quarta-feira, maio 27, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXIX


A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVANGELHO

(Continuação)

b) interpretações que assustam

Tentando, por inobservância, fazer do Evangelho um código penal intolerante e culpabilizador da história da humanidade, não foram poucos os que lhe acresceram, por ignomínia, um vasto tratado de superstição.
Pensando que combatiam o “paganismo ateu”, ou as crenças politeístas e idólatras, transformaram, à custa de repressão, o texto de amor num verdadeiro rosário de suplícios infernais.
Porque a reencarnação é uma teoria que nasceu no recôndito da alma e espelhava o seio das correntes espirituais politeístas, em franca ascensão; porque o politeísmo era um pecado vil contra a proclamação do Deus único; não percebendo que a escala que lhe estava naturalmente implícita correspondia a níveis espirituais e consequentes desempenhos em actividades bem delimitadas, tudo foi feito para mostrar que o demónio tinha a humanidade possessa e entregue aos ídolos.
“Há muitas moradas na casa de Meu Pai” é a forma mais redundante de transmitir o que significam esses deuses senão habitantes dos mundos infinitos que enxameiam no Universo, todos procurando evoluir, dos mais primários aos mais subtis, uma vez que a evolução é um poço sem fundo.
Edgar Morin (1998?, p. 151), para quem que o espiritismo nasce com a crise da burguesia e com a angústia moderna da morte, afirma: “Espantosa, extraordinária identidade entre o espiritismo e as crenças mais arcaicas referentes ao duplo.” (ibid., p.153). Segundo esta perspectiva, teríamos, e com razão, que afirmar que o Evangelho de Jesus é um tratado sobre duplos ou fantasmas, pois é nele evidente a permanente alusão ao mundo invisível, como atrás fizemos menção. Ele próprio deixou bem explícito que o Seu reino não é deste mundo.
No entanto, a teoria “arcaica” dos duplos é muito louvável, benéfica, pois ainda não foi nem será ultrapassada. Que somos nós senão os duplos do que seremos um dia? Somos Espíritos primários, preze a Deus que num futuro não muito distante em que, face ao passado que está a acontecer neste início de milénio, sejamos mera lembrança, arcaísmo empoeirado na memória que guarda todas as informações de outrora, aquilo a que chamamos presente.
Os nossos antepassados são os fantasmas de nós mesmos, aqueles com os quais partilhámos a vida, arquivos de saberes que estão guardados em nós e que transportamos milénio após milénio. E a propósitos de alguns deles, os que mais se destacaram pelos seus feitos valorosos, Máximo de Turim afirma: “Os mártires guardam-nos, a nós que vivemos com os nossos corpos, e tomam conta de nós quando abandonámos os nossos corpos. Aqui impedem-nos de cair no pecado, lá protegem-nos dos horrores do inferno, inferni horror.” (Citado por PHILIPPE, A., 2000, p.45. Sublinhado do autor).
Ora, nem o Espiritismo nem o Evangelho são arcaísmos, apenas os homens são os mesmos nas suas crenças e modos de estar perante a espiritualidade, pouco evoluindo desde então até aos nossos dias, mantendo-se, consequentemente, os mesmos anseios porque expostos a experiências mediúnicas idênticas e grandes sofrimentos.
Crer na imortalidade da alma nas civilizações clássicas, e mesmo antes disso, é o ponto de charneira para compreendermos a crença nos Espíritos, e sua comunicação com a Terra, codificada por Kardec, posto que os Espíritos são os deuses de outrora.
O que há de novo é uma generalização, expansão ou explicação destes fenómenos de forma mais livre e mais coerente com a razão, pois que as mentes dos homens estão consideravelmente mais abertas para compreenderem que a mediunidade não é religião. Crer nos Espíritos já não é apanágio de uma civilização, nem resultado da crise da morte, mas uma consequência do surto de manifestações mediúnicas que nos dois últimos séculos se têm vindo a verificar um pouco por toda a parte, obrigando a que, por motivos espirituais, as fronteiras políticas, mas também as raciais e culturais, não sejam impedimentos à livre expansão e troca de experiências nesta matéria.
Além disso, o Espiritismo não nega as raízes da Humanidade, quanto à sua ascendência espiritual, mas tem, pelo contrário, a missão de lhes revelar o seu fio condutor, sequencial, mostrando que o homem de hoje é o de ontem, apenas num outro corpo.
