Os nossos mapas políticos são na verdade cartas religiosas identificativas de manchas geográficas, perfeitamente delineadas segundo os modos de crença ou idênticas formas de adoração, cujas nuanças identitárias advêm da forma como cada um desses espaços é mais ou menos permeável a outras influências. Numa palavra, o Ocidente não é hindu tal como o Oriente não é cristão.
Porém, há sempre contágios. Se tomarmos como exemplo o vasto mundo cristão, verificamos que o modo como é vivenciada a fé num qualquer país da América Latina difere e muito do do Velho Continente. Cada país continha, antes de lá chegar o Cristianismo, uma vivência religiosa que lhe era própria o que confere ao Cristianismo uma apresentação cheia de disparidades pontuais que muito o enriquece.
Este painel multicor é representativo de uma capacidade de adaptação a todos os ambientes geográficos com as suas etnias, os seus usos e costumes, vozes de culturas muito diferentes das do seu ponto de origem, o Antigo Israel.
Mas este facto não é novo pois antes de o Cristianismo estar instituído como religião já os ouvintes de Jesus tinham perspectivas muito diversificadas sobre ele próprio, assim como acerca da sua doutrina, facto que irá sedimentar-se após a crucificação aquando da formação das primeiras igrejas.
Além disso, há que lembrar que para seguir Jesus não era necessário ser judeu. Entre os seguidores deste crítico da Tradição Judaica, que encetava uma nova forma de perspectivar o Judaísmo, encontravam-se judeus e gentios, oriundos de todas as classes sociais, de uma variedade de nacionalidades com os seus ideomas muito diferentes. Podemos dizer sem receio que somos herdeiros de um miosótis de pontos de vista sobre Jesus e a sua doutrina, isto é, de uma adesão segundo parâmetros muito diversos, baseados na pluralidade cultural dos seus seguidores e simpatizantes, facto a que nem os próprios Apóstolos foram alheios. Lembremos apenas que Levi, o apóstolo, era publicano (Lc 5: 27). Somos portanto herdeiros de cristianismos e não de um cristianismo unilateral, singular, gerador de um movimento onde todos eram concordantes.
Isto significa que coexistem cristãos judeus, gregos, romanos, da Samaria,… Este pluralismo tráz consigo as mais variadas apresentações da fé, diferentes práticas mágicas, bem como uma diversidade de rituais que, no conjunto, vão influir no modus vivendi da mensagem de Jesus.
Assim, os pagãos ou gentios sentiam-se reconfortados com o novo profeta judeu que fazia muitos milagres, que pregava o amor, sentava-se a qualquer mesa, não excluindo ninguém. Nunca tomou o papel de juíz nem de pregador austero, como o seu primo João Baptista. O cristianismo emergente, nesta altura não mais que uma seita dentro do Judaísmo é, assim, um movimento multicultural que não entra em colisão com os cultos dos deuses, não encontramos em Jesus a exclusão de nenhuma forma de fé, onde todos têm lugar junto de Deus na justa medida em que souberem estar, antes de mais, junto dos homens (Mt 5:25-26//Lc 12:58-59).
Como todos sabemos, as críticas de Jesus incidiram maioritariamente sobre a sua religião o que, até nesse ponto, prova a índole espiritual de Jesus: antes de criticar as religiões e igrejas dos outros comecemos por limpar a nossa... Isto significa que mercê das duras críticas ao Judaísmo do seu tempo, “(...)o movimento de Jesus se difundiu muito mais facilmente entre os gentios do que entre os judeus” (SANDERS, E.P., p. 112), facto que, segundo o referido autor, é de pleno conhecimento por parte de quem escreveu os Evangelhos (ibid).
Do lado dos judeus, a influência gentia ou pagã não constituía o principal problema. Eles foram permeáveis a ela desde o tempo dos Hebreus, (em Abraão, por exemplo, o seu deus é o deus de uma tribo, ainda não está formado um conceito monoteísta, Gn 12-26 ). Eram mais problemáticas as interpretações dos doutores da Lei, ou as perspectivas de seguidores de um profeta de eleição, o que nem sempre reunia consenso. Por exemplo, havia imensos grupos baptistas, gnósticos, doutrinas apocaliptícas, etc., alguns profundamente marcados pelo helenismo.
