segunda-feira, outubro 31, 2022

DAS RELIGIÕES OU DO ABISMO INFERNAL I

(o triunfo dos maus)
Imagem de uma parte do quadro "O Inferno" de Hieronymus Bosch “O mal, mesmo nas suas mais benignas manifestações, parece ser um desafio lançado à razão.” Susan Neiman (1) Influentes e manipuladoras, perigosas e temidas, corruptas, discriminadoras, opostas ao progresso, as religiões continuam impunemente a ensombrar a história da humanidade. Tê-las contra si, enfrentá-las criticando-as, seria o fracasso na política, a perseguição social, o descrédito, a perda dos cargos altos, uma verdadeira e temível condenação às galés. Prometer a ascensão a uma vida cheia de maravilhas e felicidade no mundo invisível e paradisíaco do qual jorra abastança e prazer eternos, proferido nos lábios de um representante de Deus, é sucesso garantido. Acenando com a promessa de salvação eterna, de fusão com a Luz divina, de perdão total das ofensas e de todas as práticas, o discurso religioso tem garantida a obediência cega aos seus líderes, baseando-se no medo como forma de garantir a adesão das massas. Não há discurso mais manipulador do que o religioso, ele toca no mais fundo de nós mesmos, no mais autêntico. Cada seguidor convicto aceita incontestavelmente que a sua religião é a verdadeira. Se tomarmos como exemplo o conceito de eleito como um ser de uma estirpe superior, escolhido pelas suas capacidades transcendentes, ou porque a vida lhe deu um trambolhão de forma que aquele ou aquela se revelasse como um/a iluminado/a, então temos a intolerância, a disfunção social, a desconfiança, tudo ingredientes para desestabilizar a paz social, agredir, matar, destruir tudo o que não partilhe dos mesmos ideais e não fale a mesma linguagem. O eleito é aquele que sabe conduzir o rebanho como ninguém, e por isso todas as religiões têm os seus eleitos. São eles que lhes conferem o estatuto de verdade universal. O eleito é uma peça fundamental da engrenagem religiosa. Nos bancos da faculdade aprende-se que as organizações religiosas, tal como as militares, perduram no tempo porque não são democráticas. Isto significa que têm uma hierarquia bem definida, à qual cada subalterno deve obediência total. No entanto, a comparação não parece masé coerente, pois que militarismo e religião não são propriamente a mesma coisa. São, isso sim, organizações contíguas, que interagem aquando de conflitos armados, como, por exemplo, solicitar a protecção divina através da bênção de um clérigo. Quanto à democracia, isso já é outra coisa. Sempre que surge um laivo de democratização, a religião dá um salto qualitativo notável. É disso exemplo a abertura, ainda que tímida, às outras organizações congéneres, o esforço pela ecumenização e inter-religiosidade, tal como a crescente importância do papel dos leigos nos grupos cristãos. Lamentavelmente, o ecumenismo ainda é visto com bastantes reservas. Há quem o associe às forças maléficas, ao infiel, ao fervilhar da perda de identidade, e até mesmo à conversão a outra religião. É curioso como os meios religiosos se temem, assustados com o enfraquecimento das suas ideologias e consequente perda de seguidores, o que significa perda de influência, benesses, riqueza, enfim. Daí o salto de trapézio para a manipulação da temática do infiel, esse ser nocivo e perigoso que não existe apenas nos grupos concorrentes. Dentro de uma mesma organização, ele é uma espécie de espião ao serviço do mal, um traidor que urge anular. O mais temível infiel é o que mete a mão no mesmo prato, alguém que põe em causa princípios, navegue por outras leituras ou faça perguntas incómodas. No religioso, a estabilidade significa obediência como forma de fidelidade, não o fervilhar de pensamentos livres com perguntas desnecessárias. A religião tem sido avessa à pergunta livre. Manipulando a fragilidade dos seguidores, faz da fraqueza a sua força. Através da linguagem, dotes de oratória, programação neuro-linguística, belos discursos apelativos a tudo o que desejamos. O tão famoso dom de palavra, o brilhantismo do raciocínio, os pensamentos profundos, a sabedoria e o radicalismo das ideias são elementos fundamentais. Apelando à tradição, não se confunda com lei nem com estagnação, transportam os seguidores para um passado de paz sideral, como se o passado fosse superior ao presente. Daí a identificação desses seres imaginários longínquos que habitavam o mundo, puros e sábios, sem qualquer referência consistente, figuras do