DA RELIGIÃO AO INFERNO
“Aproximou-se dele um dos escribas que os tinha ouvido discutir e, vendo que Jesus lhes tinha respondido tão bem, perguntou-lhe:” Qual é o primeiro de todos os mandamentos?” Jesus respondeu:” O primeiro é, escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Senhor, e amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento e de toda a tua força. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior do que estes.”* Mc 12: 28-31 Não faltam as leituras, as orações, os rituais, os estudos teológicos e exegéticos complexos; não falta o oculto, não falta o exoterismo/esoterismo; não faltam as caridades, não faltam as manifestações de rua, como as procissões de toda a ordem, os feriados religiosos, as peregrinações; não faltam as instituições para todo o tipo de necessitados, crianças, idosos, adultos, desempregados; não faltam saídas profissionais para alguns, escolas, estudo artístico, teatros; não falta a saúde, clínicas e hospitais; não falta quem chegue à política, não falta a internacionalização de tudo isso, o expansionismo, a magnitude; tudo dentro do âmbito das religiões, tudo com o objectivo de purificação, porém, é tão grande a majestade e a imponência quão o falhanço total que a caracteriza. Os discursos e as práticas não foram absorvidos porque a mensagem não passou, a vida quotidiana foi praticamente sempre incompatível com o religioso porque a disputa entre ambos pela supremacia e consequente conquista do poder tem sido uma luta de titãs. A laicização, um salto civilizacional considerável, muito timidamente vai conquistando algum lugar. As religiões têm-na retratado como uma espécie de governo diabólico, pois interessa-lhes tomar as rédeas do poder, alimentando a crença de um mundo paralelo luminoso para os subjugados da terra. Consequentemente, a promessa de salvação tornou-se num processo avaro. Querer salvar-se é o grande sacrifício existencial, labuta interminável do Espírito para atingir o além livre de impureza. Crer tornou-se caminho de penitencial fuga a uma maldição, porque viver é estar exposto, permanentemente, ao feitiço do demónio, representado, habitualmente, por gente cujo discurso vai ao arrepio do que se ouve nos meus cultos. Assim, crer em Deus é proteger-se das maiores negatividades, que habitualmente vêm do vizinho do lado. Essa suposta salvação, que não se define, nem se sabe o que é, na perseguição de um ideal de paz eterna, descanso absoluto ou prazer sem fim, associado à idolatria fantástica de imagens irreais que se confundem com humanos super-poderosos, ou idolatrando o próprio Deus, clérigos propagam e alimentam os fantasmas dos crentes, criando fanáticos, autênticas máquinas de conflitos. E assim, entregue a uma híper valoração da razão, por um lado, e a uma fé perigosa quão absolutizada, por outro, o ser humano vive as suas disfuncionalidades existenciais, numa luta de consciência, pesada, é importante lembrar, na medida em que viver é carregar um fardo, para alguns do passado esquecido, para outros na temeridade de poder não ter garantida a tal salvação eterna. Entre o pecado original, o karma, a superstição, a idolatria, as verdades de algibeira, a certeza de que a sua religião tem que ser, custe o que custar, caminho da humanidade inteira, desenvolveu-se o impulso missionário à conversão dos infiéis “ignorantes e perigosos”, não olhando a meios para atingir os fins, na tentativa de erradicar definitivamente os bruxedos, maldições, e tudo o que é considerado falta de fé, autêntica obra do diabo. O móbil é o medo, a linguagem o instrumento, a promessa de fusão com Deus o alvo. Resultado, um crente faz tudo o que lhe ordenarem. Há uma omnipresença do líder através da fórmula ou do texto, que toca mentalmente os crentes, ficando os mesmos disponíveis para tudo… Se tudo isso fosse para o bem, em que paraíso não viveríamos!? Entre a defesa de um