MORTE É FELICIDADE XXXII
(Continuação)
A IMPORTÂNCIA DA MORTE NOS CONTOS DE FADASw
Porquê este apontamento? Que relação podemos estabelecer entre os contos de fadas e a morte? Qual o seu contributo para o progresso espiritual?
Reflictamos atentamente: os contos de fadas constituem os alicerces da nossa educação, contribuem para a solidificação do carácter da pessoa como ser livre. Nada existe de mais moralizante e socializante, nada é mais espiritual que os contos de fadas.
Simulando ser contos para crianças, eles introduzem a pessoa na realidade de forma suave mas incisiva, não faltando as componentes trabalho e luta para atingir objectivos, ambos pela mão mais poderosa que de ela dispõe, a fantasia, numa trilogia quais alvíssaras pela estreita interacção e complementaridade que estabelecem.
É tão importante a floresta, a madrasta como a fada boa, a fada má ou os anões. Tudo se integra, tudo se harmoniza de modo a constituir um todo: a personalidade do futuro adulto, aquele que procuramos mas que não somos capazes de atingir, um adulto que não é fácil encontrar-se a si mesmo.
O vasto universo simbólico das personagens e respectivas lutas revelam a panaceia do homem como ser de problema, de critérios díspares, de vontades divergentes mas cujo fim consiste em integrar a diversidade numa única casa: a felicidade, o mundo dos que vencem pela via da transformação intrínseca, da consciência clara e objectiva de que há dificuldades, mas também forças poderosas para as combater.
E se estes ingredientes são indispensáveis à estrutura do conto, o jogo entre a vida e a morte são-no superlativamente. É à dialéctica entre a vida e a morte que devemos a construção do edifício valorativo, as noções do certo e do errado, as definições de comunicação; é através dela que tomamos consciência do poder do amor, da sua transcendência e da sua presença constante. Ora, tudo isto é matéria-prima do conto.
Por isso eles são textos de iniciação espiritual perspectivados num sentido ambivalente: por um lado, temos a diacronia da praxis complexíssima que preside à construção do edifício do nosso estar, bem como o vasto campo axiológico, do qual está inteiramente dependente, com todas as metamorfoses que o vão caracterizar ao longo da vida; por outro, apresentam-nos o factor revelação através do mecanismo de forças intrínsecas ao homem, as quais vão sendo descobertas à medida que o enredo se desenvolve, procedendo dessa forma a uma economia psicológica de tal modo objectiva que age sempre segundo uma dinâmica dentro de um equilíbrio entre o que sucede e a forma despendida para o combater. Por outras palavras, nos contos nada se perde, nada é gratuito, nada é ingénuo.
Por exemplo, à questão “Porque sofremos?”, os contos respondem porque a vida é adversa, porque nascemos sobre um palco de dor e lutas constantes... Mas acrescentam que essa adversidade é uma companheira fundamental que nos irá tornar homens e mulheres. A resposta pela religião seria porque somos maus, ou porque Deus assim o quis para nos pôr à prova a fim de testar o nosso amor por Ele, bem como a nossa fé. Para os contos, sofremos porque o mundo é mesmo assim, não está feito de outro modo, é um lugar tenebroso onde imperam bruxas e fadas más, florestas enfeitiçadas ou madrastas que nunca serão mães. No entanto, cada um é protagonista da esperança para o modificar, para torná-lo um lugar aprazível de paz, felicidade e prazer eternos.
Talvez seja por essa falta de apelo ao lado religioso que Bettelheim (........) afirma que os contos são discursos ateus. Ora, isso significaria que somos mais e melhor formados quanto a nossa educação se processa dentro de uma ausência de Deus. Dito de outro modo, parece que é à instrução que caberia a tarefa de colocar Deus na alma humana, como um postiço ou processo plástico para nos suavizar a existência, mercê do confronto inadiável com a situação de limite, de fraqueza ou de impotência por parte da inteligência em decifrar a complexidade do que a circunda e com que a mesma se defronta.
Da nossa parte, pensamos que os contos de fadas nos introduzem na dimensão do divino pelo lado mágico da alma humana. Aliás, a protecção das fadas madrinhas, a supervisão permanente de qualquer coisa muito boa, com poderes infinitos, revela a presença de algo que, não sendo de todo deste mundo, vem a ele com o fim de criar todo um ambiente de confiança, coragem e persistência naquele que luta por vencer.
