sábado, dezembro 31, 2011

O NATAL DOS ESCRAVOS



Alguns são vítimas da luxúria e da ganância, outros do salário da sobrevivência, outros da pobreza mais acentuada e da miséria... todos são escravos, cada qual à sua maneira.

Se no passado a escravatura estava restrita a um espaço geográfico determinado, se era um produto como as especiarias ou o café e o açúcar, hoje tornou-se uma realidade à escala planetária, o produto mais desejado porque o mais barato, logo o mais rentável. Esta nova forma de escravatura, assentando essencialmente no silêncio e no voto por cabeça, reduziu a Democracia a uma quimera, um desejo longínquo.

Na sociedade esclavagista grega, a Democracia assentava na liberdade de expressão, na discussão dos assuntos públicos, donde o bom cidadão era aquele que se interessava politicamente pela vida da cidade. Quanto aos escravos, todos possuíam ouvido afinado e entendiam de tragédia, o que é normal pois ser escravo não significa ser surdo. No Império Romano, os escravos não podiam ser abatidos pelos donos, que tinham que os alimentar convenientemente. No sec. I a.C. o dono deixou de ter direito sobre a vida dos escravos, os maus tratos foram proíbidos e passaram a ser severamente castigados.

Nos tempos de hoje, vive-se o silêncio dos cidadãos e o livre pensamento tornou-se perigoso. Dizer o que pensa pode custar ao trabalhador o seu posto de trabalho, pode mesmo nunca mais vir a trabalhar e a acabar os seus dias debaixo da ponte. Pode até custar-lhe a permanência na religião, no grupo de amigos, porque, na realidade, ninguém quer dar-se com um marginal.

A agravar a situação, surge o fantasma da pobreza como um cancro, para os que estão relativamente seguros no seu posto de trabalho. O salário não chega num mundo de paradoxos, onde é criado o desconforto social por não se possuir determinado produto, de determinada marca, ou seja, o artifício do outro lado de uma marginalidade fantasiosa. A pobreza é um espectro negro num mundo cheio de produtos para todas as necessidades, e de religiões ao serviço das mesmas, as quais se apresentam cinicamente como entidades salvadoras de almas, de discursos que apelam à coragem, consequentemente ocas e ausentes de fraternidade.

Mensagens bonitas não faltam. Discursos apelativos ao bom entendimento entre todos os povos super-abundam, porém, cada uma pretende tirar para si o maior proveito do que a Natureza produz, enriquecer facilmente, fugir aos impostos, criar mecanismos tão complexos quão perigosos para subverter, subornar, dominar pela força e pela violência. As religiões são mestras neste tipo de coisas.

Ninguém pense que se acabaram as castas, a fidalguia ou os berços de oiro. Pelo contrário, eles estão cada vez mais em voga. As religiões precisam deles, precisam de ricos cada vez mais ricos e de pobres cada vez mais pobres. Os primeiros, para as alimentarem, manterem os seus dignatários, que vivem sem trabalhar, sob o pretexto de cumprirem missões, nomeadamente a pregação do Reino de Deus; os segundos, para manterem debaixo da sua alçada, os pobrezinhos, coitadinhos, que escaldam com uma tijela de sopa tépida.

Os empregos mais destacados, por exemplo, pivots da TV, apresentadores, directores de fundações, dirigentes de instituições de caridade, só para citar alguns, são entregues a quem tem nome sonante, apelido vistoso na praça, e a quem está destacado para “trabalhar” nesses métodos obscuros de caridade. Quanto ao emprego, a competência não é o factor decisivo, isso só é importante para algum empresário honesto, ou para algum potencial candidato a um posto de trabalho onde apenas pretende ganhar o salário que lhe dê de comer, uma vez que ir além disso já é um luxo.