sofrer sem queixume, o silenciar de problemas, quantas vezes atrozes, o isolamento e consequente associalização, as imposições de cariz sexual, as dietas sem nexo e os jejuns prolongados, as abstinências de toda a ordem, enfim, tudo em nome do divino, conduzem à ilusão de que só assim há a garantia de um lugar no mundo dos bem-aventurados, e que urge espalhar pelo mundo. São esses líderes ávidos de poder, de lugar reservado na abastança, que fazem das religiões o caminho em linha recta para a desarmonia humana, uma psicose colectiva, um autêntico inferno. Quanto maior a miséria, e maior o fanatismo, maior a garantia. O sofrimento é a grande arma, a maior das mercadorias, a descomunal e garantida forma de lucros astronómicos, logo o poder. Os problemas relacionais daí decorrentes, e a insegurança recalcada que os caracteriza, porque onde há muitas certezas há muitas dúvidas, são criadores de novas formas de nacionalismo. Dito de outro modo, a religião instrumentalizada, e as escatologias que transporta, são essenciais aos manobrismos políticos totalitários. A corrupção política não teme os ateus, tal não consta nos programas eleitorais, mas sim as instituições poderosas que são as organizações religiosas. Os sistemas de dominação não conhecem nem distinguem fé e ateísmo, nem precisam de se preocupar com tal coisa. Aceitar ou rejeitar o religioso, pelos líderes políticos, tudo vai depender da posição dos clérigos e da sua capacidade de liderança da massa de crentes. A profusão de ideias totalitárias através de técnicas de oratória, numa base de que a minha doutrina é a única salvífica, trará a qualquer crente, do mais iletrado ao mais conhecedor, a esperança de que tem a possibilidade de um lugar ao sol, na política, no desporto, dentro da própria organização religiosa, porém da qual ficará dependente para o resto da vida. Mas isso também não é importante. As regalias de que irá usufruir pagam e abafam tudo isso, com a garantia de protecção (?) para si e para os seus. Nem se dão conta dos manobrismos mentais em que vivem adormecidos. Há milhões a viver em estado de graça, de sorriso resplandecente, sob a alçada de líderes autênticos sociopatas. Quando algum desses crentes acorda começam as perseguições, e a vida torna-se uma crucificação. Isto significa que a religião com maior número de crentes é a que reúne as melhores condições para requerer benefícios sociais e políticos e o domínio sobre todas as demais organizações suas congéneres, a que vai instituir noções de paz social, de justiça e de igualdade. Neste triunfo da hipocrisia, tudo em nome de um ser tão puro quão terrífico e desonesto, ciumento e ávido de poder, cruel e maléfico, do qual fazem parte todos os que acreditam que pensam por si próprios, mas que no fundo são apenas peões no complexo xadrez, assenta uma micro-sociedade distinta da sociedade civil, micro-estados dentro do Estado, com leis próprias, não raro quantas vezes em recta de colisão com as do Estado. Para o fanático, o Invisível atrai, não pela Liberdade e Amor, mas pelo medo e pela ausência de acesso a outros discursos. Por outras palavras, a supra magnitude de Deus torna-se numa virose. O consumismo nefasto e escravizante, no entanto um privilégio de Deus para alguns, concomitante com a defesa da pobreza para milhões, é gerador da confusão entre mundo material e espiritual. Não há uma relação de contiguidade entre ambos. Enquanto os crentes forem incapazes de perceber que os clérigos, as castas ou dirigentes religiosos são tão de carne e osso como qualquer pessoa, com idênticos problemas, com os mesmos pecados, fracassos e desaires, continuarão a confundir o pregador com o objecto da pregação. Quando os clérigos descerem dos seus púlpitos onde pregam com pompa e altivez as suas verdades universais, ricamente paramentados, vestidos de branco, ou ridiculamente envergando uma pobreza