domingo, maio 28, 2006

MAIO, O MÊS DAS GRANDES CELERAÇÕES





1. O Trabalhador


Não sei se movido por algum impulso súbito de virtualidade, ou se por uma volatilidade de ideais políticos que se esfumaçam na escassez de debates, os primeiros de Maio têm-se vindo a revelar o que de modo algum podem ser: mais um dia feriado igual a tantos outros.
De facto, é cada vez mais difícil celebrar cada dia segundo a virtude que lhe é própria, como diriam os antigos, e partir para uma tarde de actividades lúdicas ou de manifestações de rua transbordantes de palavras ordem apelativas de mudança, de mais direitos ou mais regalias, mas também de deveres. O quotidiano preso aos apertos de cinto a que políticas medíocres nos condenam, a falta de bens essenciais para as exigências cada vez maiores do nosso tempo, o dinheiro contado até à última para ver se faz o milagre de chegar ao fim do mês, enfim, as necessidades que se avolumam proíbem por si mesmas a vontade de folia que devia impregnar as consciências de quem tem nas mãos a riqueza e o progresso de uma nação.
Lamentavelmente, cada vez mais o trabalho está associado à pobreza, à dependência, ao rastejar para conseguir um encaixar-se num lado qualquer, esquecendo vocações, fazendo perigar níveis de produção, desvalorando e desvalorizando competências, a troco cada vez mais de muito pouco. Nos Estados Unidos, E. BARBARA faz-nos pensar: “Como é que, reflectimos nós, iriam subsistir com seis ou sete dólares por hora os cerca de quatro milhões de mulheres prestes a serem empurradas para o mercado de trabalho em consequência da reforma da Segurança Social?... A minha irmã tem passado de um emprego de salário baixa para outro _ representante de uma companhia de telefones, operária fabril, recepcionista _ , lutando constantemente contra aquilo a que chama”o desespero de ser uma escrava assalariada”. O meu marido e companheiro durante dezassete anos trabalhava num armazém por quatro dólares e meio à hora quando o conheci, …”*.
Acrescentando a tudo isto o facto de muitos ainda dizerem que se houvesse crise os estádios de futebol não estariam cheios, nem os bares, os restaurantes, a vida nocturna, enfim, quem trabalha e não tem garantida a sobrevivência ainda se vê confrontado com a mentalidade triste de que a pobreza só o é de verdade quando um trabalhador de salário baixo não toma um café numa pastelaria, não janta fora com a família nem se diverte. O pobre continua a ser um alvo atentamente vigiado de perto pelos ricos, que até do café que ele toma fora de casa têm inveja, A miséria, associada à privação a que obriga o salário degradante, cria o silêncio característico dos regimes totalitários, a desconfiança e, com ela, o medo.
Que trabalho e que trabalhadores se celebram em Maio de 2006? Celebram-se os descontentamentos, a desilusão, a fragmentação de uma sociedade espartilhada e silenciada, politicamente amarelecida própria de um país só para alguns, resultado da falta de competência política.
Assim, o 1º de Maio de 2006 não foi notícia de abertura de telejornais, que começaram com as informações sobre o trânsito, seguindo-se o futebol, ou vice-versa, apresentando um dia especial como uma notícia qualquer, com uma cobertura mínima, numa tentativa de clandestinizar e menosprezar aqueles que têm nas suas mãos a tarefa de criar a riqueza de um país.
Aprendi com os meus que para triunfar na vida só tinha uma alternativa: trabalhar com afinco, com dedicação e sinceridade. No actual contexto, afinco e dedicação não garantem nem o respeito da entidade patronal nem um salário justo, nem tão pouco a permanência na empresa, ou seja, não confere a mínima garantia de sobrevivência; quanto à sinceridade, chamemos-lhe a chacota da unidade empresarial, traçando um perfil de fraqueza e debilidade contrárias ao espírito de ambição exigido pelas entidades empregadoras.
Resumamos deste modo, bem português: Trabalhar para quê? Dedicar-me à empresa para quê? E na ausência de respostas satisfatórias, a luta pela melhoria das condições de quem trabalha torna-se, por si mesma, uma questão secundária.