Podemos dizer, todavia, que não se trata de um deus localizado num pequeno espaço, representável figurativamente como nas religiões, mas dizemos que é um ser que habita o coração de todos os seres, a-representável, sem rosto, sem corpo físico, sem voz, e que está presente através de seres que simplesmente... aparecem, que se metamorfoseiam, que concedem dons. É isso, precisamente, que faz dos contos discursos místicos, como em “As Fadas”:
“Um dia, quando estava na fonte, uma mendiga veio pedir-lhe de beber:
_ Com todo o gosto, avozinha – disse a simpática menina e, passando por água a bilha, encheu-a no sítio em que a água era mais límpida, após o que a segurou para que a velha pudesse beber melhor. Depois de ter bebido, a boa velha disse-lhe:
_ És tão bonita, tão boa e gentil, que não posso deixar de te conceder um dom.
Com efeito, tratava-se de uma Fada que se disfarçara de pobre camponesa para ver até que ponto ia a amabilidade da menina.
_ Concedo-te o dom – continuou a Fada – de lançares da tua boca uma flor ou uma pedra preciosa por cada palavra que pronunciares.” (PERRAULT, 1994, pp.21-22).
Este exemplo é relevante pois mostra que o bem não advém do culto ou adoração de algo fora de nós, como na perspectiva religiosa, mas tão simplesmente como gratificação de um esforço. Digamos que nos contos não existe o estado de Graça nem mistérios. Tudo se desvenda e ultrapassa mediante o empenho, o esforço e a persistência. Só assim se compreende que eles façam da morte um bem, uma anulação do mal para sempre.
Desta forma, passemos em revista, sinopticamente, as diferenças que nos parecem mais prementes entre as narrativas religiosas e as dos contos:
As religiões falam de Deus, os contos de justiça;
As religiões utilizam rezas para atingir Deus, os contos usam a magia para chegar à felicidade;
As religiões apelam à confissão, embora em moldes muito diferentes entre si, para limpeza espiritual, os contos apelam ao trabalho árduo para alcançar o prazer;
As religiões dizem-se portadoras da verdade, os contos ensinam a conquistá-la;
As religiões falam de perdão, os contos ensinam a matar o mal;
As religiões fazem alusão a anjos guardiães, seres à parte criados por Deus já perfeitos, os contos a fadas madrinhas, isto é, entes mágicos;
Para as religiões, os homens definem-se segundo o prisma através do qual pretendem atingir Deus; para os contos os homens apenas se definem como bons e maus, justos e injustos;
Para as religiões, os homens dividem-se segundo a sua importância social e política; para os contos apenas em ricos ou pobres, príncipes ou pastores, porque absolutamente todos estão sujeitos às mesmas provas, aos mesmos sofrimentos;
Para as religiões, a morte é o encontro com Deus, os Anjos, o Nada; para os contos, a morte é terrífica para os maus, vida de prazer eterno para os bons.
Como facilmente se observa, no quadro de diferenças que os caracteriza, parece-nos ser a religião que contem o discurso dos contos, através de recurso mal disfarçado à magia, e não o contrário. Dentro da vivência religiosa, é tão mágico o anjo guardião quanto a fada madrinha do conto; é tão mágica a reza quanto as fórmulas mágicas para enganar a bruxa má no conto; é tão mágico o paraíso quanto o palácio; é tão mágico o sacerdote quanto a velhinha, maga detentora dos saberes ocultos libertadores de sofrimento.
Religiões e contos não se opõem nem definem pelo facto de as primeiras falarem de Deus e os segundos não, mas simplesmente por uma diferenciação, que aliás nos parece de alguma forma subtil, face a uma discursividade em torno de critérios de diferente uso da magia.
O campo religioso não é mais que uma das muitas vertentes mágicas, donde falar de Deus é um complemento acompanhado de ritos e fórmulas pagãos. As religiões não são capazes de Deus sem tudo isso, se o fossem deixariam de ser religiões e passariam a outra coisa: movimentos de cultivo do Espírito por excelência, como o Espiritismo, por exemplo, que escapa a todos esses preceitos.
Vejamos, sob aspectos diferentes, como os contos encaram a problemática da morte com objectividade e como um bem. Como ponto de partida, procedamos a uma analogia do conceito de morte entre o mito de Adão e Eva e os contos, a partir do factor desobediência. Esta ligação insere-se no facto de o conceito de morte, quer no mito bíblico quer nos contos, estar em correlação com o de vida, bem e mal, certo e errado, justo e injusto.
w Itens que fizeram parte da comunicação apresentada nas III Jornadas Históricas de Seia: 2. “A mãe morta”; a) “A criança não vai ao túmulo da mãe”; 4. “Porque contamos contos?”