dissimulada, entrar-se-á noutro caminho. Por enquanto, temos a avidez pela supremacia das acções de solidariedade social. Isto significa que as organizações mais pequenas têm grande dificuldade em constituir associações para distribuir alimentos, roupas e medicamentos, em construir casas para deficientes profundos, lares de repouso para idosos, centros de acolhimento para crianças em risco e vítimas de ambiente familiar desfavorável. Quando o conseguem, utilizam designações que nada ou muito pouco têm a ver com elas. Coitado de quem precisa, lá diz o povo. Aquele que recebe limita-se a aceitar, como é natural, alheio ao que se passa. Ignora que, na verdade, ninguém quer saber dos pobres. Estes o que recebem não é por espírito de amor ou por sensibilidade ao sofrimento, isso está reservado a alguns voluntários. Eles recebem mediante o que por sua vez recebeu, ou vai receber, aquela organização que lhe deu a esmolinha, que favores, que contrapartidas. Não faltam os prémios às boas obras sociais, às grandes organizações de solidariedade social, nem aos de coração despedaçado com tanta pobreza. Parte desses dirigentes nunca espetaram um prego nas respectivas instituições que representam. Têm a mão-de-obra voluntária, sempre disponível para trabalhar a qualquer hora, carregar e pagar do seu bolso combustíveis e produtos de toda a ordem. De facto, é realmente misterioso como com tantas instituições ainda haja pobres e tão pobres. É que… a pobreza interessa, e muito. Religioso e caridade tornou-se, infelizmente, um binómio inseparável, quando, na verdade, cabe aos Governos a luta pela melhoria das condições de vida dos seus cidadãos. Os Governos não podem continuar a fugir às suas responsabilidades encostando-se à religião dominante. Por outro lado, a caridade, que nos actuais moldes das políticas sociais continua a fazer sentido, é apenas remendar a sociedade, escondendo ou camuflando a incompetência de quem governa, fazendo da governação um meio de tirar proveito pessoal ao invés de governar os países. As religiões sabem-no melhor do que ninguém e aproveitam-se disso. É importante pensar que pedir esmola é o acto mais indigno de todo o ser humano, que nasce com direito ao trabalho, acesso à saúde e à educação; dar esmola é alimentar a pobreza. Nesta amálgama onde tudo se indiferencia - delírio, misticismo, medo da morte, desejo de imortalidade e supremacia doutrinária - crescem os mitos, não à semelhança da Grécia Antiga, mas os da luta silenciada de consciências em conflito consigo mesmas: se sou pobrezinho/a vou para o céu, o contrário, vou para o inferno. Mas eu não quero ser pobre.” Num mundo onde a pobreza aumenta assustadoramente e em que todos começamos a sentir que estamos em linha recta para a miséria; onde se vive a precaridade, a insegurança, a instabilidade; onde sentimos que hoje estamos relativamente bem e amanhã estamos no fosso; onde povos lutam pela sua terra, enfim, é crescente o número daqueles que trabalham a troco de nada, ou de muito pouco. Crescem os silenciados, desenvolve-se de dia para dia a ignorância; tudo se aceita, tudo se justifica; o espírito crítico se dissipa com o medo de falar, pensar tornou-se perigoso. Amar a Deus e ao próximo virá um dia. Por agora ainda estamos demasiado longe, muito embora já comece, timidamente, a ver-se uma luzinha ao fundo do túnel. A religião tem que se tornar outra coisa: respeito e amor pelo próximo. Isso será a coisa mais surpreendente da nossa existência. Deus será Silêncio, uma doce felicidade no coração de cada crente. Para quê falar de Deus? Não será preciso. Porém, o caminho nunca poderá ser unívoco, porque há muitas moradas na casa do Pai. Que grande harmonia, essa, em que viveremos. Margarida Azevedo *Bíblia, Novo Testamento, Os Quatro Evangelhos, Quetzal, Lisboa, 2016, vol I, trad. Frederico Lourenço. Consultar: Mt 22:36-39; Lc 10: 27-28; Jo 13: 34-35.