PÁSCOA 2021- Do Egipto até ao Gólgota
“E tomarão do sangue, e pô-lo-ão em ambas as umbreiras, e na verga da porta, nas casas em que o comerem. (…) E aquele sangue vos será por sinal, nas casas em que estiverdes; vendo eu sangue, passarei por cima de vós, e não haverá entre vós praga de mortandade, quando eu ferir a terra do Egipto.” Ex. 12: 7; 13.* “Então Pilatos, vendo que nada aproveitava, antes o tumulto crescia, tomando água, lavou as mãos diante da multidão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai isso. E, respondendo todo o povo, disse: O seu sangue caia sobre nós e sobre os nossos filhos.” Mt 27: 24-25.* O ocidente está profundamente marcado por estes dois momentos a que chamaria a rota do sangue. Entre a escravatura no Egipto e o carrego da Cruz até ao Calvário, impôs-se o peso da liberdade responsabilizante cujo fim seria totalmente imprevisível para nós, simples mortais: Que fazer uma vez chegados ao Sinai, uma vez observantes de um crucificado no Gólgota? Os Hebreus fora da sua terra, e os Judeus no seu território, mas ocupado, a Páscoa impõe-se, inevitavelmente, como o grande episódio da História da Fé e simultaneamente representação simbólica da luta existencial que todos nós travamos. Das águas do mar Vermelho que se abriram, aos montes e mar da Galileia que tanto ouviram a novidade da palavra inovadora; entre o faraó renitente em deixar sair os Hebreus e os interesses entre a forte hierarquia sacerdotal e Pôncio Pilatos, numa Jerusalém dominada pelo Império Romano, muito sangue correu para que, num impulso de uma força sobrenatural, força estruturante da alma humana, o rumo da História fosse radicalmente alterado. Esta rota do sangue impôs-se por uma força que não tem outro nome que não seja fé inabalável, o que significa esperança, sonho, mito, amor, coragem, desmedido desejo de infinito, de universo, de desconhecido, do “é agora ou nunca mais”, do “ganho tudo ou perco tudo, mas vou e não páro, não olho para trás!”; é o triunfo dos elementos que ocupam o seu lugar natural no universo do imaginário humano (que sabemos nós disso?) e que se resumem no grande móbil que é o poder da fé. Sinai e Reino de Deus identificam-se, porque onde Deus se manifesta, aí está o Seu Reino. São terra de Moisés e de Jesus, são a nossa terra, o nosso mundo. Somos feitos deste pó, e é assim, empoeirados, que vamos construindo, à nossa dimensão, as páscoas sucessivas neste solo sagrado no combate da nossa situação de seres de problema. Só assim a vida se impõe como possibilidade de transcendência, em que a liberdade não é o ponto de chegada mas o ponto de partida, porque só livre o ser humano pode objectivar a disponibilidade para Deus. No Sinai e no Gólgota aconteceu o segundo momento existencial: ressuscitaram todos, porque a ressurreição não é o regresso à vida de um cadáver, mas a subida a um nível superior de consciência - estão vivos no corpo e vivos na memória – com o conhecimento da Lei e pelo amor incondicional. A Páscoa apoucou o tempo cronológico e enalteceu o tempo sem fim de um universo cujo sentido passou a significar ressurgir, amar, perdoar. A morte morreu, a vida vestiu-se de esperança. É o fim da rota do sangue: abriu-se um novo caminho para todos e o túmulo ficou vazio. O Egipto virou uma página na sua história, o véu do Templo rasgou-se ao meio e, de facto, este povo é muito especial e este homem é o Filho de Deus. Que Páscoa querem impor-nos hoje? Não permitamos que insensatos nos confundam, que nos assustem movidos por interesses obtusos. Quem tem fé não tem interesses que não sejam o de viver em conformidade com Deus. Se for esse o seu objectivo, tudo o mais virá por acréscimo. Pense em que terra se movimenta a sua fé, que raízes a sedimentam, a que lugar pertence, que ideais a movem? Seria impensável, há bem poucos anos atrás, perguntas desta natureza no âmbito da vivência pascal no cenário de uma pandemia, por exemplo. Mas isso é o ruído desconfortável da ignorância. Quantas páscoas já aconteceram em situações dolorosas, desesperos em momentos terríveis, genocídios…? Mas a Páscoa a tudo