NATAL 2022 - UM JUDEU EXAGERADO
Quem nunca por amor exagerou na dádiva
e na entrega; quem nunca gastou mais do que devia; quem nunca correu esbaforido
para o autocarro para um encontro marcado de cabelos ao vento de presente na
mão e laço a desprender-se; quem nunca gastou desmesuradamente num supérfluo
qualquer, uma coisa que, numa cumplicidade só a dois, toma o poder do simbólico
meu e teu só nosso; quem nunca desperdiçou por amor; quem, enfim, não caiu no exagero
mais colossal, então nunca amou.
É
alguém para quem a esperança passou ao lado, a fé sempre andou coxa, perdeu-se
nas contas das poupanças redutoras, virou os valores ao contrário, permitiu que
o momento de grande loucura se perdesse na racionalidade do que chamou
coerência, enfim, perdeu-se em coisas que o amor não conhece.
E por falar em amor. Se neste Natal
Jesus nos pedisse que fizéssemos um desenho do amor? Certamente ficaríamos
espantados, daríamos um salto, esfregaríamos os olhos, tal como aconteceu a
quem o principezinho pediu o desenho
de uma ovelha. A resposta pela dificuldade em satisfazer tal pedido não se fez
esperar: “As pessoas grandes obrigaram-me
a desistir da minha carreira de pintor aos seis anos e eu não sabia desenhar
nada, (…)” (1)
De
facto, o outro é sempre um ponto de referência metafórica para as minhas
incapacidades. Há sempre um resíduo, raízes profundas fora de mim que são a
razão dos meus fracassos. O principezinho,
voltou, no entanto a insistir. A persistência, que nos leva a contrariar o
mito do outro como a sedimentação de uma incapacidade, conduziu à obediência
nesta base: “Quando um mistério é grande
de mais, não nos atrevemos a desobedecer.” (idem, ibidem)
Tal como o Principezinho, insistiu dando força ao mistério do pedido, assim
Jesus nos pede um desenho do amor. O principezinho
veio do céu, de outro planeta. Também Jesus, lá donde ele vem, nos provoca
todos os anos a pedir um desenho do amor. Atrevermo-nos no mistério grande é,
efectivamente, encontrar a beleza nas coisas simples, não nas obras-primas.
Talvez, como o principezinho,
escondêssemos a nossa incapacidade numa caixa e disséssemos que o nosso amor, porque
é tão pequenino, está dentro de uma caixinha.
E sendo tão difícil desenhar uma ovelha
quão impossível o amor, este Natal será o momento para quebrar ideais de
perfeccionismos. O Natal é o desafio sempre em aberto.
Numa retrospectiva dos anos que já
vivemos, interroguemo-nos sobre as loucuras que não fizemos e devíamos ter
feito e que culminaram em natais que não aconteceram e que deviam ter
acontecido.
Damos connosco a pensar que o tempo se
esvoaçou fugaz, confusos, um tanto, no arrependimento das coisas que não
fizemos. Perdemos tempo com o tempo materializado no calendário.
Mas o significado do Natal é precisamente
o sentido deste nascimento renovador tipo acto de contrição. Jesus não é um
símbolo do Amor todo verdade, do amor sem fim. Ele é o fim do amor com
coerência, mesurado e comprometido com coisa nenhuma. Com Jesus inaugura-se uma
nova trilogia: Barro insuflado de Amor, Espírito descido à Carne, Luz descida à
Terra. E isso significa Homem.
O Natal é a festa dos exageros, um
verdadeiro hino à transcendência: da fé que se supera a si mesma, da coragem de
acreditar no humano como caminho, do Amor como o referencial de tudo quanto
existe. O Natal é perceber que a alteridade não é uma assimetria, que nascer é
dar um sentido novo às coisas velhas, e a todas as outras coisas.
O Natal é a dizibilidade do não-dito. É
como um nó na garganta quando nos comovemos com os olhos rasos de lágrimas nos
momentos em que lutamos por escondê-las mas elas soltam-se e a voz não sai.
De facto, que importância tem uma
cabana? Que exagero! Ninguém quer ocupar-se com semelhante futilidade. É
espantoso, dentro de uma cabana há um nascimento fenomenalmente simples que, de
tão impuro, tão circundado de animais domésticos e camponeses, presenteia-nos
com um significado novo... e uma estrela se faz presente e brilhante, mais que
todas as outras, um GPS que nos faz rumar para outras paragens. E com ele
chegamos até hoje. Porém, deixamos que o contraste entre a cabana e as lojas
reluzentes se acentuasse na frieza dos números. Mas há sempre a possibilidade
de uma reviravolta:
Que as luzes das gambiarras representem
a alegria infinita da partilha com o outro;
Que os presentes sejam a recordação de
um momento surpreendente;
Que a revelação desta identidade de amor
ecoe nos cânticos que ressoam por toda a parte em desvelos de hinos à paz;
Que haja aquele abraço, o tal abraço que
só o perdão conhece.
Que oremos:
Senhor, que em Teu nome eu caia no
exagero de me superar, de me transpor para outro lugar onde nem a fantasia mais
criativa consegue imaginar.
Não quero, Senhor, o medido, o razoável,
o aceitável e muito certinho, muito arrumadinho, o comezinho, o triunfozinho.
Não, meu Senhor, não quero o bom olhar
próprio das coisas correctas e aceites no fado dos sentimentos já feitos.
Quero, meu Senhor, exagerar como Tu e só
como Tu, no amor, na grandeza, na mensagem ao mundo, na vivência, na humildade,
na franqueza.
Eu quero, como tu, meu Senhor,
escandalizar, beber água num poço que não é da minha terra ofertada por alguém
que não fala a minha linguagem;
Eu quero ser convertido/a ao mundo
inteiro, meu Senhor, porque ninguém se converte a Deus sem antes se converter
ao mundo, e crescer, crescer, crescer sem fim porque tenho a maior das
certezas: Tu estás sempre comigo.
Quero, em Teu nome, curar impondo as
mãos, doutrinar o Espírito sofredor, ser servo/a da Tua vontade.
Quero derramar sobre Ti um frasco do
nardo mais puro no mais fino alabastro no próximo que Te representa.
Quero, por Ti e em Ti, socorrer aquele
que está caído à beira da estrada, espancado e abandonando.
Quero ser eu a levar à Tua presença o
paralítico para que o cures, e não permitir que, da minha parte, nada lhe
falte; o cego para que lhe dês a visão e se lave nos lagos de Siloam que há por
esse mundo.
Eu quero, eu preciso de desmesurar por Ti, e
perceber que o faço é em agradecimento e louvor a Deus por todas as coisas
através de Ti.
Eu quero, meu Senhor, sentir que estou a
nascer neste Natal, como Tu, a sentir o aconchego dos panos alvos que Te
cobriram.
Meu Senhor, perdoa-me se neste Natal ainda
não tive forças para esbanjar por Ti, gastar, gastar, gastar e desperdiçar num
sei lá de abraços num mundo que de repente se tornou tão distante, em que tudo ficou
tão longe.
Que o Teu exagero de amor seja o meu
desnorte.
Que a Tua simplicidade desconcertante
seja a minha gaguez das palavras novas.
Neste Natal preciso de uma fé a vaguear
por aí, louca e destemida.
Sinto-te como um louco a pedir-me isto.
Mas como ser capaz de um Natal assim?! Onde
estou eu? Não sei onde moro!
Margarida Azevedo
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Nota:
Texto escrito em parceria com um Espírito protector.
Referências:
(1)
SAINT-EXUPÉRY, Antoine de, O
Principezinho, Editora Caravela, Lisboa, s/d, p.12.