E assim caminhamos, num mundo que se tornou estreito, um lugar apertado onde só entram dois tipos de pessoas: os que mandam e os que obedecem. Os primeiros, felizes com a ilusão do poder, os segundos, felizes com a ilusão do pão garantido. Os primeiros dizem como se faz, os segundos aprendam a ideologia dominante ditada pelos primeiros: ausência de família, desprezo pelos valores tais como dignidade, verdade, sinceridade, altruísmo; desrespeito pelos mais velhos e pela vivência de que são portadores, sobrevaloração dos mais novos que, não tendo as referências destes, aprendem o servilismo, sem de tal se darem conta; minimização da própria identidade em prol do serviço à casta dominante, aos filhos d´algo, ao luxo esmagador.

Neste aspecto, somos todos carrascos dos valores, da liberdade que deixou de ser a coroa da glória, da política que já não é palavra, mas número, da lei que já não educa, prisioneira da corrupção. Já lá vão os tempos da ágora de Atenas, do cidadão empenhado e politizado. Vivemos a segregação, as dualidades redutoras, os sistemas binários cheios de clivagens. Falamos de ricos e pobres? Não. Falamos de multimilionários e de miseráveis, do desperdício e da ausência, de grandes mentiras e de verdades quase microscópicas, ou antes, caleidoscópicas.

Onde estão as grandes mensagens dos profetas de todos os grupos religiosos? Caíram no vazio, convertidas em histórias para adormecer, outras nem isso; algumas no inconsciente colectivo dos povos, no saudosismo do respeito pelo outro, enquanto representante e portador de humanidade e de Deus e da sua mesma individualidade.

Vítimas e simultaneamente produtoras de esteriótipos, as religiões perderam o combóio da salvação das almas, chumbaram no seu trabalho missionário porque deixaram-se arrastar pela ganância, pelas honrarias mundanas contra as quais tanto alertaram os profetas. Jesus não foi excepção ao referir os sepulcros caiados por fora, aos primeiros lugares nas sinagogas e nos banquetes, a voragem das casas das viúvas, as preces vistosas, em público, as longas vestes, o muito dizer Senhor, Senhor, etc. As religiões já não recorrem aos profetas, abdicaram deles. Elas usam-nos como um paramento bonito e nada mais.

Não é o Natal cristão que está em crise. São os natais de todas as religiões, dos seus profetas tão sábios quanto humildes, dos grandes mensageiros do Divino, da dessacralização da Natureza e da Vida. Perderam-se os natais dos corações, das famílias, que se desmembraram. Vivemos cada vez mais o natal que nos querem impor, o natal dos outros; vivemos uma fé que não é a nossa, uma espiritualidade fragmentada, comprada, importada. E se é verdade que crescemos por meio de contágios, não é menos verdade que deve ser cada um a escolher, a dissecar o que lhe é proveitoso do que lhe é dispensável.

Tirem-nos tudo, mas não nos deixem orfãos. Dêem-nos de novo as nossas famílias, queremos os nossos filhos, queremos orar pelos nossos antepassados, queremos viver com os nossos vivos e os nossos mortos. Queremos as nossas raízes, as nossas referências, o nosso curriculum vitae que constitui a nossa história pessoal e divina. Porque nos tiram isso? É fácil de perceber: uma família unida é a maior força social que existe, psicológica, política, religiosa e economicamente. Um escravo não tem direito à família.

Aprender a ser livre é a grande história da nossa História. O problema é que, desta vez, somos nós os agentes da nossa mesma escravatura, os grilhões e a condenação às galés são o resultado dos braços cruzados, da falta de coragem para dizer que crescer para a liberdade é também uma questão da fé, da relação com Deus, do modo como O vivenciamos na nossa História. Não podemos deixar que a caravela se afunde no desespero da pobreza. Lembremo-nos que, desta vez, até os ricos são escravos.

A ambição criou a desvaloração da família, espalhando as heranças ao mesmo tempo que a transmissão da fé de pais a filhos. Perdeu-se a noção de que família e fé acompanham-se como realidades identitárias, formas de ajuste de um passado mais ou menos remoto, conquistas de perdão que estavam relativamente adiadas, como defende o Espiritismo. A sociedade não pode ser um aviário produtor de géneros humanos preparados para o consumo. Os principais elementos salvíficos, família e fé, são as bases da História, o móbil de uma trama milenar.