sobrevive, e vai sobreviver sempre. Porém, o que choca é saber que a escravatura está a aumentar, que está solidamente implementada nas sociedades contemporâneas no séc. XXI. Se a Páscoa é mudança, pergunta-se: Para onde queremos passar, que travessia, que águas queremos que sejam separadas, qual é a nossa cruz e para onde a levamos? Onde está o Gólgota? Qual escândalo que nos envergonha, de que somos acusados, que faraós ainda nos prendem? A que profetas obedecemos? Moisés ou Jesus ou outros? Os profetas não são puros, apenas encarnações das nossas construções fantasistas, limitados à nossa criatividade, tão deturpadora quanto existencialmente necessária; criamos o que nos ultrapassa numa fé que se sedimenta no plano relacional, mas isso não nos dá o direito de impor os nossos modelos como verdades intransponíveis. É urgente aprender que a paz social só se constrói em tolerância. Afinal, que passagem acontece a cada ano quando lembramos o pão ázimo, as ervas amargas, o Calvário, a Cruz e a Ressurreição? A memória aviva o drama humano, classifica a terra como espaço de identidade, mas tem que impor como escola. Ricos e pobres, todos, vivem uma realidade que não podemos denominar de outra forma que não seja escravatura, porém, com uma diferença substancial: os senhores de hoje já não mandam construir cidades, nem catedrais nem monumentos sumptuosos, teatros ou estátuas em jardins geometricamente traçados, de cascatas e lagos com cisnes; vão longe os tempos das grandes florestas misteriosas e de peregrinações, vias-sacras, jejuns e orações prolongadas. Isso tornou-se um luxo de uma meia dúzia pertencente a organizações secretas ou de grupos economicamente desafogados. Hoje constroem-se auto-estradas, algumas onde não passa ninguém, ou barragens onde não há localidades, destroem-se florestas que dizem que ardem sozinhas, destroem-se mares e rios e os escravos são mais ignorantes do que os de outrora. Na Grécia Antiga percebiam de tragédia, hoje nem de sobrevivência. Os monumentos de hoje são uma agressão, o luxo chocante e nem o trabalho escravo sabem usar. Os escravos de hoje são descartáveis. Os senhores de outrora, sendo-o por decreto divino, mandavam construir sumptuosos lugares sagrados para agradar aos deuses humanizados e antropomórficos. As cidades tinham essas construções como referências identitárias, representativas de uma espiritualidade mais ou menos oculta, a fé impunha-se pela imponência, a beleza e o aparato arquitetónicos eram proporcionais às graças solicitadas e recebidas. Quanto à natureza, esta representava um papel de capital importância. Fauna e flora eram elementos metafísicos, eram respeitados. Os escravos de hoje já não picam pedra para os deuses (ai que bom), têm máquinas sofisticadas (magnífico). Todavia, mercê da aridez espiritual dos senhores, vão desertificando o mundo. Os escravos de hoje, em maior número que antigamente, desejam ser escravos porque não vão estender a mão à caridade (?), e sentem-se privilegiados por isso. Ter trabalho é um achado, muito embora cada vez mais o que ganha não lhe chegue para sobreviver. Os senhores de hoje, juntamente com os seus escravos bem domados, destroem as cidades que outrora se construíram a altíssimo preço humano. Não menos famintos, mais desesperados, porque aliciados pelo que não poderão jamais obter ou porque endividados, implementam-lhes a ira destruidora e o ódio. Quaisquer manifestações nas ruas destroem vidas de trabalho: são montras que se partem, pilham-se lojas e puxa-se fogo a veículos e contentores do lixo, agridem-se as forças da ordem. Gera-se o caos em nome de manifestações contra o racismo, a discriminação das mulheres, os problemas de género, os baixos salários; pretende-se destruir monumentos e estátuas, porque memórias de factos históricos, referenciais de épocas que marcaram episódios neste crescimento evolutivo que é o nosso, sempre a troco de sangue suor e lágrimas. Movidos pela ingratidão e pelo complexo da sua própria cor, raça e etnia, atacam os que os recebem, lhes dão trabalho, casa, saúde, educação. Dito de outro modo, os escravos