inconsciente individual e colectivo, como seres milagreiros e fabulosos. De facto, o passado sedimenta, estrutura, enraíza, dá poder. O passado é uma autoridade. Quanto aos profetas, lamentavelmente, servem mais como uma referência que facilmente se manipula do que como mestres e pedagogos. Jesus é, provavelmente, o maior exemplo. Historicamente, as religiões confundiram crentes com reféns, aprisionamento com libertação; traçaram caminhos para o interdito em vez de estradas para Deus, puseram a vida em suspenso minimizando o seu valor, desprezaram e manipularam a Natureza. Criaram psicoses do tipo: ricos que vivem como pobres por revolta, não por opção de vida; pobres distanciados dos ricos, por espírito de inferioridade ou castigo divino, gente psicologicamente instável. Em pleno século XXI, ao invés de combaterem as novas formas de escravatura (o mundo nunca deixou de ser esclavagista), as religiões servem-se dela como terreno fértil para explanarem as suas teorias. Não se vê um combate firme contra esse flagelo. Por outro lado, “o tema da salvação”, tão perigoso e tão bem manipulado desde sempre, e superlativamente pelas novas igrejas cristãs, “é apresentado de maneira eficaz no duplo registo de felicidade interior e saúde física e de sucesso social.” (2) E como é que se consegue isso? Pela mão de Deus, que faz coisas maravilhosas, que é Todo-Poderoso, e que, porque é Deus, executa milagres. Assim, “(…),a dimensão do milagre faz parte de uma estratégia comunicativa e persuasiva eficaz (…) ” (3), dizem os referidos autores para provar a importância da oração. Sem o milagre não há seguidores ávidos de uma vida ao sol, e as orações perderiam sentido porque ineficazes. É o religioso ao serviço do deus-faz-tudo. Segue-se a temática da Nova Ordem Mundial: o mundo será um lugar de fraternidade, para sempre, os maus serão erradicados de vez, as guerras acabarão e todos viveremos em paz com Deus. Este cliché milagreiro tornou-se transversal ao pensamento religioso ocidental, e também oriental numa imitação do Ocidente. Pensam alguns, que será o fim radical deste modelo organizativo em que vivemos, inauguração de um outro menos opaco, mas nem por isso menos radical. Porém, obstamos nós, se não houver uma aposta na modificação interior do ser humano, como se poderá dar início a uma nova ordem? A nosso ver, a questão não se coloca em termos de velhas ou novas ordens. A solução é outra: educação para a fé, tolerância e diálogo. O sonho com uma limpeza espiritual do planeta e a consequente expulsão dos maus não tem em conta o necessário exame de consciência porque: “Eu pertenço sempre ao lado dos bons”. O que verdadeiramente se precisa é que conceitos como santidade, perdão, benevolência, pureza, partilha, enfim, se instalem, livres, aos corações humanos. Por estes tempos, ludibriados pela tecnologia, estão desactualizados e descontextualizados, é o que parece. Tornaram-se numa espécie de palavras pirosas e fora de moda. As novas vivências sociais não se coadunam com tais objectivos, uma vez que vão ao arrepio das exigências modernas: gente com espírito de liderança, com sangue na guelra e garra para vencer, derrotar obstáculos, capacidade de trabalho e resistência psicológica para abdicar da vida privada; gente rápida no pensar e no agir, disponível a toda a hora; campeões do discurso, vencedores esmagadores, gente destemida. Estamos num mundo onde deixou de haver lugar para quem não fica em primeiro em tudo: medalha de ouro na corrida, equipa vencedora, a nota mais alta no curso. Não é preciso grandes reflexões para perceber que ninguém quer lutar pela santidade num mundo destes, porque a santidade não tem cabimento, é fracasso garantido. A santidade é uma barreira porque valora o Suficiente como um Ás. A santidade está ao alcance de todos, mas não se quer um mundo para todos, nem todos para o mundo. O princípio da expulsão dos maus para ficarem os bons é apenas uma falsa teologia, assente na discriminação, intolerância e separatismo. Os maus acabar-se-ão quando os que se dizem bons os amarem e compreenderem; quando os bons deixarem de ser super-poderosos, super-inteligentes, super-racionais, super-ambiciosois. Enquanto um punhado de bons, psicóticos e iludidos, teimarem na insaciedade de quererem tudo possuir, fazendo da vida um pesadelo, haverá sempre maus para os combaterem na luta pelo direito de serem alguém. E se falarmos de perdão? Nem pensar. Confunde-se perdão com esquecimento, tal