Não queremos estar calibrados, nem em termos de religião, de fé, de família nem de profissão. Dispensamos a moldagem e o fabrico em série de personalidades quais autênticas máscaras. Por outras palavras, não quero que pensem por mim, que escolham a minha fé, nem quero outra noção de família que não a minha, nem o posto de trabalho através de subjugação. Perdendo a sua herança material e espiritual, o homem vive a sua nudez, e perdendo a noção de família deixa de ter herdeiros de bens e de fé. Naufraga.

Já não andamos à descoberta de novas terras, nem de outros mundos. Nunca se falou tanto nem tão abertamente de Espíritos como nos dias que correm, mas não é por isso que estamos melhor colocados na relação com eles. Até o mundo do Além nunca foi tão perpetrado, por isso nunca nos enganou tanto como hoje.

Até as grandes máximas dos Espíritos Mensageiros são banalizadas. O que nos ensinaram os Vedas com as suas normas de conduta sob todos os aspectos da vida, o Tibete por meio de meditações e manuseamento de plantas e terras argilosas, os Egípcios com as Matemáticas e Geometria, e Pitágoras, e Sócrates, e Platão, só para citar alguns, todos tão caros ao mundo em geral, e à Doutrina Espírita, em particular. O legado de que somos herdeiros, como por exemplo a fé inabalável que os caracterizava, a importância que era conferida ao simples facto de sermos humanos, o que para todos significava relação com o Divino, apresentando o homem como o ser de consciência dos seus deveres para com a Natureza e o seu Criador.

Penso que até os Espíritos devem sentir o peso da banalização e do escárnio; também eles devem sentir a avidez de uma boa comunicação, um simples acto de fé, um pensamento cujo objectivo seja Deus. Ser Espírito, protector ou missionário, nos tempos que correm deve ser muito difícil. Não lhes queria a pele, ou melhor, o envoltório.

As novas religiões e com elas as novas formas de religiosidade, bem como as tentativas de adaptação das mais antigas à realidade de hoje falham porque não conseguem impor-se nem como alternativas nem como prolongamento dos discursos dos profetas da Antiguidade. As novas formas de viver a fé mais não são que meras reinterpretações que convidam a um reviver, retomar, reproduzir.

A nova vinda do Messias, ou a sua primeira vinda, como defendem os nossos irmãos Judeus (nós, cristãos, também o somos, de alguma forma, pois somos seguidores de um judeu exemplar), requer uma preparação que ainda não temos (ninguém melhor que os Judeus percebeu o peso dessa responsabilidade). O Natal que já veio, o Natal da segunda vinda, em grande apoteose, e o que está para vir são semelhantes. Todos requerem preparação, espiritualidade emancipada, fé libertadora.

Quanto a nós, cristãos, para quem o Messias já veio e está para voltar, como defendem alguns, que Messias pregamos? O Cristo libertador que celebramos no Natal é o Messias da redenção, do perdão das ofensas? Entedemos a sua mensagem como um discurso universal, dirigido a todos os povos, independentemente das suas formas de crença?

O Natal é um aniversário que celebra o grande libertador, confrontando-nos simultaneamente com o peso da responsabilidade de sermos portadores de uma mensagem de Vida Eterna. Mas também nos culpabiliza por enchermos as caixas de esmolas, libertarmo-nos dos farrapos que já não queremos, doarmos 1 Kg de arroz ou de massa aos pobrezinhos, que nesta quadra são mais importantes para a limpeza das consciências (o que seria de muitas sem pobrezinhos?), a catarxe da alma.

O Espiritismo tem a nobre missão de cortar com esta realidade. A caridade só é salvação quando feita com amor e associada a uma vivência purificadora.

Urge perceber o Natal como uma universalidade da fé. O Deus dos Hebreus presenteou-nos com mais um profeta que representa uma prova material, mais uma, da Sua existência junto do Homem. Cada Natal é um lembrete de que não estamos sós, e que encarnar, além de ser o cumprimento de um dever, é essencialmente missão.