E assim tivemos um primeiro de Maio virtual, onde se assistiu aos festejos de uns quantos que ainda acreditam que algo se pode fazer para mudar o actual estado de coisas; à festa dos que trabalham, a mais um feriado para os que nada fazem e vão até à praia, e aos risos mais ou menos apagados dos assim-assim; aos que trabalham até à exaustão e ganham tanto que não têm nada para celebrar pois julgam-se iguais aos que mandam, e têm vergonha de andar nas ruas de bandeirola no ar; aos que trabalham em idêntico ritmo e cujo salário está perto de nada, e preferiram ficar em casa a dormir. Foi o dia dos que querem e não podem, dos que querem e não têm, dos que comem e dos que petiscam, dos míseros, dos saciados e dos que deitam pelos olhos; da mão-de-obra barata, da cara e da do compadrio, da do preço da chuva ao do diamante; do pouco crescimento e sobretudo da estagnação; dos recibos verdes durante a vida inteira, dos nomes sonantes e a barriga cheia; do ócio e do sol-a-sol; da exclusão e das barracas, da corrupção, do tráfico de pessoas e do banco alimentar. Um Maio de pão-de-forma, de carcaça ou de cacete francês, de fiambre da casa ou de presunto; da impunidade do crime engravatado, do crime de se manifestar na rua, da prisão certa para quem rouba um pão para comer. Além destes, celebrou-se a vida paradisíaca dos bruxos e cartomantes que ganham mais que um médico ou advogado, ou qualquer outra profissão bem remunerada, da prostituição e de toda a gama de ilícito, que não paga impostos e faz fortuna enquanto o diabo esfrega um olho.
É chegada a altura em que nos perguntamos: o que pensa o Espiritismo de tudo isto? É karma? É falta de espiritualidade? É crise de Evangelho?
Mais preocupados em apontar o dedo, muitos espíritas continuam a defender que tudo se deve à grande ignorância espiritual em que o mundo se vê mergulhado, em termos espíritas, compreenda-se. No entanto, as grandes obras de verdadeira ajuda social têm um cariz eminentemente laico, o que significa que são para toda a gente, independentemente de raça, etnia, religião ou simpatia política. É por aí que devemos ir. A sensibilização espiritual deve projectar os seus objectivos para a laicização do espírito, uma vez que a religião é posta pela sensibilidade cultural e geográfica, não é absoluta.Laicização não é sinónimo de ateísmo, mas de pertença a um Ser supremo, causa primária de todas as coisas. Até porque a própria Doutrina ensina que hoje reencarnamos num país, numa próxima vida noutro. É assim que se faz o progresso espiritual.
Se os espíritas continuarem mais preocupados com a vida no além do que com os problemas prementes da nossa modernidade, o social e político que compõem este mundo passam-lhes ao lado, deixando de se empenharem na vida activa, o que vai contra as máximas da Doutrina, e de Jesus. Esperando que os problemas se resolvam sozinhos, mais não fazendo que meditar em autêntico ócio, aprontam-se rapidamente a atribuir culpas aos outros dos males do mundo, confortavelmente excluindo-se, alegando que nada fizeram para que o mundo caísse ao actual situação. Apetece dizer, “por favor não confundam a Doutrina com quaisquer movimentos cínicos”.
É urgente fazermos da nossa parte, pois só assim o resto poderá vir por acréscimo. Um espírita não se encosta, trabalha. Calma e pacificamente expõe a sua opinião, sente-se implicado na sociedade e, antes de dizer que é karma, reflecte e pergunta a si mesmo Onde é que eu errei? Como poderei mudar a situação?” Pede ajuda a Deus, porque maior que Deus não há. A sua fé não é a de uma justiça divina vingativa, mas a da doçura e suavidade. Aposta na vontade de bem, na vitória certa de quem vive em prol da justiça, da paz e do amor entre todos os povos.
A Doutrina afirma que todos somos filhos do mesmo Deus, que todos devemos trabalhar em prol do seu progresso, independentemente da classe social a que pertençamos. Tão importante é o que comanda como o que lhe obedece, o que trabalha nos campos como o médico. A sociedade é tanto mais rica quanto maior a diversidade que a compõe, mas não só. A riqueza humana de uma sociedade mede-se sobretudo pelo modo com essa mesma diversidade é encarada. Dividi-la entre afortunados versus desgraçados é estigmatizar o próprio progresso espiritual, pois até na própria encarnação presente se assiste ao pagamento de grandes débitos contraídos por força da ambição, quando esta é sufocante e esmagadora da integridade do próximo. Ambição não significa sobreposição cega, mas colaboração com competência.
Todos temos ambições, a maior de todas é a felicidade. Os caminhos que o mundo traçou estão muito longe da verdadeira felicidade que, neste mundo, se for o alívio do sofrimento de cada um já é construir um pequeno paraíso na Terra.