Nesta disparidade interpretativa e crítica surge outro aspecto de capital importância: o ideoma. A maioria dos judeus da diáspora, eles próprios helenizados, não falava nem hebraico nem aramaico, línguas em que está escrita a Bíblia Hebraica, apenas grego. Ora, sendo judeus tal como os que viviam em Israel, tinham direito às suas Escrituras. Como? Traduzidas para o grego (versão dos Setenta ou Septuaginta, LXX *), a língua corrente na altura. Isto significa que passa a haver judeus que têm acesso aos seus textos sagrados em segunda mão, bem como a leitura dos mesmos influenciada pelo meio cultural onde estavam radicados.
Como deve calcular-se, só o facto de pretender traduzir levantou seleuma, com alguma razão, vindo a lume uma questão pertinentíssima, a saber: como traduzir textos de linguagem teológica, concreta mas também poética, escritos ao longo de mais de mil anos, trespassados pelas mais variadas situações sociais e políticas, nos quais Israel se revê na sua pré-história e história, que narram toda a formação de um povo que se diz escolhido para a transmissão da existência de um Deus único, sem nome, irrepresentável figurativamente, para uma língua do abstracto, filosófica, doce e cujos conceitos não tinham equivalência? Só para tomarmos um exemplo, Gn 1: 1 (livro escrito em hebraico), a palavra princípio, no latim com o sentido de creaceo ex nihilo, não corresponde ao conceito hebraico Berechit que no grego corresponde a génesis (genesis). Não há no pensamento hebraico uma noção de criação a partir do nada, tal como não existe para o mundo helénico, cuja Matéria era eterna. (Ver trad. da TOB, Traduction Oeucuménique de la Bible).
De um ponto de vista doutrinário, esta pluralidade cultural introduzia no Judaísmo conceitos e valores novos, alargava os horizontes hermenêuticos conferindo-lhe um pluralismo e um debate de ideias verdadeiramente ímpares na história das religiões. Foi também esse andamento que fez despelotar a curiosidade sobre novo profeta da Galileia, terra de onde não vinha nada de bom, no dizer de então. Transportando consigo esse pluralismo, os judeus viam em Jesus mais um profeta a ouvir. Todavia, esbarraram com uma pastoral nova, baseada não apenas na interpretação mas numa vivência totalmente diferente. De tal forma assim o foi que é geradora de colisões entre os próprios judeus-cristãos, a que nem os Apóstolos estão imunes, pois os Doze nem sempre partilhavam de idênticas opiniões.
Para os Apóstolos questões complexas se levantam. Entre a diversidade teológica judaica e as cristologias emergentes, uma das maiores questões insere-se no facto de saber se se devia levar a mensagem de Jesus também aos incircuncisos (gentios) ou ficar apenas pelos judeus. O problema da circuncisão foi um dos maiores obstáculos à aceitação, não da nova Mensagem, mas da inclusão dos elementos não judeus, muito embora entre grupos não judeus ela já fosse praticada desde há muito tempo, principalmente entre tribos egípcias. Pedro, por exemplo, pregava aos circuncisos, enquanto Paulo aos incircuncisos. Este, que não sendo um apóstolo presencial de Jesus mas que se considreou tão apóstolo como os outros, percebeu a mensagem salvífica do grande profeta enquanto uma forma de fé que transcende esses pormenores. Em Paulo, todos se salvam pela fé, circuncisos e incircuncisos. Por isso teve maior aceitação entre os pagãos que entre os judeus a ponto de, em Listra, ao curar um paralítico, a multidão pensar que era Hermes, o porta-voz de Zeus (TROCMÉ, Étienne, p.57-58). Por outro lado, ao formarem, Paulo e Barnabé, grupos em diversas cidades pagãs “(...) os dois missionários davam resposta a necessidades pastorais evidentes, mas por outro lado colocavam-se à margem da prática constante das primeiras Igrejas. Em breve ver-se-iam censurados por isso, tanto mais que não tinham incitado os convertidos de origem pagã a fazerem-se circuncidar para entrarem nas novas Igrejas.” (idem, p.59). Esta, portanto, uma das muitas questões geradas no seio desta Doutrina tão estranha que aceitava toda a gente. Só por curiosidade, foi no calor de acesas discussões entre Pedro e Paulo que Tiago, irmão de Jesus, chefe da igreja de Jerusalém, mais apegado às tradições, e a quem chamavam o Justo em virtude das suas decisões avisadas bem como do seu conhecimento profundo do Judaísmo, discursou no “concílio” de Jerusalém, em 49, do qual sai um decreto que é considerado seminal do Cristianismo, onde apelou ao bom entendimento entre todos os cristãos (SCHMIDT, J. pp. 252-255).