Margarida Azevedo

quarta-feira, dezembro 14, 2011

GUINNESS BOOK, OS RECORDES DA ESTUPIDEZ


Penso que é dever de todos nós enaltecer os feitos espectaculares de todos aqueles que, mediante esforços quantas vezes sobre humanos, conseguiram enaltecer a condição humana. Só para citar alguns, é digno de mencionar o trabalho dos atletas nos Jogos Olímpicos e nos meetings, as descobertas científicas em todas as áreas, a coragem de alguns políticos em denunciar irregularidades do sistema político-financeiro, por vezes com o risco da própria vida, etc. Que haja um livro que os recorde, penso que é louvável, pois é a melhor forma de lhes prestar homenagem.

Porém, sem qualquer respeito pela dignidade humana, e minimizando os anseios de realização pessoal e colectiva de comunidades e mesmo de países que se sentem inferiorizados perante outros, o Guiness tem vindo a representar a obra literária dos recordes de nada.

Temos o recorde da maior feijoada do mundo, a maior pirâmide humana, o maior agrupamento de Pais-Natal, temos o maior arroto, quem tem as pernas mais compridas, quem consegue vestir mais de 180 t-shirts...

As televisões dão a maior cobertura possível, com tempos de antena em horário nobre, aliciam e, com toda a alegria do mundo, iludem o auditório mais frágil com as grandes proezas que ficam para a posteridade.

Não sendo capazes de ficar célebres por outros feitos, dão-se prémios a quem consegue comer mais hamburguers, ou beber mais água no menor espaço de tempo possível. A saúde e o bem-estar são de outra estirpe e, para ganhar nada, apenas alimentar a tola e ridícula vaidade, fazem-se concursos de estupidez.

Penso que é de mau gosto que a menina com a voz mais cristalina esteja ao mesmo nível de comparação com o maior cócó do mundo.

Com estas comparações perde a componente cívica, de forma que os “suficientes” ou razoáveis sentem-se minimizados por não conseguirem os níveis científicos ou atléticos de outros cidadãos, sentindo-se apagados por não serem campeões de alguma coisa. Há que perceber que todos possuímos um lado bom, todas as profissões são merecedoras de respeito, pois todas são interessantes, e que tudo e todos têm o seu devido lugar.

O varredor de ruas contribui de forma espectacular para o nosso bem-estar. As ruas sujas são fonte de epidemias. O melhor seria não as sujar, ficando o varredor com a incumbência de limpar apenas a sujidade provocada pelas nuances da natureza.

A mãe que é doméstica e toma conta da casa e dos filhos é uma victoriosa; o trabalhador que sustenta a casa é um herói; cuidar de um idoso acamado ou de um filho deficiente profundo é sobre-humano. Estes são os guinnesses pessoais de milhões de pessoas que ficam no anonimato, mas que nem por isso são menos importantes.

Lutar contra as dificuldades da vida, as injustiças, as descriminações, seja em que área for, é trabalho de todos. Fazê-lo é criar condições para nós e para os outros, nomeadamente para os tais que fazem os prodígios científicos, desportivos...

Em suma, todos precisamos de todos, todos somos devedores para com todos, mas todos devemos combater com todas as forças o triunfo da estupidez. Só pela educação conseguiremos perceber que, por mais fértil que a terra seja, sem o agricultor não há legumes nem frutas à mesa, por mais competentes que sejam os engenheiros e os arquitectos, sem serventes não há prédios e morávamos na rua, e por mais sábio que seja o professor, só com o apoio dos auxiliares de educação é que a escola funciona.

Cabe a cada um de nós a tarefa de combater as descriminações, as intolerâncias e a violência de toda a ordem, mas também a agressividade geradora de mal-estar, de doenças sociais sem o mínimo de sentido. Esta é também uma tarefa das religiões e de todos os grupos espirituais, ou seja, antes de ir pôr a esmola na caixa, há que reconciliar-se primeiro com o seu irmão. Amen.