2. A Mãe


queria tanto ter-te feito confidências, ter estado mais perto de ti
ter acompanhado a tua velhice, vendo-te sempre milagrosamente bonita
lembro-me tão bem como se fosse hoje quando me fazias surpresas
com os olhos muito brilhantes a sorrir
os braços abertos do tamanho do mundo correndo para me abraçar
só a luz que do teu semblante reluzia me dava uma tal felicidade
na altura eu não me apercebia de quem tu eras
preocupavas-te tanto comigo e eu não compreendia porquê
se comia se dormia até se eu crescia
levavas-me todos os dias à escola era o nosso ritual pela mão
eu sentia-me orgulhosa eras a mais bonita das mães
lembras-te do vestido às flores com decote em bico que vestias no verão
eu dizia que vestias um jardim e tu rias rias rias
depois veio a adolescência e a juventude e já não me ensinavas a estudar
mudei cresci e assustei-me com o mundo
foi nos meus temores mais profundos em que tu estiveste sempre lá
que eu compreendi quem tu eras como era possível que soubesses tantas coisas
eu via-te mesmo quando não te tinha por perto
nunca tivemos distâncias a separarem-nos juntas transcendíamos o mundo
e hoje em mundos diferentes tocamo-nos pela força da saudade
de um amor que invoco tão grande que não te esqueço
ainda todos os dias te evoco por tanto te querer
tão grande é o nosso amor minha Mãe

