir ninguém,
directamente para Beirute, cuja catásrofe não pode ser esquecida, e pela qual
devemos orar. Que a misericórdia de Deus se estenda sobre a cidade e ao coração
da Humanidade inteira.
Margarida Azevedo