Margarida Azevedo

segunda-feira, dezembro 05, 2011

O PROBLEMA DA IDENTIDADE


Nascemos herdeiros de uma mistura complexa de instintos e cognição, uma estrutura biológica elaborada, que se traduzem em alguma informação, conhecimentos relativamente manifestos ou latentes, traços físicos e psíquicos. Porém, mais que ter consciência de possuir alguns resquícios mnemónicos de tais conteúdos, a maior luta do ser humano é, sem sombra de dúvida, querer saber quem de facto é.

A procura da identidade perde-se num pântano nebuloso gerador de fantasias, numa sopa cujos ingredientes razão, sensibilidade, sentimentos, reminiscências se inter-misturam originando valores, tendências, normas, etc. São esses laivos de informação que nos remetem para um suposto saber de uma infinidade de “existências” remotas, as quais estão arquivadas no nosso processo existencial, e que constituem o alvo principal da pesquisa para a resposta a “Quem sou?”

De um ponto de vista da Psicanálise, com estes ingredientes é criado um mecanismo de fuga que, em vez de dar uma resposta, procede antes a uma desculpabilização do eu ao recalcar episódios desagradáveis. Por outro lado, a minha ignorância sobre mim mesmo(a) deve-se à estrutura psíquica, à sua mesma natureza. Isto significa que fomos feitos assim, temos um aparelho psíquico que não suporta a consciência do conhecimento de si mesmo. Será?

Neste aspecto, a religiosidade tem desempenhado um papel preponderante. A procura de quem sou? não tem tanto a ver com a pesquisa sobre o passado psíquico, nem com o facto de sermos capazes ou não de suportar episódios recalcados, caso o pudessemos desvendar, mas com o modo como é ultrapassado o peso da perda do paraíso perdido, uma idade de ouro em que fomos totalmente felizes. A Religião surge como o tal re-ligare que pretende repor a ordem pré-estabelecida, apresentando-se como o único caminho salvador capaz de revelar ao homem quem é. Desta forma, a questão do desconhecido não é relevante, mas sim o retomar a vida de plenitude só possível no seio de Deus. Para isso, basta cumprir determinadas normas, cujo fim é escapar ao pecado.

Projectando o crente para o futuro, a Religião promove a beatitude como a única forma do conhecimento de si: conhecer-me é ser puro(a), isto é, desprovido(a) da capacidade de pecar, logo de deixar de sofrer. Assim, o fantasma do castigo aterrador converte-se no móbil para a modificação intrínseca do crente, cujo fim último é vencer a morte, pois que a pureza é um estado de vida eterna em Graça.

Porém, longe de ser um estado definitivo, o ser beatificado não está isento de voltar a cair. O Bem não é um estado permanente nem irreversível, mas transitório. O puro pode querer ser ainda mais puro e pretender ser igual a Deus. Aí, cai redondo no chão e recomeça todo o processo. Por outras palavras, o Bem não é aceite para sempre, não é uma vivência em que o prazer da Felicidade, uma vez atingido, seja o grande horizonte. Pelo contrário, a ambição é tão forte que consegue habitar nos mais elevados castelos do Bem.

Nesta perspectiva, o que é que não é transitório? O Mal. O Inferno ardente é o local para onde vão os maus, sem hipótese de saída. A nossa natureza, que desconhecemos, parece que gira em torno do temor da Queda, mas não consegue evitá-la, donde o Mal não é uma resultante de querer ser como Deus, uma vez que tal é corrigível pela existência depurativa e purificadora, mas tão simplesmente por se ser mau enquanto oposto ao Bem.

Por outras palavras, querer ser como Deus, na sua duplicidade de Bem e de Belo, é menos grave que cometer qualquer acto mau. Quanto a isso, em Sua infinita bondade, Deus dá ao homem a possibilidade de retomar todo o processo evolutivo. A religiosidade responde, assim, à questão de quem sou: herdeiro da Queda mas não do Mal, porque o Mal pertence a um reino de onde ninguém sai; cair é querer ser o que não é, Deus. Saber quem sou? pertence desde logo a uma exclusão, a saber, não sou nem jamais poderei ser como Deus. É esta a ordem que a vivência religiosa pretende repor.