Com tudo isto, esta nova proposta de caminho para Deus é provocatória, pois é apelativa da natureza íntima do crente, a qual se sobrepõe à própria religião que passa, assim, para segundo plano. Por outras palavras, a religião deixa de ser um garante de salvação. Salvar-se passa a ser uma conquista da fé que, sem obras, é cega. Estamos assim em presença de duas situações novas: a religião perde poder e força salvífica, logo o culto público perde cariz, transpondo-se para o interior do próprio homem/mulher; por outro lado, estamos perante uma teologia da práxis, isto é, um processo dialético da nossa realidade histórica, em que a fé desempenha um papel activo e preponderante. Neste seguimento provocatório, os pagãos têm garantida a salvação tal como os judeus. Isto vai ao ponto de Jesus ousar dizer que não viu em todo o Israel tanta fé como a do centurião de Cafarnaum, facto que o deixou maravilhado (Mt 8: 5-13//Lc 7: 1-10).
Face a esta nova forma de caminho para Deus reaparece infalivelmente a questão: “Quem é o próximo?” Porém a resposta é nova, é aquele (a) que faz aos outros o que gostaria que fizessem a si mesmo. O próximo é aquele (a) que auxilia nas horas difíceis. Quem é? De onde vem? Que língua fala? Qual a sua crença? “Sei lá! Só sei que é meu/minha amigo/a.” Na Nova Doutrina o próximo é o outro e este é aquele que não é um prolongamento de mim. Somos ambos pessoa, conceito que o Cristianismo inaugura e ao qual confere um sentido abrangente e universalista: o outro é um ser ético, alguém portador de complexidade.
Em suma, é importantíssimo ter em consideração o contributo do paganismo para a sedimentação desta nova mensagem. Não estamos a falar de uma doutrina do abstracto, mas do concreto que é a a vivência em comunidade, a trama da História.
Hoje, o senso comum estranha, porque considera excessivo, o vasto número de igrejas em que se subdivide a religião cristã bem como a vastidão de religiões que povoam o mundo. Ora, a diversidade é filha do livre pensamento. Cada interpretação, devidamente fundamentada, obviamente, é sempre uma mais-valia para a compreensão da vivência cristã, tal como da das outras doutrinas, da sua adaptação aos novos tempos, o que torna a Boa-Nova intemporal.
As novas hermenêuticas não vêm anular as mais antigas, por mais ultrapassadas que nos pareçam. As novas questões não são uma anulação, mas antes uma continuidade porque fundamentadas nos novos desafios que se nos colocam hoje, herdados do passado. Porém, questões de base subsistem, tais como o que é o homem?, o que é o universo?, porquê o sofrimento? Na verdade passamos a vida a repensar e a reler.
Para falarmos com mais propriedade, e atendendo a que somos seguidores de um profeta todo ele virado para o homem /mulher, e não para a religião desse mesmo homem/mulher, Jesus foi o exemplo da aceitação dessa mundivivência díspare. Ele também releu as Escrituras, o Antigo Testamento, não havia outra Bíblia; tal como os rabis também foi um contador de histórias, as parábolas, narrativas mundanas. Não encontramos em Jesus a defesa de uma ideologia por oposição a qualquer outra. Encontramos, isso sim, o denunciar da falsidade, que deve ser combatida com veemência. Jesus foi um grande hermenêuta da Bíblia hebraica propondo com isso um judaísmo renovado. Nós somos herdeiros desse Judaísmo
Toda a religião, parece-me, que não esteja vocacionada para o humano, entendendo por tal esta dualidade homem/mulher, que não saiba ouvir as suas congéneres ou que as considere sombras nebulosas e a abater, que não trabalhe para a paz e descure o bem servir certamente não está no bom caminho.