Porquê este apontamento? Que relação podemos estabelecer entre os contos de fadas e a morte? Qual o seu contributo para o progresso espiritual?
Reflictamos atentamente: os contos de fadas constituem os alicerces da nossa educação, contribuem para a solidificação do carácter da pessoa como ser livre. Nada existe de mais moralizante e socializante, nada é mais espiritual que os contos de fadas.
Simulando ser contos para crianças, eles introduzem a pessoa na realidade de forma suave mas incisiva, não faltando as componentes trabalho e luta para atingir objectivos, ambos pela mão mais poderosa que de ela dispõe, a fantasia, numa trilogia quais alvíssaras pela estreita interacção e complementaridade que estabelecem.
É tão importante a floresta, a madrasta como a fada boa, a fada má ou os anões. Tudo se integra, tudo se harmoniza de modo a constituir um todo: a personalidade do futuro adulto, aquele que procuramos mas que não somos capazes de atingir, um adulto que não é fácil encontrar-se a si mesmo.
O vasto universo simbólico das personagens e respectivas lutas revelam a panaceia do homem como ser de problema, de critérios díspares, de vontades divergentes mas cujo fim consiste em integrar a diversidade numa única casa: a felicidade, o mundo dos que vencem pela via da transformação intrínseca, da consciência clara e objectiva de que há dificuldades, mas também forças poderosas para as combater.
E se estes ingredientes são indispensáveis à estrutura do conto, o jogo entre a vida e a morte são-no superlativamente. É à dialéctica entre a vida e a morte que devemos a construção do edifício valorativo, as noções do certo e do errado, as definições de comunicação; é através dela que tomamos consciência do poder do amor, da sua transcendência e da sua presença constante. Ora, tudo isto é matéria-prima do conto.
Por isso eles são textos de iniciação espiritual perspectivados num sentido ambivalente: por um lado, temos a diacronia da praxis complexíssima que preside à construção do edifício do nosso estar, bem como o vasto campo axiológico, do qual está inteiramente dependente, com todas as metamorfoses que o vão caracterizar ao longo da vida; por outro, apresentam-nos o factor revelação através do mecanismo de forças intrínsecas ao homem, as quais vão sendo descobertas à medida que o enredo se desenvolve, procedendo dessa forma a uma economia psicológica de tal modo objectiva que age sempre segundo uma dinâmica dentro de um equilíbrio entre o que sucede e a forma despendida para o combater. Por outras palavras, nos contos nada se perde, nada é gratuito, nada é ingénuo.
Por exemplo, à questão “Porque sofremos?”, os contos respondem porque a vida é adversa, porque nascemos sobre um palco de dor e lutas constantes... Mas acrescentam que essa adversidade é uma companheira fundamental que nos irá tornar homens e mulheres. A resposta pela religião seria porque somos maus, ou porque Deus assim o quis para nos pôr à prova a fim de testar o nosso amor por Ele, bem como a nossa fé. Para os contos, sofremos porque o mundo é mesmo assim, não está feito de outro modo, é um lugar tenebroso onde imperam bruxas e fadas más, florestas enfeitiçadas ou madrastas que nunca serão mães. No entanto, cada um é protagonista da esperança para o modificar, para torná-lo um lugar aprazível de paz, felicidade e prazer eternos.
Talvez seja por essa falta de apelo ao lado religioso que Bettelheim (........) afirma que os contos são discursos ateus. Ora, isso significaria que somos mais e melhor formados quanto a nossa educação se processa dentro de uma ausência de Deus. Dito de outro modo, parece que é à instrução que caberia a tarefa de colocar Deus na alma humana, como um postiço ou processo plástico para nos suavizar a existência, mercê do confronto inadiável com a situação de limite, de fraqueza ou de impotência por parte da inteligência em decifrar a complexidade do que a circunda e com que a mesma se defronta.
Da nossa parte, pensamos que os contos de fadas nos introduzem na dimensão do divino pelo lado mágico da alma humana. Aliás, a protecção das fadas madrinhas, a supervisão permanente de qualquer coisa muito boa, com poderes infinitos, revela a presença de algo que, não sendo de todo deste mundo, vem a ele com o fim de criar todo um ambiente de confiança, coragem e persistência naquele que luta por vencer.