Barbara Diller

quarta-feira, maio 03, 2006

DESAFIOS


Porque demasiado preocupados com o seu pequeno mundo, muitos espíritas envolvem-se em questões metafísicas totalmente fora das preocupações da tão complicada vida do dia-a-dia. Esquecendo-se de que desde sempre a problemática religiosa e espiritual está intimamente ligada à vida material, procurando dar resposta a questões tão prementes como são a pobreza, o sofrimento, a dor, a doença, a morte, etc., remetem a justificação de todos os males para a teoria das reencarnações, tornando-a num conjunto de preceitos gastos e insípidos, que em vez de libertar aprisionam ainda mais o já tão agonizante mundo em que vivemos.
Ora, convém salientar que o conceito de reencarnação e o de castigo não são sinónimos. Não podemos confundir uma teoria da oportunidade com uma teoria de penas. Por exemplo, se uma pessoa parte um objecto que não é seu, não se vai querer que lhe partam um objecto a si. Não se trata de uma vingança sem recurso, um ciclo fechado do tipo”Toma lá que é para aprenderes”, inventando razões, fazendo juízos de valor geralmente obsessivos, de gente sedenta de vingança mas sem coragem para o admitir. Até porque se a maioria dos espíritas cresse que reencarnar é realmente pagar na mesma moeda, certamente não se encontraria nos centros espíritas comportamentos indignos de quem pertence, ou diz pertencer, a uma tal doutrina. Até parece que há mais que um tipo de reencarnação equivalente a dois pesos e duas medidas.
A teoria da reencarnação é justa e, como tal, pedagógica; para muitos é uma teoria da vingança “Fizeste, pagas”.
A reencarnação é limpeza do espírito, depuração, aposta incondicional na vida. Com ela aprendemos e participamos nas diversas épocas históricas, somos protagonistas mais ou menos activos no desenrolar dos acontecimentos, numa dialéctica que se traduz na máxima””Nascer, viver, morrer, renascer ainda e progredir sem cessar, tal é a lei”. Simplificando esta fórmula, reencarnar é educar.
Assim, que resposta dá o Espiritismo aos desafios que se colocam nos dias de hoje? Que respostas tem a Doutrina para o actual quadro de dor e sofrimento que prolifera por toda a parte? Esta é que é a questão: Como resolver problemas aqui e agora, e não projectar a solução num para lá indefinido, desconhecido, arquivado, e sabe-se lá que mais, quando a própria Doutrina ensina que nascemos esquecidos para nosso próprio bem. E porquê? Não será que a solução está aqui?
Não é a pensar no outro mundo que resolvemos os nossos problemas, mas dentro deste, amando-o, respeitando-o e querendo fazer dele uma pátria onde seja possível viver o melhor e o mais feliz possível. Enquanto se encarar este mundo como a pátria do sofrimento entregue a provas e expiações quase ad eternum, é isso e só isso que ele será, sofrimento. Estamos a viver o momento mais perigoso da Humanidade. O homem tornou-se um ser falso, imparavelmente ambicioso, cresce a escravatura, proliferam as epidemias de toda a ordem, ricos cada vez mais ricos, pobres cada vez mais pobres e em número crescente, discursos belos, defensores de uma classe que se governa a si mesma, direitos que perdem, desvaloração do trabalho e de quem o produz, a ameaça do nuclear… e se parte de tudo isto já existia em tempos que já lá vão, se muito não é mais que o resultado ou a colheita de uma existência conturbada, o peso superlativo de tudo isto a que agora se assiste e a descomunal loucura a que foi votada a vida, reflecte bem a relutância do homem em crescer, fazendo perigar a afirmação da felicidade.
Ora, o conceito de reencarnação é estruturante desta migração que, mais importante que se centrar no espaço e no tempo, se afirma como um caminho para a felicidade. Herdámos a máxima de que a felicidade não é deste mundo, que amar a Terra é perder-se numa infinidade de seduções que fazem sucumbir o Espírito. No entanto, queremo-la como um bem precioso, nela temos os nossos filhos, nela amamos e criamos laços afectivos que nos acompanham até sabe-se onde. Não será isto porventura um contra senso? Será que a felicidade exige o sacrifício de termos que desprezar o mundo em que vivemos porque amá-lo é perder-se? Pela reencarnação tornamo-nos velhos neste mundo, vendo-o como a nossa casa. Quando dizemos que temos vontade de fugir daqui, que estamos saturados, este mundo revela-se como uma preciosa fonte de identidades, nossas, rostos que fomos ganhando ao longo de vidas. Por outras palavras, queremos sair deste mundo neste mundo pois é ele o senhor do nosso sentido. Não me interessa saber se já vivi noutros, nem os quero conhecer. Além disso, o meu sentido do mundo é um prolongamento deste, o outro é uma imagem deste, que eu invento, que eu imagino, que desejo. Um apêndice, talvez. Mas este é sempre a minha referência.
É chegada a altura em que urge repensar a reencarnação, como tantas outras coisas que afirmamos e temos como concluídas. De facto, não é para a infelicidade que renascemos, nem para repetir indefinidamente o já vivido porque não aprendido. A reencarnação não é o resultado de um chumbo, mas a criação de novas perspectivas num mundo rico e inesgotável de experiências, numa dinâmica cujo móbil é uma curiosidade perene.
Reencarnamos, mas de um menos para um mais; para aumentar o nosso campo valorativo, desenvolvermos e complexificarmos a sociedade dentro de uma diversidade que se pretende progressivamente maior; para acreditarmos em nós mesmos e nos tornarmos mais úteis. Faltando isto, há que repensar o conceito de reencarnação, a sua funcionalidade face ao nosso modus vivendi.
Amanhã podemos já cá não estar, mas para onde formos é esta a bagagem que levamos.

Barbara Diller