PÁSCOA 2024
A passagem do cativeiro para a liberdade e da morte para a vida eterna tem hoje um sentido muito particular.
Somos
diariamente acometidos de uma visão que não é nossa, dirigidos para fins que
não desejamos, elevados a uma fraqueza crescente e aterradora com ares de força
e de triunfo. Neste quadro, faz todo o sentido perguntar “para aonde nos dirigimos, para aonde nos estão a dirigir, ou quem ou o
quê nos dirige?”.
Vivemos
em um deserto onde, sem que haja um rosto definido, somos tentados com o poder
sobre o mundo, se nos prostrarmos aos pés de um senhor cheio de atractivos e de
promessas vãs que parecem fantasticamente verdadeiras. Ele diz-nos que tudo
será nosso, ao que a avidez se rende na sua irracionalidade. E assim, sem que
se dê conta, a liberdade mais uma vez fica adiada, a fé perdida, Deus lá muito
longe. A ilusão do poder impõe-se, até se quebrar com a doença que surge quando
menos se espera, a guerra no míssil aniquilador, ou a catástrofe que arrasou
tudo. Depois, vem a mudança de paradigma. É a Páscoa que acontece e o deserto
fica para trás, irremediavelmente.
Acorda-se
para a realidade: tantos a amar o mundo, a lutar para que nada falte, ou muito
pouco; há os que passam horas à cabeceira de um desconhecido que geme de dor; os
que são amigos porque simplesmente amam um abraço fraterno, um olhar doce, uma
palavra que se supera a ela própria. Ainda há os que expõem a própria vida
movidos por uma fé que irrompe, provocadora e triunfal, nos campos da mentira e
da manipulação no tal deserto das tentações. De facto, não se tinha pensado
nisso, até precisar, é claro.
Mas
existe. Existe o discurso que não é de ódio, e que não se consegue abafar, o
desejo de paz e liberdade onde Deus está presente. É a voz daqueles que já
festejam a Páscoa, os que estão em liberdade e vida eterna. E quem são eles? Nada
de complicado. São os que vivem fraternalmente em um mundo faminto de Deus, são
aqueles que têm em cada ser humano um irmão, os que pregam sem que ninguém os
ouça em salas vazias ou cheias de gente que desejaria ouvir outra coisa. São os
que pregam com a certeza de que Deus e Jesus, o Cristo, estão presentes.
São
esses que, ao serviço de Deus e do Ressuscitado, tornam urgente repensar a
Páscoa como a Grande Passagem, a saber, da fome para a saciedade, da guerra
para a paz, da catástrofe para a reconstrução. A Páscoa como uma verdadeira
primavera espiritual, uma mudança radical de paradigma.
Com
tanto sofrimento, em um mundo que mata das mais diversas maneiras, que
justifica os comportamentos mais ignóbeis, que chega ao ponto de afirmar e
fazer crer que tem que ser mesmo assim, o que fazer? Como pensar Deus nesta
cruel realidade? Mas também podemos inverter a questão: o que não fazer? Como
não pensar Deus? Numa palavra, o que é que nos é possível?
Se
Deus está em toda a parte, então também está dentro de nós. Então é chegada a
altura de Deus passar por nós, residir, ficar lá. De certeza que, nessa altura,
sem bezerros de oiro nem flagelações, os Mandamentos impor-se-ão na sua
grandeza porque todos, absolutamente todos nas suas diferenças, viverão como
filhos de um só Deus.
Precisamos
de acreditar na humanidade. Não é acreditar nos bons porque são bons. Aí não é
preciso. É acreditar que, como uma flor frágil, se se cultivar o bem de certeza
que, pela lei dos afins, o mal não tem força.
Dito
de outro modo: a vida é uma passagem, não mais do que de umas escassas dezenas
de anos, para os que chegam lá. É do que dispomos para mostrar o que queremos,
que mundo e que vida desejamos, que Deus há dentro de nós, o que ocultamos e o
que se desoculta na nossa natureza. Há, no entanto, uma única certeza,
transversal a todos nós, a de que há uma passagem inevitável que nos espera.
Todos sabemos também que tudo o que é do foro material cá fica, pois o que
levamos é o bem que fizemos ou o que deixámos de fazer, e não fazer o bem já é
um mal. Compete-nos a nós, juntamente com o outro, sempre com o outro, fazer a
mala.
Somos
todos companheiros de viagem, e que viagem. Que esta Páscoa seja a passagem à
consciência da inevitabilidade do encontro com o próximo, ou o reencontro num
convívio que, de alguma forma, terá sido interrompido nos caminhos complexos da
nossa existência. Sintamos a felicidade que é viajarmos todos juntos.
Margarida
Azevedo