O Espiritismo, através de uma forma muito peculiar de encarar a reencarnação, tenta acalmar o eu ávido do conhecimento de si mesmo ao acoplar a noção de evolução sem queda. Sentimo-nos confortados por sabermos que no passado fomos muito piores do que no presente. Não perdemos nenhum paraíso, nem houve uma idade de ouro. Pelo contrário, fomos protagonistas de uma realidade terrível, muito longíqua e muito próxima, num mundo muito antigo e num tempo remoto que se prolongou até aos nossos dias e cuja lembrança, por graça de Deus, perdemos ao reencarnar na Terra. Não existe uma desculpabilização nem des-responsabilização do sujeito, no que toca a uma herança do passado, mas há o princípio de que em cada vida o homem reforça as suas capacidades espirituais. A purificação não se consegue no para lá, mas conquista-se vida após vida, em qualquer lado, neste planeta ou fora dele.

Neste ponto, o Espiritismo não pressupõe uma conquista da Terra, como o defendem as Testemunhas de Jeová, mas uma libertação da mesma. Porém, coincidem no facto de crerem que a Terra será para os justos, quando a mesma estiver liberta de todos os males. A diferença está em que, enquanto as Testemunhas crêem que as almas retomarão os mesmos corpos, o Espiritismo defende que os Espíritos viverão em corpos diferentes.

Esse mundo cheio de escolhos mais não é que um substituto do resultado do pecado original dos católicos. A diferença reside no facto de que, enquanto para estes alguém pecou por nós, no Espiritismo somos portadores das nossas próprias faltas, e não das dos outros. Pecámos num tempo imemorial, somos herdeiros desse pecado do qual só nos libertaremos pela fé em Deus e pela prática do bem; no Espiritismo, além do facto de a idade de ouro ou a vida paradisíaca ainda estarem para vir, na Terra, ou já existirem em planos superiores da Espiritualidade, o Mundo da Luz só será atingido após uma infinidade de encarnações, cujo objectivo primordial é escapar aos liames que prendem o indivíduo à Terra, enquanto esta se mantiver no nível em que se encontra actualmente. O Bem não se alcança numa só vida.

Viver, para os Cristãos, é uma catarxis na medida em que se traduz pela procura da luz ou do plano angelical. Porém, a diferença mais acentuada entre o Espiritismo e o restante mundo cristão reside, em suma, no facto de que para a doutrina espírita à pergunta quem sou? a resposta é: um Espírito a caminhar para Deus.

O conceito de evolução segundo o Espiritismo não é o de um sobe-desce, mas um projecto rectilíneo de um menos para um mais, em que a informação adquirida e as qualidades morais do indivíduo jamais se perdem. Por outras palavras, a nossa existênca move-se em torno de conceitos tais como menos infinito e mais infinito, uma vez que, não definindo a nossa recôndita e penúmbrica origem, não vislumbramos igualmente os contornos do futuro deslumbrante que nos aguarda.

O mais objectivamente comparável com esta tese são as Parcas, da mitologia grega, tão cara à Religião e à Psicanálise, Cloto, Laquesis e Atropos. A primeira possui o novelo da Vida, a segunda desenrrola-o e a terceira enrrola-o. Nós somos isso. A cada encarnação abrimos o novelo de fios justapostos que, ao voltar a ser enrrolado, nunca o será da mesma forma, pois que a nova experiência introduziu no indivíduo alterações da personalidade de forma que é outro sendo o mesmo. Cada um de nós contém as três Parcas; num futuro que não se sabe, o novelo não voltará a ser enrrolado.

Desta forma, podemos classificar o Espiritismo como uma doutrina optimista. A cada vida que passa seremos sempre melhores, muito à semelhança da filosofia de Leibnitz para quem nós vivemos no melhor dos mundos possíveis e cada indivíduo é o melhor possível. Aplicada ao Espiritismo, significa que possuímos a potência para a realização de tudo o que viermos a concretizar. O livre-arbítrio, que não é liberdade, é mera escolha dentro de um saco cheio de possíveis.