Tal como se verifica no Evangelho, as aparições dos Espíritos, por exemplo a transfiguração no Tabor, a aparição de Jesus na estrada de Emaús, a ressurreição predizendo a vinda do Espírito da Verdade, o túmulo vazio, etc., não são alucinações, nem se confundem com tal. Há, no entanto, que debruçar-se seriamente sobre o fenómeno a fim de que se não confunda um desarranjo afectivo e emocional com consequente quadro clínico de perturbação mental, com algo que efectivamente se manifesta, clara e distintamente ao médium e que tem como objectivo ensinar princípios e máximas para suavizar a vida dos encarnados.
Alucinados são todos aqueles que atribuem, ou fazem referência, à presença de outros quanto aos actos que são só seus, ou porque não suportam a culpa, ou por narcisismo, ou por infinitas razões resultantes de situações traumáticas em que o indivíduo se sente exposto a um conjunto de excitações que ele não domina. Segundo Freud, trata-se de uma reacção automática em que o indivíduo pretende que o fenómeno não se repita.
No entanto, excluindo o aspecto mediúnico, o Espiritismo abarca estes casos em seus núcleos temáticos, pois eles fazem parte da pesquisa permanente que consiste em aprender a destrinçar o que é dos Espíritos e o que é do homem enquanto vivente na Terra. Sobre estas questões, Cairbar Schutel diz que “sejam quais forem os nomes com que os fatos se apresentem, em suas múltiplas modalidades, não deixam de ser fenómenos, efeitos cuja causa não pode ser senão a alma, princípio inteligente que (está fartamente provado) atua independentemente do corpo carnal(...)
Cientificamente falando, não há um só fato de caráter inteligente que seja alheio ao domínio do Espírito, ou, em outros termos, que não possa ser explicado pelo Animismo ou pelo Espiritismo.”(1979, s/ n.º de pág., Preâmbulo).
As comunicações sérias não são resultado de alucinações, mas as não sérias são geralmente inibidoras da razão, culminando primeiro em possessões e fascinações, e só daqui, quando não tratadas a tempo, evoluem para um quadro de alucinação, que se apresenta geralmente por alucinação auditiva, muito embora havendo outros.
Saliente-se que, neste caso, trata-se de uma questão resultante de comunicações com Entidades obsessoras, a qual não tem directamente relação com mecanismos de fuga a que alude Freud. Igualmente, isso não significa que o doente espiritual não acumule as duas situações.
Posto isto, para ser cristão há que aceitar que, por meio do Evangelho, nem sempre temos uma explicação muito simpática dos fenómenos da nossa vida, mas temos a única que faz sentido: ”Quem quiser vir após Mim, pegue na sua cruz e siga-Me.” Isto significa que a exigência do Evangelho não assenta numa imposição, mas na livre adesão à cruz para conseguir Deus ou as sublimes moradas.
Não é possível ser-se cristão envernizado. A vida cristã não é um processo de cosmética ou experiência plástica de ritos ou de alaridos, mas de recolhimento, partilha, entreajuda, em uma palavra, Amor Universal.
Não é de manifestações espectaculares que os Espíritos carecem, mas de preces em silêncio, completamente alheias ao vulgo. Eles precisam de, tal como nós, subir às altas esferas da espiritualidade, colocar-se acima de tudo o que é terreno, ouvir a voz dos que calam na alma universal da paz e do bem eternos.
Abafar a verdade, colocar a candeia debaixo do alqueire, impor regras e além disso impô-las como as únicas verdadeiras, é abrir as portas à negatividade, deixar que a ignorância construa seus templos de pedra, prolongue a idolatria. A história da nossa religiosidade confunde-se com o percurso das nossas trevas, do caminhar na escuridão. Ela confunde-se com as acções diabólicas e mirabolantes da tortura, destruiu lares, entregou à fogueira os profetas do Invisível.
Mas contra a tormenta dos homens, a fé no Evangelho prevaleceu. Oposta a todas as interpretações falaciosas, a voz de Jesus impunha-se nos corações missionários fazendo explodir o Pentecostes nos corações abnegados, transmitindo-lhes a linguagem universal do Amor, espalhando o Seu Espírito por toda a Terra a fim de que todos possam dizer que a doce voz da Verdade é um manto de luz que a todos protege.
Hoje, mercê do progresso e desenvolvimento social a que o homem ascendeu, e graças ao elevado número de reencarnações de que ele é portador, o Espírito está mais aberto às novas formas de caminhar para o Além. Um dia, que não se prevê muito distante, esse passado tenebroso não será mais que uma ténue lembrança nos manuais de História Universal, pois que de seus monumentos nem tão pouco “restará pedra sobre pedra”, tal como a religião egípcia que, apesar da sua magnitude, dela mais não resta que mera informação documental.
(Continua)