Podemos dizer, todavia, que não se trata de um deus localizado num pequeno espaço, representável figurativamente como nas religiões, mas dizemos que é um ser que habita o coração de todos os seres, a-representável, sem rosto, sem corpo físico, sem voz, e que está presente através de seres que simplesmente... aparecem, que se metamorfoseiam, que concedem dons. É isso, precisamente, que faz dos contos discursos místicos, como em “As Fadas”:
“Um dia, quando estava na fonte, uma mendiga veio pedir-lhe de beber:
_ Com todo o gosto, avozinha – disse a simpática menina e, passando por água a bilha, encheu-a no sítio em que a água era mais límpida, após o que a segurou para que a velha pudesse beber melhor. Depois de ter bebido, a boa velha disse-lhe:
_ És tão bonita, tão boa e gentil, que não posso deixar de te conceder um dom.
Com efeito, tratava-se de uma Fada que se disfarçara de pobre camponesa para ver até que ponto ia a amabilidade da menina.
_ Concedo-te o dom – continuou a Fada – de lançares da tua boca uma flor ou uma pedra preciosa por cada palavra que pronunciares.” (PERRAULT, 1994, pp.21-22).
Este exemplo é relevante pois mostra que o bem não advém do culto ou adoração de algo fora de nós, como na perspectiva religiosa, mas tão simplesmente como gratificação de um esforço. Digamos que nos contos não existe o estado de Graça nem mistérios. Tudo se desvenda e ultrapassa mediante o empenho, o esforço e a persistência. Só assim se compreende que eles façam da morte um bem, uma anulação do mal para sempre.
Desta forma, passemos em revista, sinopticamente, as diferenças que nos parecem mais prementes entre as narrativas religiosas e as dos contos:
As religiões falam de Deus, os contos de justiça;
As religiões utilizam rezas para atingir Deus, os contos usam a magia para chegar à felicidade;
As religiões apelam à confissão, embora em moldes muito diferentes entre si, para limpeza espiritual, os contos apelam ao trabalho árduo para alcançar o prazer;
As religiões dizem-se portadoras da verdade, os contos ensinam a conquistá-la;
As religiões falam de perdão, os contos ensinam a matar o mal;
As religiões fazem alusão a anjos guardiães, seres à parte criados por Deus já perfeitos, os contos a fadas madrinhas, isto é, entes mágicos;
Para as religiões, os homens definem-se segundo o prisma através do qual pretendem atingir Deus; para os contos os homens apenas se definem como bons e maus, justos e injustos;
Para as religiões, os homens dividem-se segundo a sua importância social e política; para os contos apenas em ricos ou pobres, príncipes ou pastores, porque absolutamente todos estão sujeitos às mesmas provas, aos mesmos sofrimentos;
Para as religiões, a morte é o encontro com Deus, os Anjos, o Nada; para os contos, a morte é terrífica para os maus, vida de prazer eterno para os bons.
Como facilmente se observa, no quadro de diferenças que os caracteriza, parece-nos ser a religião que contem o discurso dos contos, através de recurso mal disfarçado à magia, e não o contrário. Dentro da vivência religiosa, é tão mágico o anjo guardião quanto a fada madrinha do conto; é tão mágica a reza quanto as fórmulas mágicas para enganar a bruxa má no conto; é tão mágico o paraíso quanto o palácio; é tão mágico o sacerdote quanto a velhinha, maga detentora dos saberes ocultos libertadores de sofrimento.
Religiões e contos não se opõem nem definem pelo facto de as primeiras falarem de Deus e os segundos não, mas simplesmente por uma diferenciação, que aliás nos parece de alguma forma subtil, face a uma discursividade em torno de critérios de diferente uso da magia.
O campo religioso não é mais que uma das muitas vertentes mágicas, donde falar de Deus é um complemento acompanhado de ritos e fórmulas pagãos. As religiões não são capazes de Deus sem tudo isso, se o fossem deixariam de ser religiões e passariam a outra coisa: movimentos de cultivo do Espírito por excelência, como o Espiritismo, por exemplo, que escapa a todos esses preceitos.
Vejamos, sob aspectos diferentes, como os contos encaram a problemática da morte com objectividade e como um bem. Como ponto de partida, procedamos a uma analogia do conceito de morte entre o mito de Adão e Eva e os contos, a partir do factor desobediência. Esta ligação insere-se no facto de o conceito de morte, quer no mito bíblico quer nos contos, estar em correlação com o de vida, bem e mal, certo e errado, justo e injusto.
w Itens que fizeram parte da comunicação apresentada nas III Jornadas Históricas de Seia: 2. “A mãe morta”; a) “A criança não vai ao túmulo da mãe”; 4. “Porque contamos contos?”
(Continua)
Barbara Diller