Vivendo com o espectro da culpabilidade humana, a vida significa redenção, donde o esquecimento funciona como um mecanismo contra a atrofia do progresso. Saber o que fizemos faria perigar o presente que, ao invés de ser uma mais-valia, seria, definitivamente, o caminho mais recto para o chumbo das provações, além de que não conseguiria acrescentar algo à resposta a quem sou?.

Assim, o conceito de esquecimento possuí esta ambivalência: se por um lado introduz o indivíduo na responsabilidade da construção do seu edifício religioso-espiritual, na medida em que é uma benesse, por outro remete-o para uma espécie de mega-arquivo, onde está a informação de milhões de existências, cujo esquecimento é fundamental para o seu equilíbrio no presente. Por exemplo, a terapia de vidas passadas, tão em moda em alguns meios espiritualistas, em Espiritismo é um erro, uma actividade perigosa.

A cada vida, ao pretender corrigir esse passado inconsciente, esquecido, impenetrável e cheio de erros, viver torna-se uma reformulação desse mesmo passado. Dito de outra forma, viver é corrigir. No entanto, há aspectos que podem ter-se repetido mais que uma vez, pois o indivíduo pode ter falhado nas provações da vida, por exemplo, ter-se revoltado contra a sua má sorte.

Posto isto, perguntamos: como aliviar esse peso de um passado que causa tantas dores de cabeça? Cada religião tem as suas propostas, e o Espiritismo não foge à regra. Os ritos entram aqui com toda a sua punjança; pretendendo celebrar uma idade de ouro, lembrar um profeta importante ou agradar aos deuses, temos uma panóplia complexa de interditos e fórmulas.

No Espiritismo há uma transposição do rito para o passe purificador. Há quem chegue a acreditar que há médiuns especiais, muito desenvolvidos, os únicos em contacto directo com Entidades sublimes, logo os passes são mais eficazes. A relação de muitos espíritas com o passe é em muitos casos, semelhante com à relação que muitos religiosos têm com os seus deuses.

Desta forma, podemos afirmar sem grande margem de erro que, tal como a Eucaristia católica lembra a Morte, Paixão e Ressurreição de Jesus, o Passe lembra a imposição das mãos e todas as Suas curas, num objectivo de libertar o crente das negatividades.

Em suma, viver é conviver com o desconhecimento de nós próprios e, lamentavelmente, nem a Ciência, nem a Filosofia nem tão pouco a Religião têm a resposta. Nem sei mesmo se são caminhos. Acho que são ensaios, meras tentativas. Se forem mais do que isso, que Deus me perdoe por as reduzir a tão pouco. Moldam-nos, mas a modificação e a procura do Conhecimento e da Sabedoria, e de Deus, é trabalho pessoal e da Fé.

Viver é pesquisar, procurar a nossa arquê. Somos todos arqueólogos da nossa existência, buscamo-nos, procuramo-nos sem cessar. Mas essa arquê não me parece que seja a de vidas passadas, mas uma essência que nos projecta para um futuro longínquo. Pesquisar a nossa história individual e colectiva não tem a chave-mestra.

Quem sou? é uma pergunta a que Descartes responde “sou uma coisa que pensa”. Nesse contexto, com reencarnação ou sem ela, a procura de mim mesmo(a) é uma questão existencial. Nem a teoria das reencarnações a anula, nem o seu contrário. Estamos num impasse.

Talvez seja por isso que quem sou? não aparece na Codificação. Temos antes a pergunta O que é Deus? Se calhar é mais fácil. Quem sabe? Haja alguém que tenha a coragem de dizer “sim” ou “não”. A nossa existência é um dos nossos grandes mistérios.

“Quem sou?”, eis o grito de um animal que vive de cinzel, perdido no labirinto do universo sem saber onde está.

Margarida Azevedo

Bibliografia consultada

KARDEC, A., Le Livre des Esprits, Les Editions Philman, Marly-le-Roy, 2002, livro 2, cap. IV.

FREUD, Sigmund, Moisés e a Religião Monoteísta, Guimarães Editores, Lisboa.