Barbara Diller

domingo, maio 03, 2009

MORTE É FELICIDADE XXXVIII


A PROBLEMÁTICA DA MORTE NO EVANGELHO

(Continuação)


a) “Deixai os mortos enterrar os seus mortos.”

Com Jesus, o corpo não confere estatuto de vida. Por outras palavras, a vida carnal é um dos múltiplos modos de apresentação da morte. A informação biológica que denuncia a presença de um vivo – respirar/alimentar-se – não é a de um vivo espiritual, apenas a de qualquer forma de vida ainda que elementar. Ao vivo, não é fundamental ter corpo físico. Múltiplas formas de vida nos circundam, infinitas inteligências envoltas em seus mistérios, sem corpos densos como o nosso e no entanto bem mais lúcidas do que nós.
Podemos dizer que não nascemos vivos, mas com uma natural propensão para viver, incorporados em parâmetros de uma espiritualidade com a qual nem somos capazes de sonhar. Que somos face aos anjos e arcanjos? Até mesmo quando comparados com os nossos familiares e amigos que já partiram, que tantas e tantas vezes nos visitam e não somos capazes de perceber, ainda que tenuemente, a sua presença? Não seremos nós, porventura, os mortos? Não seremos nós os que, vivendo nos planos tão densos e tão grosseiros da matéria, ainda nem sonhamos sequer com coisas mínimas como são o mundo que nos espera, o tipo de companhias a que seremos entregues, o género de Entidades trabalhadoras do lar universal que nos acolherão? Efectivamente, nós é que somos os verdadeiros mortos.
Vejamos ainda: A nossa consciência é mínima, a capacidade de concentração rudimentar, o amor adormecido, a noção da nossa identidade nula, o passado esquecido, as capacidades mediúnicas cheias de erros, falhas e fraquezas, a inteligência elementar, os sentidos enganosos, os conhecimentos parcos.
Quem somos, afinal? O animal que luta em busca de uma morte feliz? O louco que procura a imortalidade, mau grado a realidade biológica? Não, o homem é o ser que luta por uma vida que ainda não tem, a plenitude, a consciência, a visão da realidade, o Bem.
Jesus representa essa plenitude. Muito embora seja para muitos um deus, ou mesmo Deus, o certo é que o estatuto de morte em nada se opõe à elevação espiritual de uma Entidade. Muito pelo contrário, consolida-a. Morrer faz parte da vida, quer dos bons, quer dos menos bons, associando-os segundo parâmetros morais e éticos. A morte de Jesus é o espelho da sua elevação, símbolo de Quem já não pertence a este mundo.
Em Jesus aprendemos que ao nascer já trazemos a marca da morte que nos transportará à vida eterna, pois somos arquivo vivo de um passado que, por mais oculto, o momento da passagem encarrega-se de friamente revelar.
Por isso, a morte de Jesus emerge de uma noção pagã de passagem ou mudança de estado, selando o nosso encontro, infelizmente há muito adiado, com a eternidade em luz. Ela procede ao reencontro com os que nos são mais queridos, dantes chamados deuses pelo fenoménico com que nos preenchiam a vida, pelo tremor que causavam, pelos postulados que nos legavam.
É dessa relação com o desconhecido, desde sempre perspectivada como uma comunicação com as forças ocultas da Natureza, que Jesus Cristo vai construir a sua moral. Transportando para o íntimo de cada um de nós as razões de semelhantes ocorrências, Ele ensina que só pelo Amor celestial conseguiremos aprender o que esses seres têm para nos ensinar, precisando para tal de nascer de novo.
Isto remete-nos para a reflexão de que talvez não tenhamos começado aqui, neste planeta, nem devamos acabar nele. A nossa vida é transcendental, donde as nossas acções não mais que uma triagem da nossa estrutura espiritual, com sérias repercussões sobre o nosso futuro, e consequentemente sobre a nossa morte. É inútil agarrarmo-nos à vida como lapa à rocha, é inútil enchermos os celeiros até abarrotarem. De um momento para o outro partimos, partimos mesmo, e a agonia que experimentamos no grande momento não é o receio da morte, mas o apego à vida terrena, aos bens que cá deixámos, a quem os deixámos.
Somos mortos, de facto, quando insensatamente não queremos esquecer que tudo cá fica, até o nosso corpo, até o que de mais amamos, até aqueles que amamos, mas também os nossos sonhos, os nossos anseios, as nossas lutas. Todavia, o Pai amantíssimo, através de Seu Filho, promete-nos o paraíso de bênçãos para os que crerem até ao fim, os que não vacilarem, os que não acreditarem mais nos homens que em seu Filho.
Para quê mortos chorarem mortos? Porque queríamos que eles vivessem mais tempo junto de nós? Porque morreram muito jovens? É certo que tudo isso nos faz sentir uma dor muito forte no peito, aquela dor de uma despedida muito especial, um adeus muito grande, aquela dor cuja profundidade só a alma entende, só o Espírito define. Mas Jesus veio para nos dizer que isso não faz sentido para os que tiverem fé. Se compreendermos que um punhado de anos nada são para definir a nossa existência, que nada faria sentido se terminássemos, assim, feitos em pó, certamente que, refeitos da nossa dor, emergirá uma luz cujo clarão nos conduzirá ao lar da paz e da fraternidade.
Heraclito de Éfeso dizia, “E como uma mesma coisa, existem em nós a vida e a morte, a vigília e o sono, a juventude e a velhice: pois estas coisas, quando mudam, são aquelas, e aquelas, quando mundam, são estas.” (frag. 205, p191). A vida e a morte confundem-se e distingui-las depende apenas do lado em que estamos, do ponto de observação em que nos colocamos. Os mortos, quando morrem, passam a vivos; os vivos, quando nascem, passam a mortos. E estes últimos somos nós.

(Continua)

Barbara Diller