O Medo de Parar
Neste mundo cheio de pressa e tão agitado, criou-se o medo de parar como se este fosse um acto de desleixo e cobardia. Parar tornou-se sinónimo de fraqueza, incompetência, egoísmo. Parar é mostrar fraqueza, ser contrário à avidez em vencer a todo o custo. Descobriu-se o movimento ininterrupto, já não dos planetas, da expansão dos universos, do eterno retorno, ou da infinitização do finito quando se tem a si mesmo como uma representação perfeita da Infinidade na complexa evolução espiritual. Não. Somos infinitos na capacidade de nos escravizarmos, porque os imparáveis. Vive-se a insónia de um cérebro sempre em vigília, de um eu fora de si próprio, resultante de um lugar que se habita por imposição, de um tempo que há muito deixou de o nosso, porque podemos não saber o que é o tempo, pode passar-nos completamente ao lado, mas sem a imperfeita noção do tempo caímos na loucura da falta do tempo, porque viver-se um tempo que não é o nosso é viver o furto do tempo que é só nosso. A pessoa tornou-se tão distante de si própria que foi criada uma lonjura quase intransponível dos seus próprios desejos, das suas mesmas singularidades, como se o particular fosse um mal altamente perigoso. Parar tornou-se a grande fantasia. Faz correr rios de tinta em textos cheios de teorias tão vãs, Deus meu! São os novos bestsellers do tipo: mexeram nas minhas coisas; acabei o chocolate; a grande descoberta do século XXI, Jesus era homossexual. Ou seja, se páras, pagas um preço, porque parar conduz, inevitavelmente, ao grande perigo: pensar. A famosa socialização tem esse lado: correr e correr cada vez mais, não ter tempo para si, para pensar em si e por si, numa ânsia sem fim de estar actualizado, a par de tudo o que se passa, principalmente do que está muito longe. Esta distância de nós próprios, cada vez mais alta, escarpada e íngreme, é um rochedo esbatido pelas profundezas de um oceano onde habita uma infinidade de seres que nos passam despercebidos: o crescimento dos filhos, questões existenciais, o envelhecimento, a ansiedade motivada pelo silêncio imposto porque “a minha singularidade não é importante”… Se se perguntasse a si mesmo “quem são os meus filhos?”, estaria preparado/a para o que viesse? De repente, é como se o caminho existencial se bifurcasse a cada instante sem conexão com a nossa própria vontade. A par e passo nos sentimos contrariados por todos estes desencontros/encontros. Por isso, há quem tenha medo de parar porque se teme a si mesmo, e às surpresas decorrentes. Não é fácil descobrir incompatibilidades entre o eu e o outro, tal como não é fácil descobrir que aderiu ao que não queria, e nem sequer se deu conta disso. Não é fácil verificar que os elementos estruturantes que marcaram uma vida inteira são castelos de cartas que pareciam estar a pedra e cal. E depois surge a pergunta sobre a lucidez, e o móbil de tudo isso, e o sentido. E surge também um desejo incontrolado, uma avidez de que aquilo que está lá bem dentro venha cá para fora, se torne público, aceite, seguido por alguém. É o querer avidamente ser líder num contexto de raiva por se sentir impotente, fraco, frágil. Por isso não pode parar, porque é perder a eficiência. De repente, parecemos artistas de uma arte qualquer à procura de reconhecimento, de uma oportunidade, de uma aprovação incontestável. Porém, há quem entre em grande conflito interior: o medo de cair em obsessão. Que obsessão? É simples, o outro pode ser transportador de coisas muito negativas e estas podem passar para mim. Então há que criar uma distância face a ele. E aqui reside a pan-obsessão da humanidade inteira: o outro carrega um mau presságio. Parar implica estar disponível para enfrentar e desmistificar, e isso assusta. A humanidade persiste no mau caminho porque o Bem é a coisa que ela mais teme. É com o nosso interior que temos que nos ocupar, esse rochedo impenetrante de sentimentos diversos, parasitas à sombra de um Deus que queremos sempre à nossa dimensão, disposto a aceitar as nossas incongruências e a perdoar as nossas birras. A humanidade tem perdido tempo à procura de um Deus mais pequeno, inferior, impotente, porque não age como desejaríamos, um Deus ditador. Como? “Deus não estava lá quando precisei Dele”, Deus não castiga os maus; como é possível que Ele permita que as crianças sofram, que haja guerras, tanta miséria e outros na abundância? É o que se ouve mais vezes. Depois vem uma racionalidade ou uma fé que são tudo menos isso. É o momento da frivolidade, aridez, narcisismo, insensíveis a tudo. Dito de outro modo, é a falta da tal lucidez que só ao Amor pertence. Vamos perder o medo de parar, porque a paragem conduz à vigilância, e esta à verdade. Gandhi diz, na sua peculiar sabedoria: “Existe tanta superstição e hipocrisia que as pessoas têm medo de fazer o que é correto. Contudo, se o indivíduo ceder ao medo, até mesmo a verdade terá de ser suprimida. A regra de ouro é agir de maneira destemida naquilo que considerar correto.”* No fundo, o que mais irrita a humanidade é a permissão divina perante as coisas horríveis que fazemos. O que verdadeiramente condenamos em Deus é o excesso de permissividade que, se assim não fosse, expulsava-nos da nossa responsabilidade. Certamente é porque Deus não conhece a condenação, só a aceitação. Insuflar o ar nas narinas é deixar de ser um boneco a que se limpa o pó e coloca numa prateleira. Somos nós que nos condenamos na loucura de pensarmos que somos superiores a alguém, de alguma forma, em algum aspecto. É a loucura da verdade embriagada, da imaginação, da fantasia da dualidade superior/inferior. O ar insuflado nas narinas confere ao barro a capacidade de teatralizar uma realidade indizível: a ausência da tal resposta à tal pergunta: porque existo? Páre e pense nela. O espanto já não é um despertar repentino com o que está à nossa frente e acontece no eterno movimento. Espanto significa ser capaz de olhar para a frente, sem ver nada, mas a saber que alguma coisa está lá, impulsionado por uma certeza de algo que desconhece. É espantoso como Deus nos troca as voltas. Margarida Azevedo ______________________________ *GANDHI, M., O Caminho da Paz, 4 Estações Editora, Parede, 2020, p.55.