À PROCURA DO SENTIDO DE NÓS MESMOS
I
O
mundo está a tornar-se um sub-mundo. Entrou-se no vale tudo: no relativismo
estéril, na decrepitude e na intolerância; a liberdade de expressão está
periclitante e a escravatura aumenta; o homicídio e o roubo banalizaram-se, igualmente
a impunidade, porque assente numa base de teorias coloridas quão ingénuas,
favoráveis ao proliferamento de ideais imediatistas. Isto é, o que não presta passou
ao estatuto de bom e normal, justificando-se até com a desculpa cínica de que o
mundo sempre foi assim.
Mas
o pior é a mudança de nome, um trocadilho para dar ares de progresso. Já não se
fala em fascismo, mas em politicamente correcto; já não se diz que as crianças
são malcriadas, mas que são precoces; já não se fala de estupidez, mas em
processo de desenvolvimento; já não se fala em referências culturais,
etnográficas, mas em cidadania; já não se diz que cada um manda na sua terra,
mas que é homofóbico; já não se cumprem identidades familiares nos seus ritos
domésticos, está que se está aberto a novas culturas, etc.… E quem for ao
arrepio da onda é racista, xenófobo, anti-social, bicho-de-mato.
A
falta de respeito pela pessoa humana, a facilidade com que um filho mata um
pai, o desamor pela família, a fragilidade da mesma e o consequente desgaste da
vida fazem das nossas condições existenciais, em muitos casos, uma autêntica
tortura. A semelhança de alguns problemas, e apenas alguns, com os de um
passado relativamente recente não significa que hoje sejam tomadas decisões assertivas
em combatê-los. As famílias, por exemplo, sempre tiveram problemas, mas daí a
que os filhos matassem friamente os pais vai uma diferença abissal. O avanço
tecnológico, impossível de acompanhar para um leigo, não tem culpa nenhuma. O
ser humano é que tem alterado os seus comportamentos em função dele. Os nossos
jovens perdem horas a conversar aos telemóveis, sentados de frente uns para os
outros porque assim comunicam melhor, é o que eles dizem.
E
assim se vive uma época de estupidificação. Nos novos tempos a estupidez
tornou-se uma virtude protegida por conceitos linguarejados que a tentam
ocultar. os filhos rejeitam a comida que está na mesa, não é por falta de
educação, mas porque têm o paladar adaptado a novos sabores; a partir dos 18
anos começam a entrar tarde em casa, embebedam-se e fazem desacatos na via
pública criando o desassossego e a insegurança nos bairros residenciais, mas
isso deve-se aos novos tempos, estão a ganhar asas para conhecer a vida.
Valores tais como a verdade, a
sinceridade, o altruísmo, a humildade, o espírito de sacrifício, a luta por um
ideal filantrópico, em suma, onde ficam, onde estão, como acolhê-los e que
expressão têm nos tempos que correm? O que é que faz sentido nos novos tempos?
Que herança se vai deixar às gerações vindouras? Que exemplo lhes estamos a
dar?
A reflexão remete-nos objectivamente
para: Onde me coloco, qual é a minha
base, o meu ponto de partida? Qual o meu campo afectivo?” O que me é dado
esperar da vida e o que faço para o atingir? Que legitimidade e que espaço para
o eu: eu pessoa singular, eu identidade de mim próprio/a, eu ser cheio/a de
limitações e imprevisibilidades, eu que não sou capaz de atingir os níveis de
rapidez/agilidade exigidos, eu portador de mim mesmo/a, eu mistério e
desconhecido para mim?
Somos remetidos para
o avassalador conceito de vida, num sentido existencial, o estar presente,
activo. Que significa estar vivo? Andar perdido na obediência cega quão voraz,
que não se sabe a quem nem porquê, a cruzar caminhos escusos de procura
movido/a por uma esperança que se confunde com irrealismo e ilusão? São
demasiadas incógnitas, todas sem resposta, ou de resposta insatisfatória - a
resposta, além de ser sempre frágil e transitória, é naturalmente ineficaz -.
Precisa-se
urgentemente de dissecar a alma e pesquisar o que está lá dentro. Precisamos de
ser cirurgiões do invisível, cujo instrumento não é o bisturi, mas a fé. Porém,
tememo-nos. O encontro connosco mesmos não será fácil. Há uma temeridade inata.
O Espiritismo ensina que nascemos esquecidos porque não nos seria benéfico
sabermos coisas a nosso respeito, ainda que de um passado longínquo. Há a
sensação de que quanto maior a lonjura maior o espanto, o medo, o susto.
Parece
que o esquecimento casou com a lonjura de nós próprios pela via do repúdio de
nós para connosco mesmos. Porém, se o ser humano não fosse curioso por natureza
tudo, aparentemente, seria mais fácil. É bom lembrar que o passado é a nossa
vida intra-uterina da psicanálise, o Éden do Génesis, a nossa casa como local
único do nosso refúgio.
Por outro lado, colocar o passado numa redoma cria em nós uma falsa noção de equilíbrio. Isto significa que, o facto de ser, por hora, insuportável conhecer o passado recente neste hoje que se prolonga a cada dia que passa na actual existência, como mergulhar nas cavernas da nossa existência pretérita, não significa que não o pretendamos desvendar. Ora aquilo de que se trata é de construirmos o edifício da nossa consciência de forma a aceitar como normal o que verdadeiramente somos. O equilíbrio é o nosso grande objectivo existencial. Eu preciso de saber se resisto, e como resisto, à revelação de mim próprio/a. É que esta revelação não pode vir de fora, mas de dentro, tem uma fundura gigantesca. Ninguém me pode dizer o que é que eu fui. Sou eu que o digo a mim mesmo/a através da vivência do presente.
Margarida Azevedo
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*Bíblia,
vol.I, Novo testamento, Os Quatro
Evangelhos, Quetzal, Lisboa, 2016, trad. F. Lourenço.
**S. Kierkegaard, L´école du christianisme, Éditions de l´Orante, Paris, 1982, cap. I, p. 36. trad. M. Azevedo.