como se confunde santidade com parvoíce. De facto, perdoar exige, de alguma forma, um olvido, mas não no sentido de apagão. Os acontecimentos não se apagam, compreendem-se. O perdão é a coragem de dar espaço e tempo para que o outro se revele a si mesmo, numa descoberta que é sempre uma partilha. Perdoar é perceber que o outro é portador de outras realidades e outras vivências. Eu também tenho que ser perdoado/a. O perdão é uma reciprocidade. As pregações, porém, não vão nesse sentido. As religiões vivem o conflito interno entre um mundo que não acompanharam e uma discursividade culpabilizadora que já não é ouvida. Ninguém procura uma organização religiosa para ser culpabilizado por tudo o que lhe acontece. No entanto inventou-se este mantra: “a culpa de tudo o que me acontece é sempre minha”. Se uma pessoa que é assassinada, a culpa é dela, o mesmo se é violada, roubada, etc., é difícil perceber esta culpa. Outros remetem para um tubo de escape que não pega: isso tem a ver com vidas passadas. O reencarnacionismo não é isso. Este deus milagreiro precisa com urgência de ser o Deus-Amor em outra gramática existencial. Precisamos de nos abrirmos a uma nova antropologia, inaugurar um novo léxico: não há pecado que fique para trás e que não mereça reflexão, não há ignorância que não mereça ser combatida; não há convertidos nem ateus. Há o Bem. Ele é o que mais vale a pena entre tudo o que de mais merecedor existe. O Bem deseja-nos, não continuemos a fugir-lhe. O Bem não suporta fobias, nem fantasmas, nem ídolos. No século XXI, Deus já não faz sentido numa dinâmica de acreditar, mas na da certeza maior. Já não tem cabimento uma fé milagreira, mas a da certeza de uma Presença. As religiões não podem continuar a ser máquinas de guerra, nem estatísticas, nem massas de gente disformes e impessoais. Impõe-se uma radical mudança de paradigma: o religioso tem que se tornar sinónimo de Paz em plenitude, na Terra, aqui e agora, imediatamente. As religiões não podem perder mais tempo. Lutar pela felicidade da humanidade é sempre tarde. Já deviam ter começado ontem, e anteontem. Se as religiões não arrepiarem caminho, o mundo está perdido: sem esperança e sem Deus. é caso para perguntar: Quando é que as religiões deixam de ser organizações ateias? O religioso vive dentro de nós, num mundo sem respostas, sem facilidades, mas cheio de perguntas, onde a maior é, sem dúvida: porque existimos? Podemos pensar Deus, sentirmos o privilégio de sermos o barro moldado, soprado pelas narinas, mas não deixamos de nos sentirmos perdidos na interrogação existencial, numa luta constante nesta densidade barrenta. O trágico, que tão bem nos define, não se anula com um passo de mágica, com super-poderes vindos de um ser tendencioso, nem por meio de um espectáculo da ribalta que deixa todos de boca aberta. Não podemos continuar a perpetuar a discriminação hipocritamente baseada em direitos que não são verdadeiros. As religiões jamais o deveriam permitir. É inútil procurar a protecção espiritual como um sonho ou uma quimera, nos discursos da mais bela inspiração ou na maior das eloquências sapienciais. Nós até podemos falar a língua de Deus e dos anjos,……. mas sem amor tudo isso é como o sino que tine, adverte Paulo (1Cor 13:1-13). Quem protege é somente Deus com o Amor que Dele irradia. Com Ele, não se conhece isolamento nem segredos, não há ocultos; não há gente especial, nem privilegiados; não há interesses. As religiões têm que ser espaços de vivências de fraternidade universal, encontro de gente com quem partilharmos a caminhada. O religioso tem que ser caminho. Lamentavelmente, a diabolização do outro não pára de crescer. Continua-se a fugir de diabos, representados sempre no outro, como aves de mau agouro. Somos falsos atletas que ainda não perceberam que apenas fugimos de nós próprios. Somos nós os diabos de quem fugimos. O outro tem que ocupar um lugar muito especial no nosso coração: de todos os mundos, de todas as palavras, de todas as ciências, de todas as sabedorias, ele é o mais especial. Ele não é uma definição, mas um rosto de Deus. O outro é o espanto no vazio da minha linguagem; contribui, efectivamente, para a descoberta ímpar do eu. Ninguém caminha sozinho. 

 (continua) 

Margarida Azevedo 

 Referências (1) NEIMAN, S., Philosophie magazine, Paris, octobre 2022, n.º 163, p.66. (2) PACE, E., STEFANI, P., Fundamentalismo Religioso Contemporâneo, Apelação, Paulus Editora, 2002, p.47. (3) Id., ibid,