Diz-se com frequência que às igrejas cristãs está a faltar o carácter messiânico. Porquê? Porque os novos tempos não são compatíveis com o Jesus idolatrado. As hermenêuticas são caminhos, não são verdades absolutas, tal como as igrejas.
No Cristianismo ninguém está sozinho, dito de outro modo, ninguém pode ser cristão sem a companhia do outro. É de mãos dadas que chegamos a Deus.
Somos seres invadidos. Habitam em nós sentimentos confusos, vontades e desejos, formas de amor que se contradizem. Somos herdeiros de caminhos esquecidos na complexidade. Temos horizontes de esperança que podem alterar o rumo de passados mais ou menos remotos. O presente pode acrescer ao passado outras leituras, conferir-lhe outras razões. Só assim nos poderemos enfrentar e aos que partilharam connosco esses trilhos sulcoosos.
Por outras palavras, este existencialismo diz-nos que existimos porque trazemos em nós fórmulas que não construimos, as quais se traduzem em capacidades infinitas no finito da nossa condição humana. Eu nunca saberei como é que três mais dois são de facto cinco, eu só sei que não construí essa conclusão. Se para estudarmos o mundo traçamos linhas imaginárias, e se as medimos com esses números, então onde estamos realmente? Só sei que existimos na casa da nossa fé. Onde está essa casa? Não a encontramos na geografia dos povos, encontramo-la no lugar remoto e obscuro da nossa alma, nas ténues lembranças ou nas pequeníssimas revelações de um passado que se pretende alterar.
Os espíritas têm que perceber que não pode haver uma única leitura da Doutrina, não podemos falar a uma só voz e que, para não cair tantas vezes no conto do vigário, torna-se imperiosa a leitura atenta de outras matérias, conhecer o trabalho de exegetas, teólogos e hermenêutas. Se para falar de Medicina convidam-se médicos, para falar de assuntos bíblicos têm que, reciprocamente, requerer os serviços de quem está devidamente preparado para o efeito.
Ouvem-se comentários de pessoas que falam segundo os seus pontos de vista como se estes fossem verdades absolutas. Ora, a melhor forma de dogmatizar uma doutrina é deixá-la cair nas mãos do fanatismo unicista. Os nossos maiores escolhos são as nossas convicções, as nossas verdades, os nossos princípios, os nossos gostos. O pior que pode acontecer a alguém é crer em si próprio, estar convicto de que as suas ideias são verdades absolutas.
Somos seres inacabados, falíveis, crédulos, inseguros. No nosso íntimo travam-se batalhas, somos seres perseguidos por nós mesmos através de um passado oculto; a nossa capacidade de concentração é extremamente pequena, falta-nos lucidez, não sabemos observar.
Penso que o Espiritismo, e todas as doutrinas, de um modo geral, só poderão impôr-se de duas maneiras: pelo muito amor versus fé; pelo muito estudo versus trabalho.
O pluralismo é um caminho sem fim, tão antigo e sempre tão actual...
Margarida Azevedo
* “SETENTA (VERSÃO DOS). Tradução para o grego da Bíblia hebraica, realizada do séc. III ao séc. I a. C. , em Alexandria.
A versão dos Setenta teria sido efectuada, segundo a tradição, por setenta e dois sábios. Foi aceite pelos judeus da diáspora. A Igreja cristã adoptou-a nos seus primórdios; os autores dos Evangelhos e os Padres da Igreja utilizaram-na amplamente.” ( Dicionário Temático Larousse, p. 553).
Bibliografia Citada
COMTE, Fernand, Dicionário Temático Larousse, Civilização Cristã, Círculo de Leitores, Casais de Mem-Martins, 2000, p.553.
SCHMIDT, Joël, São Pedro, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 2007, cap. 17, pp.251-264).
TROCMÉ, ÉTIENNE, São Paulo, Publicações Europa-América, Mem-Martins, 2004, cap. III, A ruptura com Jerusalém, pp. 47-68.
As citações bíblicas foram retiradas da Bíblia de João F. de Almeida.
Consultada
SANDERS, E. P., A verdadeira história de Jesus, Cruz Quebrada, 2004.