de hoje trabalham arduamente para os outros escravos, mercê da manipulação de que são alvo ao mesmo tempo que falam de Deus. Nunca se deixou de falar de Deus. Os séculos de história, cujos episódios fazem parte dos anais identitários de uma nação, de repente tornaram-se factos do presente como se tivessem acontecido ontem ou já esta manhã. Tudo isto fazendo parte de um mecanismo empobrecedor da humanidade em que se pretende apagar o passado ou remetê-lo para museus, como se fosse essa a função do museu. Mas é claro, num mundo de escravos têm-se os museus como prisões de alta segurança, onde a maioria dos condenados estão em prisão perpétua. Ora a história não nos envergonha porque ela é o que é em toda a parte; é uma narrativa de boas e más acções; é isso que temos, o diário da vida. Há que enfrentar a nossa natureza e perceber que a perfeição não é deste mundo, mas que isso não obste a lutar por ela. Dividir o mundo entre bons e maus, culpados e vítimas é conduzir a humanidade aos perigos das binaridades; é cultivar o ódio e a violência sociais, cujos resultados estão bem à vista. A memória de um povo é a sua identidade, o que dá corpo a uma cultura, aquilo que o investe de uma fé, que o torna singular e simultaneamente o universaliza porque é partilha; ninguém quer recordar nada sozinho. Ora nada existe de mais deprimente que desmemoriar o percurso de uma nação, manipular opiniões com o fito de que esta seja olhada com desconfiança, mercê da sua história. Celebrar a Páscoa não é lembrar o passado com desdém, mas tornar presente um episódio de fé triunfante. Não falta quem diga que nada aconteceu, nem a travessia pelo Mar Vermelho, que por coincidência é azul, nem a crucificação/ressurreição de Jesus são verdade; que estamos no coração do mito. Mas o mito é uma história das origens, que conta o que de outra forma não se é capaz de explicar. Mito e fé jamais deixarão de coexistir. Sem eles, o que é que nós explicamos? Nada. É precisamente neste contexto que a memória não se pode apagar, sob pena de obstar o progresso. Não se pode jogar com a memória como se fossem dados e lançá-los no tapete de jogo. A memória não vence nem perde, existe e faz acontecer, confere razão, justifica e enaltece. A Páscoa é uma antropologia, o grande kairós do ocidente; é universalidade, é ser mais crente porque agora livre e responsável. A Páscoa não anula o escravizador, pelo contrário, convida-o para o banquete porque ele também é filho de Deus. A Páscoa é paciente e pede apenas: “Deixa o meu povo ir-se embora”; a Páscoa é o espanto teológico: “O túmulo está vazio, Ele não está lá!”; a Páscoa é um banquete histórico, é um toque nas chagas ainda frescas; a Páscoa é não precisar de ver para crer; na Páscoa cabem as maiores certezas e as maiores dúvidas; não é um fantasma que aparece mas “sou Eu, não temais”. É urgente descrucificar a humanidade. É claro que dá muito trabalho perguntar: “E eu, em que medida sou melhor? Trago comigo alguma mensagem de paz e de fraternidade? Qual? Eu quero ser um veículo ao serviço do bem? São claros os interesses que me movem?” Coloque a si próprio/a estas e outras questões nesta Páscoa. Descubra-se como ser humano ao serviço de Deus que o quer livre para amar o mundo, e só assim amá-Lo. Que sentido tem tudo isto nos tempos de hoje? No Egipto, os Hebreus fecharam-se em casa para deixar passar o anjo da Morte, que, identificados pelo sangue à entrada das casas, sobreviveram. Jesus derramou o seu sangue em nome de um Reino que não definiu como é, mas cuja linha mestra pregou, o Amor. Quem eram eles, Moisés e Jesus? De onde vêm e qual a sua verdadeira natureza? Porque nos legaram tamanha nobreza espiritual? Vá descendo do Monte Sinai até ao mundo, não lave as mãos indiferente ao sofrimento de ninguém, tornar-se-á protagonista da mensagem pascal: Lei, Liberdade, Amor e Perdão. Tenha uma santa época pascal. Margarida Azevedo *Bíblia Sagrada, trad. ALMEIDA, J. F. de, Sociedade Bíblica, Lisboa, 1991. *Idem. Nota: Para melhor esclarecer os episódios em questão, aconselho a leitura, na íntegra, de Ex 12 e Mt 27: 11-31.